Coluna ABDPRO
A interposição de recurso pelo sucumbente é ato de vontade. Ainda que contra a parte tenha sido proferida decisão desfavorável, ela não é obrigada a interpor recurso, pode, simplesmente, aceitar a sua derrota. E como ato de vontade que é, a parte sucumbente pode, ainda, se insurgir apenas contra parte da decisão, conformando-se com o seu restante. Nesse sentido, o artigo 1.002, do CPC/15 dispõe que “a decisão pode ser impugnada no todo ou em parte”.
Mas o que seria essa parte? Como se distingue uma “parte” de uma decisão judicial de outra?
1. A teoria dos capítulos da sentença (rectius, da decisão judicial) de Cândido Dinamarco
De acordo a teoria dos capítulos da sentença, a decisão judicial, ao poder ser decompostas em partes que se ocupam de julgar pretensões autônomas, possui capítulos distintos. Diversos doutrinadores italianos se ocuparam do tema, defendendo os mais diversos posicionamentos. Chiovenda[1] defendeu que a solução para cada um dos pedidos do autor corresponderia aos capítulos da sentença. Carnelutti[2], ao contrário, defendeu que a solução de cada questão, de fato ou de direito, decidida na sentença, corresponderia a um capítulo. Liebman[3], por sua vez, consignou que os capítulos da sentença se encontram em sua parte decisória, bem como a independência entre os capítulos que solucionam questões preliminares e aqueles que solucionam o mérito.
Esse último entendimento predominou na doutrina brasileira, tendo Cândido Dinamarco dedicado uma obra sobre o tema[4]. De acordo com o referido autor, os capítulos da sentença (rectius, decisão judicial) são unidades autônomas do decisório e devem “de um lado, incluir todas as unidades elementares portadoras de concretos preceitos imperativos sobre a causa e sobre o processo e, de outro, excluir soluções dadas, na motivação sentencial, às questões de fato e de direito”[5].
Assim como Liebman, o autor admite que toda demanda deduzida no processo de conhecimento tem natureza bifronte, pois o autor deduz, em verdade, duas pretensões, quais sejam, o pedido por um pronunciamento judicial de mérito e o pedido pelo bem da vida pretendido. Assim, a sentença, ainda que una, seria dividida em dois momentos lógicos: (i) no primeiro deles, são apreciadas as questões processuais, a fim de verificar se o processo está apto ao julgamento de mérito; (ii) caso o juízo referente à primeira fase seja positivo, haverá um segundo momento no qual se julgará o pedido formulado pelo autor.
Dinamarco reconhece, em seguida, que “tanto pode haver capítulos distintos, ambos portadores de decisões sobre o mérito, como capítulos distintos alusivos apenas ao processo (sem julgar o mérito), como ainda a convivência entre uns e outros, ou seja, entre capítulos de meritis e processuais. Daí a afirmação da existência, conforme o caso, de capítulos homogêneos ou heterogêneos”[6].
Quanto aos capítulos processuais, no entanto, Dinamarco e Liebman divergem. Enquanto o processualista italiano afirma que o pronunciamento a respeito de cada quatão preliminar consiste em um capítulo próprio, para Dinamarco haverá distinção entre capítulos processuais apenas quando houver pronunciamento, numa mesma decisão, sobre questões processuais dilatórias e peremptórias. É o que ocorre, por exemplo, quando o juiz rejeita a arguição de incompetência do juízo, mas extingue o processo por carência de ação[7].
Por outro lado, se o julgamento das questões preliminares ensejar o mesmo efeito processual – rejeição de todas as preliminares, com ulterior julgamento do mérito ou acolhimento de uma ou mais preliminares, com extinção do processo – o autor conclui que haverá apenas um capítulo processual na decisão. A existência de um único capítulo processual, de acordo com as lições do autor, ocorreria inclusive quando houvesse cumulação de pedidos. Isso porque, ao afirmar que o julgamento de vários capítulos de mérito (como ocorre na cumulação de pedidos) é precedido de um capítulo único que rejeitou questões preliminares, o autor nega – ou, ao menos, deixa de ressalvar expressamente – que a rejeição das preliminares para cada uma daquelas demandas cumuladas consistiria em capítulos distintos[8][9].
Por fim, ao se referir especificamente aos recursos, o autor afirma que “provavelmente não comportará qualquer cisão em capítulos o acórdão que se limitar a não conhecer do recurso, no qual nada se contém além disso”[10], ratificando o entendimento no sentido de que a rejeição dos pressupostos de admissibilidade da ação/recurso são objeto de um único capítulo. Essa ideia também se repete ao tratar da admissibilidade dos recursos excepcionais, quando o autor afirma ser fundamental atentar para “o modo como se restringe a admissibilidade do recurso extraordinário e do especial, do qual emana alguma insinuação de que, no tocante a essa problemática, se legitimasse o isolamento de capítulos da motivação, mas essa insinuação não é confirmada e, como se verá, a técnica da divisão em capítulos restringe-se ao decisório, não aos fundamentos da sentença”[11].
