Após quinze minutos na antessala do consultório, a porta é aberta por dentro. Perfazendo um ângulo de 90º, os ponteiros confirmavam o início pontual da sessão às 15:00h. Aquela era a rotina de J. às quartas pela tarde. Tudo começara por ocasião do "rompimento" com o Metafísico.
Diante da porta entreaberta, a paciente levanta-se empertigada do sofá de espera. Aquela seria uma sessão diferente. Teria 3/4 de hora para falar sobre seus sonhos. 45 minutos para externar "eventuais" angústias. 2.700 segundos para ordenar seus pensamentos. Sentou-se. A "cathedra" fazia as vezes do divã.
Ainda hoje era vívida a lembrança da primeira sessão, então agendada por seu ex. Talvez o Metafísico tivesse feito tudo aquilo em prol da reconciliação. Talvez não. Não tinha importância. Des(re)encontravam. Todo desligar era sucedido de um ligar que lhe retroagia.
Já não vivia a calmaria da tempestade, senão a tempestade da calmaria. Poderia encerrar aquela rotina a qualquer momento sem se arrepender. Mas não encarava aquilo como uma terapia de alma, conquanto fosse uma terapia de vida.
Doutor: Boa tarde.
Paciente: Boa tarde, doutor.
[O doutor sinalizou para que se acomodasse e o início da sessão foi imediato.]
Paciente: Fui atropelada por um turbilhão de pensamentos desde a última sessão. Sensações diferentes. Não há tristeza, mas parece subsistir angústia. Vejo dor e sofrimento. Não trago traumas. Ao menos penso que não [Ainda titubeava com a ideia de que o consciente era a parte emersa do iceberg. Custava a admitir que não tinha inteiro controle]. Já se passaram algumas semanas desde a última sessão. Reitero meu pedido de desculpas.
[Compromissos profissionais haviam lhe forçado a cancelar sessões anteriores.]
Doutor: A Senhora não precisa se preocupar.
Paciente: Foram situações emergenciais...
Doutor: Entendo perfeitamente. Estimo a complexidade de seu ofício.
Paciente: De toda sorte... De toda sorte, não vim para falar de trabalho. Nesta sala consigo me desconectar de tudo. Aliás, somente nela.
[E quando o trabalho não era o ponto de partida, era o ponto de chegada. Quando os conflitos e divergências familiares não eram a causa, faziam-se consequência. Em geral os pacientes nutriam a ilusão de que família e trabalho não eram convidados às sessões. Mas as sessões nunca eram individuais.]
Paciente: Tenho me detido em algumas questões. Ainda não consegui me organizar para ler as obras recomendadas. Já as adquiri, inclusive. Outras questões têm me "atormentado".
[O doutor alterou o semblante e aguardou (a) paciente(mente) expor quais eram aquelas questões.]
Paciente: Tenho sonhado histórias parecidas há mais ou menos dois meses. Os sonhos foram recorrentes nas últimas três semanas. O mesmo sonho, em verdade. Demorei a notar a recorrência, pois sempre havia algo de novo.
[Profissional e paciente se entreolharam por um instante enquanto os olhos dela passeavam pela sala e seu olhar ficava distante. O ambiente era silencioso. Ornamentada com pinturas e esculturas, a sala lhe remetia ao ex... A maior parte da luminosidade natural era contida por persianas, mas o ambiente não era escuro. Havia perfeito equilíbrio entre os fachos de luz do sol e as luminárias cuidadosamente alocadas em dois cantos da sala. Naquele sítio infenso a ruídos sonoros, o silêncio do ser ensimesmado pareceu uma eternidade. Sempre ensaiava a melhor forma de começar; de ir direto ao ponto. E se de relance os ponteiros ainda não haviam abandonado os 90º, isso não passava de um engano. Lendo engano.
Rompeu o silêncio.]
Paciente: Os sonhos tomam forma em outras épocas e países. Não percebo planos de viagem, despedida, malas ou coisa parecida. Tampouco reconheço caras e pessoas. Tudo é inteiramente novo. E sempre estou em atividade... trabalhando, comendo, passeando... Quero dizer. Tenho uma rotina própria nos sonhos. Aliás, uma rotina não muito diferente da atual. É como se eu pertencesse àqueles lugares. Sinto-me perfeitamente conectada às diferentes culturas. Vai além do respeito ou de alguma dose de admiração. São laços sanguíneos... [e continuou o insight] laços de sangue me ligam àqueles lugares e cultura.
Doutor: E que países são esses?
Paciente: Itália... Itália [Repetiu em um tom mais baixo]. Primeiramente, os sonhos me remeteram às paisagens de uma determinada região do Piemonte. Mas também percorro diferentes monumentos históricos em Roma.
Tive uma certa dificuldade em identificar o outro país. Inicialmente, via construções imponentes; um grande rio cortando cidades; várias pontes... Depois percebi que transitava por regiões da Áustria, Hungria e adjacências [Gesticulava com as mãos. Tinha o hábito de gesticular, a tal ponto que a melhor maneira de lhe silenciar seria imobilizando seus punhos]. Mas como se fossem um só. Em algumas localidades parecia haver uma confusão com a Itália.
Doutor: E você frequenta esses lugares no mesmo período?
