Coluna ABDPRO
1. Caminhos Divergentes
Judges and legal scholars talk past one another, if they have any conversation at all[1]. Esta é a frase que abre a orelha de um instrutivo trabalho do mundialmente conhecido autor americano Richard Posner, chamado Divergent Paths: the Academy and the Judiciary[2], de 2016. O livro parte da constatação de que há um indisfarçável gap entre a atividade judicial prática e aquela desenvolvida por professores de Direito[3]. Esta distância causaria prejuízos recíprocos: ignorada pela maioria dos juízes, a atividade acadêmica perderia a oportunidade de contribuir para a solução dos cada vez mais complexos casos práticos a respeito dos quais cabe ao Poder Judiciário deliberar. Por outro lado, sem o apoio da academia – cuja produção seria marcada pela autorreferência -, os juízes estariam trabalhando de modo pior e menos informado do que poderiam.
Posner dedica seu fôlego a traçar as causas e consequências deste alheamento, bem como a sugerir mudanças concretas – principalmente dirigidas ao sistema de ensino jurídico norte-americano – para que essa distância diminua. De um modo geral, sua visão é a de que as mudanças deveriam começar a partir da academia que, ao invés de se dedicar a esmiuçar as fragilidades teóricas do discurso judicial, deveria focalizar a resolução de problemas jurídicos práticos.
A análise de Posner está dividida em duas partes: a primeira consiste numa descrição da realidade da Magistratura Federal norte-americana (perfil dos juízes federais, questões estruturais, aspectos concernentes ao processo adversarial etc.); a segunda é basicamente propositiva, e dirigida às Law Schools americanas e a seus professores. Trata-se de sugestões construtivas a respeito de como a academia poderia contribuir mais e melhor para o aperfeiçoamento da atividade judicial, aí incluídos desde mudanças de currículo escolar até o desenvolvimento de novos métodos de educação contínua dos juízes.
É interessante perceber que, apesar de Posner procurar restringir bastante seu foco de análise (sistema jurídico e magistratura federal norte-americanos), muitas de suas observações transcendem seu quadro referencial e são rigorosamente familiares para quem, como nós, divide seu tempo entre a academia e a prática brasileiras. A descrição que Posner faz dos juízes como sendo, em geral, pouco curiosos e imaginativos, excessivamente passivos, tímidos a respeito de mudanças, enredados em tradições desgastadas e autossatisfeitos[4], dispensa comentários. E, a propósito dos acadêmicos, a simples referência ao comentário de Brendan Behan sobre críticos de cinema (de que estes seriam eunuchs in a harem; they know how it´s done, they´ve seen it done every day, but they are unable to do it themselves[5]) já seria suficientemente eloquente.
Posner parece, portanto, estar certo em boa parte de seu diagnóstico e na eleição do propósito de seus esforços: a necessidade de se colocar a diminuição desse gap na nossa agenda de pesquisas e preocupações. De fato, é quase um truísmo conceder que a academia deva se interessar pela comunicação com a atividade jurídica prática.
Por que, contudo, não se tem interessado? Por que a doutrina não doutrina mais, no sentido de não fornecer critérios normativos a serem empregados pelos participantes da prática jurídica como guia de sua conduta? E porque a academia, quando tenta ingressar nesse campo, simplesmente não consegue ser ouvida?
2. Entendendo o gap: a esoteria acadêmica
De plano, ressalvemos o óbvio: nem tudo o que Posner descreve, como é intuitivo, tem relação direta com nossa realidade local. Há, por exemplo, diversas considerações sobre a postura judicial na condução de procedimentos adversariais (caracterizados por certa passividade dos juízes) que dificilmente serviriam como uma descrição fiel da prática judiciária brasileira[6]. Da mesma forma, nem tudo o que se aponta sobre a formação dos Professores de Direito, ou sobre os critérios a partir dos quais eles são contratados, se ajustaria sem mais ao contexto das faculdades de Direito brasileiras. O próprio Posner diz não conhecer o suficiente a respeito da magistratura não federal ou das Law Schools que não compõem a elite americana[7]. Talvez ele saiba mais do que admite ou julga saber. Mas em todo o caso há, é inegável, um tom de proximidade entre várias de suas constatações e aquilo que experenciamos no dia-a-dia dos fóruns e salas de aula.
De todos os fatores de divisão entre academia e prática, a uma delas Posner dá atenção especial: os juízes seriam em regra generalistas sem maior interesse pelo discurso de especialistas e para especialistas produzido pela Academia[8] – coisa que se deveria, em boa medida, à postura dos próprios acadêmicos, que escreveriam sem uma real preocupação de se comunicarem com a atividade judicial prática.