É possível concluir, das considerações ora destacadas da obra do autor, o seguinte: (i) o capítulo da decisão que se pronunciar sobre questão processual é autônomo em relação ao capítulo que se pronunciar sobre o mérito; (ii) o acolhimento ou rejeição de uma ou mais questões preliminares peremptórias consiste em capítulo único de natureza processual; (iii) ainda que as questões preliminares se refiram a pedidos distintos (cumulação de pedidos), o capítulo processual que der o mesmo destino às questões preliminares será um só; (iv) a decisão que inadmite totalmente um recurso contém apenas um capítulo.
2. O impacto da teoria dos capítulos da sentença de Cândido Dinamarco no julgamento dos Embargos de Divergência nº 701.404/SC
As conclusões acima referidas – extraídas da leitura da citada obra de Cândido Rangel Dinamarco – foram integralmente adotadas pela Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça no julgamento dos Embargos de Divergência nº 701.404/SC[12]. O julgamento, decidido por maioria, consolidou entendimento no sentido de que “a decomposição do provimento judicial em unidades autônomas tem como parâmetro inafastável a sua parte dispositiva, e não a fundamentação, como um elemento autônomo em si mesmo, ressoando inequívoco, portanto, que a decisão agravada é incindível e, assim, deve ser impugnada em sua integralidade”.
O recurso tinha como objetivo sanar divergência jurisprudencial entre acórdãos de diferentes turmas do STJ, sobre a seguinte questão controvertida: é possível a cisão em capítulos da decisão que inadmite o recurso especial, para fins de interposição de recurso parcial, nos termos do artigo 1.002 do CPC/15 (ou artigo 505 do CPC/73, vigente à época de interposição dos embargos de divergência)?
Adentrando um pouco mais nos detalhes do caso, a União havia interposto recurso especial no qual formulou dois pedidos: um deles pelo reconhecimento da nulidade do acórdão, com fundamento na violação ao artigo 535, II, do CPC/73, e o outro pela reforma imediata do acórdão, com fundamento na violação ao artigo 185 do CTN. O TRF4 negou admissibilidade à integralidade do recurso interposto, nos seguintes termos: (i) quanto ao pedido de nulidade do acórdão, o recurso seria inadmissível, porquanto não haveria violação ao artigo 535, II, do CPC/73; (ii) quanto ao pedido de reforma do julgado, o recurso seria inadmissível por incidência da súmula nº 7 do STJ.
A União, ao interpor agravo em recurso especial, direcionou o seu recurso apenas para o capítulo que aplicou a súmula nº 7, deixando de recorrer do capítulo que negou a violação ao artigo 535, II, do CPC/73, no legítimo exercício do direito de recorrer apenas do capítulo da decisão que tiver vontade. A Primeira Turma do STJ, por sua vez, negou provimento ao recurso, ao fundamento de que o agravo em recurso especial deveria, necessariamente, impugnar também o capítulo que inadmitiu o recurso quanto ao pedido de nulidade do julgado, uma vez que a impugnação de parte dos fundamentos da decisão agravada não seria suficiente para desconstitui-la.
A União interpôs, então, embargos de divergência, oportunidade em que cotejou o seu acórdão com o paradigma proferido pela Quarta Turma, sob a relatoria do Ministro Luís Felipe Salomão, no julgamento do Agravo em Recurso Especial nº 405.570/RJ, em cujos fundamentos se consignou a não incidência da súmula nº 182/STJ, “quando há capítulos autônomos na decisão recorrida, cada qual suficiente para desencadear um tópico recursal próprio, cujo acolhimento tem o condão de reformar o acórdão por completo ou parcialmente, independente de recurso contra os demais capítulos”.
Ocorre que, no julgamento dos embargos de divergência, em que pese o voto do relator, Ministro João Otávio de Noronha, pelo seu provimento, prevaleceu o voto divergente capitaneado pelo Ministro Luís Felipe Salomão (relator do paradigma indicado pelo recorrente), para quem, neste último julgamento, a decisão que inadmite o recurso especial é formada por apenas um capítulo, de modo que a sua reforma dependerá da interposição de recurso contra todos os seus “fundamentos”.
O voto vencedor menciona expressamente a teoria dos capítulos da sentença defendida por Cândido Dinamarco, e parte da premissa de que, se a decisão que acolhe várias questões preliminares peremptórias possui apenas um único dispositivo – no sentido de extinguir o processo sem julgamento do mérito –, o afastamento de cada uma delas comporia a fundamentação desse único capítulo.
Em seguida, transporta o raciocínio acima para o caso dos autos e conclui o seguinte: “Esse provimento tem, como peculiaridade, o escopo de apreciação exclusiva dos pressupostos de admissibilidade do apelo especial, concluindo pela presença de uma ou várias causas impeditivas do julgamento do mérito recursal, as quais em tudo se assemelham às questões preliminares extintivas da demanda. É forçoso concluir, portanto, pela completa ausência de diversos capítulos nesse decisum, que é formado por um único dispositivo, qual seja, a inadmissão do recurso. Com efeito, a decomposição do provimento judicial em unidades autônomas tem como parâmetro inafastável a sua parte dispositiva, e não a fundamentação como um elemento autônomo em si mesmo”.
3. Necessária observância à liberdade da parte em recorrer parcialmente de uma decisão judicial
O entendimento firmado pela maioria da Corte Especial no julgamento do referido caso deixou de atentar para a seguinte e relevante questão: no recurso da União havia uma cumulação de pretensões, uma delas pedia a declaração de nulidade do acórdão e a outra a sua reforma. Os pedidos do recurso eram totalmente autônomos, ou seja, o recorrente poderia ter escolhido requerer apenas a nulidade do acórdão ou decidido por superar o vício formal e requerer apenas a reforma do entendimento firmado pelo tribunal ordinário.
Outra hipótese que possui o mesmo racional do caso julgado seria aquela na qual o tribunal julgasse improcedente o pedido de indenização por danos materiais e o pedido de indenização por danos morais, bem como condenasse o autor a arcar com os honorários de sucumbência. O recurso especial que se insurgisse contra a totalidade do acórdão impugnaria três capítulos distintos e autônomos.
Em ambos os casos, uma vez inadmitido o recurso em sua integralidade, não se pode concordar com a conclusão de que essa decisão possui apenas um capítulo. Ao contrário, o único dispositivo consolida, em verdade, os capítulos correspondentes ao exame dos pressupostos de admissibilidade de cada uma das pretensões recursais. É necessário, portanto, diferenciar duas situações: (i) o recurso excepcional que alega violações a normas relacionadas a um único capítulo do acórdão impugnado; (ii) o recurso excepcional que alega violações a normas relacionadas a capítulos distintos do acórdão impugnado, como ocorre nos exemplos dados acima[13].
Na primeira hipótese, razão assiste ao entendimento sustentado por Cândido Dinamarco e reiterado no voto vencedor proferido nos Embargos de Divergência nº 701.404/SC, já que o decreto de inadmissibilidade mantém incólume o único capítulo do acórdão impugnado. Assim, a decisão que refutar as diversas violações alegadas pelo recorrente possuirá diversos fundamentos, mas apenas um capítulo, razão pela qual a interposição do agravo em recurso especial demandará a impugnação de todos os fundamentos empregados para manter o capítulo impugnado, sob pena de incidir, no caso, o óbice da súmula nº 182/STJ[14].
Na segunda hipótese, no entanto, o decreto de inadmissibilidade manterá inúmeros capítulos do acórdão impugnado. O dispositivo dessa decisão consolida o julgamento de inadmissibilidade recursal correspondente a cada capítulo impugnado. Nesse caso, é possível que o recorrente, ao interpor agravo em recurso especial, desista de seguir com a impugnação ao capítulo do acórdão atinente, por exemplo, aos honorários de sucumbência, e siga apenas com a impugnação aos capítulos atinentes ao dano material e dano moral.
Como se vê, a tese firmada por Cândido Dinamarco, pela existência de um só capítulo que acolhe preliminares peremptórias – ou, no caso, que se pronuncie sobre a inadmissibilidade recursal –, não se aplica na hipótese de cumulação de pedidos, já que cada pedido demandará o julgamento dos seus próprios pressupostos de admissibilidade.
O entendimento firmado no julgamento dos Embargos de Divergência nº 701.404/SC, no entanto, ao deixar de reconhecer essa fundamental distinção, impede que o recorrente exerça seu direito de interpor recurso parcial, previsto no artigo 1.002 do CPC/15. E mais do que isso: considerando que o direito de recorrer é um desdobramento do direito de ação, o referido entendimento viola o princípio da inércia, ao obrigar o jurisdicionado a recorrer de um capítulo decisório com o qual se conformou.
Conclusão
Em síntese, o Superior Tribunal de Justiça impôs ao recorrente o dever de impugnar capítulos distintos de uma decisão, independente da sua vontade, sob pena de restar obstado o acesso à instância superior. A teoria dos capítulos da sentença de Cândido Dinamarco foi aplicada sem a necessária ressalva dos casos nos quais há cumulação de pedidos na ação/recurso, o que conduz à inconstitucional restrição da liberdade do jurisdicionado em exercer seu direito de ação/recorrer.