Há uma passagem divertida do livro em que essa defecção é evidenciada. Posner recorta um trecho de um trabalho de Richard Fallon, o mundialmente conhecido Professor de Harvard, em que este trata, com grande erudição, da interpretação de textos legais (statutory interpretation). A passagem discute a diferença entre as teorias textualistas e teleológicas (textualist and purposivist theories), enfatizando a importância de que ambas considerem, em suas formulações, a importância da especificação de um contexto interpretativo[9]. Pois bem. A observação de Posner, a propósito, é a de que, ainda que juízes (para quem, registre-se, a interpretação da legislação é uma parte importante de seu trabalho) lessem a passagem ou o artigo inteiro, não teriam a menor condição de entendê-lo, em virtude da complexidade da exposição. A passagem em questão seria, portanto, um exemplar de que a produção jurídica acadêmica estaria se tornando esotérica[10] e de difícil tradução[11].
Não estamos certos de que seja este o caso de Fallon; mas Posner, definitivamente, tem um bom argumento aí. É difícil deixar de perceber que boa parte dos acadêmicos de fato escreve para si mesma, abordando temas que são de interesse próprio, transmitindo a noção, neste contexto correta, de que juízes não são mesmo o público alvo da produção doutrinária[12].
E, se é assim, certamente a Academia poderia fazer mais.
3. Entendendo o gap (2): o realismo judicial
Não supreende que a descrição de Posner a respeito do trabalho dos juízes prepare o terreno para uma prescrição de corte realista sobre como a Academia deveria se comportar, para cumprir o seu propósito de aproximação com a atividade prática. Realismo, para este efeito, resume o autor, é o Direito sem adereços místicos, verborragia, pretensão ou obscurantismo[13]. Juízes seriam em geral realistas neste sentido, observa Posner, apesar de haver certa resistência, ou constrangimento, a reconhecê-lo publicamente.
Realismo ou pragmatismo (em sentido leigo e não filosófico, adverte o autor) aparecem, para Posner, sob a forma de uma postura por meio da qual juízes ou professores conceberiam a atividade jurídica como um problema prático, ao revés de teórico. Assim, o pragmatismo do dia-a-dia (everyday pragmatism) focaria, em primeiro lugar, as consequências de uma determinada ação[14].
Eis aí, portanto, o elo a ser construído entre Academia e prática: a Academia deveria reconhecer o valor do realismo na atividade judiciária profissional e, a partir daí, estabelecer uma comunicação pragmaticamente produtiva. Acadêmicos deveriam, dito de outro modo, incluir os juízes em seu público-alvo, e a forma correta de fazê-lo seria favorecer uma abordagem realista da sua atividade. E isto envolveria não apenas mudanças de currículo escolar (que deveria priorizar o estudo de casos práticos e, dentre outras tarefas, estudar o comportamento de juízes que não compõem a Suprema Corte, a influência de seu passado e preferências nas decisões etc.) e de estilo de redação (privilegiando textos curtos, claros e objetivos, com linguagem direta), mas verdadeiramente uma mudança de propósito das Faculdades de Direito.
A proposta de Posner não é inédita no contexto de sua obra, e deve ser lida sob o pano de fundo da defesa de uma postura antiteórica mais radical e abrangente. Neste quadrante, se por um lado não há boas razões para desconfiar da descrição que Posner faz dos meios que frequenta e conhece (a magistratura federal e as principais Law Schools norte-americanas), por outro, temos que suas (em geral, muito boas) propostas dirigidas ao meio acadêmico padecem de pelo menos um problema grave: a aposta no realismo, como se sabe, não vem sem custos[15].
Mesmo porque, e agora abrindo um parêntesis para falar especificamente do Brasil, por aqui tem sido praticado aquilo que podemos chamar de um realismo retrô. Esse realismo é bem brasileiro, porque produto da transformação do juiz em um ativista de teoria politica de poder. Trata-se de um realismo de atalho. Consequentemente, o direito será, simplesmente, aquilo que, pragmaticamente, o Judiciário assim disser. As consequências são alarmantes, com a perda do mínimo grau de autonomia do Direito. E a doutrina fica cada vez mais enfraquecida. Exemplo interessante disso é a discussão sobre precedentes, em que uma parcela da Academia mostra – e denuncia - os sérios problemas decorrentes da prática de os Tribunais elaborarem teses com pretensões universalizantes. Aqui, o realismo bem brasileiro impede o diálogo com a Academia.
Por isso, e retomando aqui o fio da meada, não acreditamos que a prática judiciária possa ser descrita (e prescrita) como uma atividade marcada pelo pragmatismo, em que as decisões seriam, em grande medida, simplesmente o resultado de uma discricionariedade guiada por intuições morais dos juízes. Não entendemos que seja um bom caminho, para a Academia, aceitar este fato como uma espécie de pedra angular a partir da qual se reelaboram as suas prioridades de pesquisa e ensino. Não concordamos, portanto, com a proposta de Posner, de que a Academia deva deixar de lado a filosofia moral, ou a alta teoria, em favor de pesquisas práticas.
Dito de outro modo, Posner tem razão ao apontar o dedo para a Academia. Mas talvez tenha sido complacente demais com os demais participantes da prática jurídica, sobretudo com os juízes. É disso que tratará nossa nota final.
4. O que fazer com juízes que não leem doutrina?
Ao tratar do facínio que a Suprema Corte Norte-Americana exerce sobre os professores de Direito, Posner critica a abordagem preferencialmente filosófica da Academia, observando que “The Justices are not ‘philosophical’. They do not engage with abstruse issues of ‘meaning’. They do not read H. L. A. Hart or Ronald Dworkin, or the flights of fancy of such current contitutional gurus as Laurence Tribe and Akhil Amar”[16]. O ponto de Posner é ressaltar que as abordagens filosóficas abstratas são em geral amplas o bastante para acobertarem o exercício de verdadeira discricionariedade guiada por preferências ideológicas. E, se é assim, o melhor é deixar os floreios filosóficos de lado e focar naquilo que os juízes de verdade fariam, quando invocam a filosofia (sobretudo, como vimos, a filosofia moral) como fundamento de sua atuação.
Contudo, essa postura antiteórica de Posner padece de pelo menos um problema importante: a atividade judicial prática, quer se queira, quer não, envolve reflexão e justificação morais, mesmo quando estas são menos aparentes (como na definição da maior ou menor extensão de um precedente ou na construção da melhor interpretação de uma lei específica); assim, uma reflexão teórica ou acadêmica que desconsiderasse esse crucial aspecto seria, exatamente por isso, falha e incompleta[17].
É evidente que isso não desqualifica as contribuições de Posner. A descrição de um cenário pontuado por um muro de separação entre Academia e prática está correta e é certamente familiar. Neste sentido, as instituições brasileiras seguramente se beneficiariam de uma revisão nos critérios de seleção dos profissionais que integram seus quadros, e uma remodelação dos concursos públicos para juízes e promotores de justiça, para citar apenas estes, deveria necessariamente receber a atenção da Academia, exatamente como sugerido por Posner[18]. Do mesmo modo, pesquisas em Direito também deveriam considerar, em suas formulações, questões sistêmicas e institucionais (estrutura e método de trabalho[19] etc.).
Ocorre que a mudança de postura não deve ficar restrita à Academia: também os profissionais do direito, se quiserem participar do modo correto da experiência juridical concreta, têm de romper a inércia e abrir suas portas à reflexão teórica. Fato: para isso aconteça, a Academia tem de parar de escrever para si mesma.
Agora, é preciso ter cuidado para que algo não se perca na tradução do jargão acadêmico para o prático. A solução não é a simplificação do Direito, como chega a sugerir Posner[20] - até porque esta seria, se estamos certos em nossas observações, falha por definição. Acadêmicos devem, sim, esforçar-se para simplificar o que pode ser simplificado. Mas a apreensão do que for de fato complexo depende não apenas deste (justificado e necessário) esforço da academia de estabelecer uma comunicação produtiva com a prática, mas, em grande medida, da responsabilidade dos juízes e demais práticos para com os verdadeiros desafios de suas profissões.
Juízes não leem Dworkin? A solução não está em fazer com que a Academia abandone a filosofia moral e passe a se interessar por o que quer que seja que os juízes estejam de fato fazendo ou lendo, se é que estão; mas sim, em tornar a reflexão teórica mais compreensível e clara aos juristas profissionais, com o que tornará sua própria atividade mais útil e consequente.
Será que estamos esperando demais de um lado e de outro? Provavelmente.
Notas e Referências
[1] Juízes e Professores de Direito falam sobre assuntos distintos, se é que efetivamente conversam. Esta tradução, bem como as demais realizadas ao longo desse texto, são de responsabilidade dos autores deste texto.