O referido entendimento certamente será empregado como mais uma iniciativa da jurisprudência defensiva dos tribunais superiores, porquanto, em que pese não adote a melhor técnica, conduzirá à redução do acervo do tribunal. Tanto é assim que o Ministro Raul Araújo, ao se associar ao voto vencido, fez o seguinte alerta: “não podemos, para resolver nosso problema de congestionamento de processos, simplesmente eliminar processos a qualquer custo, em vez de julgá-los”. E este texto se encerra ecoando o alerta ora destacado, por um STJ mais preocupado com o julgamento de casos concretos.
Notas e Referências
[1] CHIOVENDA, Guiseppe. Principii di diritto processuale civile. Napoles: Jovene, 1965.
[2] CARNELUTTI, Francesco. Capo di sentenza. Rivista di Diritto Processuale Civile. Padova: Cedam, v. 10, n. 1, p. 117- 131, 1933.
[3] LIEBMAN, Enrico Tulio. Parte o capo di sentenza. Rivista di Diritto Processuale Civile. Padova: Cedam, v. XIX, 1964.
[4] DINAMARCO, Cândido Rangel. Capítulos de sentença. São Paulo: Malheiros, 2008.
[5] Op. cit., p. 37.
[6] Op. cit., p. 40.
[7] Op. cit., p. 41.
[8] “Nessas hipóteses, o preceito decisório imperativo a respeito de toda matéria processual é um só, a saber: a) ou a extinção processual por falta de um ou mais pressupostos para prosseguir; ou b) a afirmação de que todos os pressupostos estão presentes e, portanto, o julgamento de mérito é admissível, perdurando o processo. Desse modo, (a) sendo acolhida uma, duas ou várias preliminares com o poder de determinar a extinção do processo, a sentença conteria só o capítulo que o extingue, ao lado daquele que dispõe sobre o custo processual; b) sendo rejeitadas todas as preliminares, ocorrerá um cúmulo heterogêneo de capítulos sentenciais, representado por aquele (único) que as rejeita, para que o processo receba julgamento de meritis, e aquele, ou aqueles, que dispõem sobre o mérito.”. Op cit., p. 41-42.
[9] Em outra passagem da obra, o autor afirma que “A complexidade do objeto do processo, seja em virtude da cumulação de pedidos na demanda deduzida pelo autor, seja pela superveniência de pedidos (reconvenção, etc.), repercute necessariamente na sentença de mérito mediante a necessária presença de tantos capítulos quantos forem os pedidos postos diante do juiz à espera de julgamento” (Op cit., p. 42). Note-se que o autor menciona apenas que a cumulação de pedidos enseja a pluralidade de capítulos de mérito na decisão judicial, sendo evidente o seu entendimento no sentido pela existência de um só capítulo para a parte da decisão que der o mesmo destino às preliminares.
[10] Op cit., p. 49.
[11] Op cit., p. 32.
[12] STJ, Corte Especial, EAREsp 701.404/SC, Min. João Otávio Noronha, rel, para o acórdão Min. Luís Felipe Salomão, DJe 30.11.2018. Esse recurso foi conjuntamente julgado com os Embargos de divergência nº 831.326/SP e Embargos de Divergência nº 746.775/PR. O acórdão proferido neste último caso transitou em julgado, mas dois primeiros houve a oposição de embargos de declaração ainda pendentes de julgamento.
[13] Nesse sentido é o entendimento do voto vencido, capitaneado pelo Ministro João Otávio de Noronha: “É preciso, portanto, distinguir a hipótese em que o juízo de delibação obsta o julgamento do recurso especial em relação a um mesmo capítulo decisório do acórdão recorrido daquela em que a inadmissibilidade obsta o julgamento meritório do recurso especial em relação a capítulos distintos. Na primeira hipótese, cabe ao recorrente refutar todos os fundamentos sobrepostos do mesmo capítulo, sob pena de incidência da Súmula n. 182 do STJ. Já na segunda hipótese, basta que refute todos os fundamentos sobrepostos do capítulo inadmitido e em relação ao qual persiste a irresignação, pois ninguém discute o cabimento do recurso parcial. Os demais capítulos, ao contrário do que sustenta o voto divergente, estarão preclusos e não serão examinados pelo Superior Tribunal de Justiça.
[14] É inviável o agravo do art. 545 do CPC que deixa de atacar especificamente os fundamentos da decisão agravada. (Súmula 182, Corte Especial, j. 5.2.1997, DJ 17.2.1997).
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