[2] POSNER, Richard. Divergent Paths: the Academy and the Judiciary. Cambridge, Massachusetts; London, England: Harvard University Press, 2016. Os autores desta coluna estão atualmente desenvolvendo, em conjunto, um trabalho (artigo científico) mais abrangente a respeito dos temas referidos nesta coluna. O título provisório é Teoria, antiteoria e prática: um passeio pelos Divergent Paths de Richard Posner.
[3] Este argumento já havia sido apresentado por Posner em trabalhos anteriores e, com especial ênfase, em: POSNER, Richard A. How Judges Think. Cambridge, Massachusetts; London, England: Harvard University Press, 2008.
[4] POSNER, Richard. Divergent Paths: the Academy and the Judiciary. Cambridge, Massachusetts; London, England: Harvard University Press, 2016, p. x-xi.
[5] Eunucos num harém; eles sabem como é feito, eles veem-no ser feito todos os dias, mas eles não têm capacidade de fazê-lo por si mesmos. POSNER, Richard. Divergent Paths: the Academy and the Judiciary. Cambridge, Massachusetts; London, England: Harvard University Press, 2016, p. xi.
[6] Muito embora a descrição da passividade dos juízes, que se autoconceberiam como meros árbitros de um jogo judicial, cuja função principal seria, intuitivamente, proclamar um resultado, ao passo em que a articulação dos fundamentos da decisão seria uma tarefa secundária a ser delegada para assessores, não deixa de ser ocasionalmente familiar. Ver: POSNER, Richard. Divergent Paths: the Academy and the Judiciary. Cambridge, Massachusetts; London, England: Harvard University Press, 2016, p. 131-140.
[7][7] POSNER, Richard. Divergent Paths: the Academy and the Judiciary. Cambridge, Massachusetts; London, England: Harvard University Press, 2016, p. xii.
[8] POSNER, Richard. Divergent Paths: the Academy and the Judiciary. Cambridge, Massachusetts; London, England: Harvard University Press, 2016, p. 8.
[9] FALLON JR., Richard H; Three Symmetries between Textualist and Purposivist Theories of Statutory Interpretation – and the Irreductible Roles of Values and Judgement within Both, 99 Cornell Law Review, 685, 734, 2014.
[10] POSNER, Richard. Divergent Paths: the Academy and the Judiciary. Cambridge, Massachusetts; London, England: Harvard University Press, 2016, p. 43.
[11] POSNER, Richard. Divergent Paths: the Academy and the Judiciary. Cambridge, Massachusetts; London, England: Harvard University Press, 2016, p. 44.
[12] POSNER, Richard. Divergent Paths: the Academy and the Judiciary. Cambridge, Massachusetts; London, England: Harvard University Press, 2016, p. 278.
[13] POSNER, Richard. Divergent Paths: the Academy and the Judiciary. Cambridge, Massachusetts; London, England: Harvard University Press, 2016, p. xii.
[14] POSNER, Richard. Divergent Paths: the Academy and the Judiciary. Cambridge, Massachusetts; London, England: Harvard University Press, 2016, p. 76-79.
[15] Este é um dos pontos investigados no trabalho dos autores deste texto, ainda inédito e em desenvolvimento, referido anteriormente.
[16] “Juízes não são ‘filosóficos’. Eles não se engajam em discussões obstrusas de ‘significado’. Eles não leem H. L. A. Hart ou Ronald Dworkin, ou os floreios de gurus atuais do constitucional como Laurence Tribe and Akhil Amar.” POSNER, Richard. Divergent Paths: the Academy and the Judiciary. Cambridge, Massachusetts; London, England: Harvard University Press, 2016, p. 277.
[17] Este ponto é desenvolvido com mais vagar em: MOTTA, Francisco José Borges. Ronald Dworkin e a decisão jurídica. 2. ed. rev. e ampl. Salvador: Juspodivm, 2018.
[18] POSNER, Richard. Divergent Paths: the Academy and the Judiciary. Cambridge, Massachusetts; London, England: Harvard University Press, 2016, p. 273.
[19] POSNER, Richard. Divergent Paths: the Academy and the Judiciary. Cambridge, Massachusetts; London, England: Harvard University Press, 2016, p. 263.
[20] POSNER, Richard. Divergent Paths: the Academy and the Judiciary. Cambridge, Massachusetts; London, England: Harvard University Press, 2016, p. 45.
Imagem Ilustrativa do Post: Figures of Justice // Foto de: Scott Robinson // Sem alterações
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