Paciente: Não, não. São épocas distintas. Suponho ante a variação de roupas; há uma clara mudança de estilos.
[A paciente mergulhou no silêncio enquanto resgatava imagens de vestidos de gala.]
Doutor: Fale um pouco mais sobre os sonhos.
[Continuou a descrever paisagens, castelos, igrejas, pinturas, estátuas etc. com riqueza de detalhes. A paciente era extremamente culta e exibia isso com orgulho. Eis que o monólogo sofreu uma mudança abrupta para enveredar por questões políticas da época.]
Paciente: Tenho uma sensação estranha nos sonhos. Testemunho uma espécie de tragédia nesses países. Algo que se alastra com facilidade. Contagiante. Uma espécie de vírus.[1] Não consigo explicar direito. Sei que isso se passa no final do séc. XIX.
Doutor: Vírus?! [O doutor transpareceu perplexidade.]
Paciente: Isso. Um vírus. É quando o sonho assume vontade própria e pretende se fazer pesadelo. Quiçá "vírus" não seja... Bom, ainda não encontrei outra forma para retratar o que se passa nesses sonhos. Um dia desses encontrei o Metafísico por acaso. Comentei esse misto de sonho e pesadelo brevemente...
[O semblante do doutor lhe pareceu interrogativo.]
Paciente: Ele entendeu bem. A princípio perguntou se comprometia a saúde. Mas essa foi a única pergunta.
Doutor: O vírus?
Paciente: Não é um vírus como os que conhecemos. Não tenho notícias de problemas de saúde. Seus sintomas devem ser outros... Só sei que as pessoas contagiadas não percebem isso. Muito embora acordadas em meus sonhos, fico com a sensação de que elas é que estão dormindo.
[O doutor continuava impassível; não demonstrava consternação. Conquanto o sonho pudesse ser inusitado aos olhos de terceiros, seus ouvidos estavam calejados. Para ele, sonhos podiam ser explicados por uma metáfora: Consciente e Inconsciente, dois amigos, pondo-se a conversar à mesa de um bar. Não apenas o Inconsciente abusava do sentido figurado, como o Consciente tinha por hábito esquecer dessas conversas. E, ao raiar do dia, tudo sempre aparentava estar sob o controle; a ordem subjacente ao caos.[2]
O relato ficcional era um fio condutor ao real. O doutor acompanhava tudo atentamente.]
Doutor: E o que desencadeou esse vírus?
Paciente: É um vírus de laboratório. Tudo indica que algum engenhoso cientista tenha sido responsável por ele. Obviamente, partindo de construções de outros pesquisadores. Ninguém é uma ilha...
Doutor: Você aludiu a laboratório?!
Paciente: Isso. Para ressaltar o produto humano. Foi algo projetado com calma... pouco a pouco.
Doutor: E quem foi o "cientista"?
Paciente: Ainda não consegui desvendar. Já identifiquei o período. Como disse, uma parte do sonho se passa ao final dos oitocentos.
Doutor: E como você percebeu isso?
Paciente: Em algum momento, estou em um café folheando o jornal. A notícia de um acontecimento importante prende minha atenção. Um Código de Processo Civil é editado. Um código revolucionário. É o ano de 1895. Franz Klein se notabilizou mundialmente por ter projetado essa codificação [A paciente e sua vocação de universalizar o Ocidente...]. O senhor sabe que esses assuntos me interessam.
Doutor: Klein?
Paciente: Isso. Depois de ler o nome no periódico fui pesquisar a seu respeito. Vi que ele foi Ministro da Justiça ao tempo do Império Austro-Húngaro, sendo o principal responsável pela Ordenanza Processual Civil austríaca que entrou em vigor em 1898. Foram três anos em "vacatio legis". Essa codificação exerceu grande influência na Europa e além-mar,[3] visto que encartou um novo modelo de processo civil, rompendo com o processo escrito do séc. XIX. Daí porque muitos o consideraram um código revolucionário. Há quem tenha qualificado isso como "revolução copernicana".[4]
Doutor: "Vacatio legis"? Copérnico?
[A paciente não se fez de rogada e continuou a concatenar pesquisas e ideias.]
Paciente: A Ordenanza austríaca corresponde ao nosso Código de Processo Civil, lembrando que já estamos no terceiro código desde a unificação da legislação processual. Aliás, é possível que em breve um grupo de processualistas se levante em defesa de um nova codificação... Mas isso não tem relevância no momento.
Dentre outros pilares, o código austríaco foi erigido em torno do aumento dos poderes dos juízes. A revolução operada por Franz Klein, pareceu-me consubstanciada na ideia de que o processo não está a serviço das partes, senão que é um instrumento do Estado-juiz. Tudo isso deve ser compreendido no contexto da "publicización del proceso";[5] no caso dele, com um certo "verniz" social.[6] Mesmo porque, em Klein o processo (judicial) era uma peça da engrenagem estatal à concretização do Welfare State, um instrumento (político) à sua consolidação.[7]
Doutor: Publicização? Neologismo?
Paciente: Doutor, quando fui aprofundar a matéria tive a sensação de estar conhecendo minha árvore genealógica. Minhas raízes... Mas não quero perder o raciocínio.
O modelo de processo predominante em alguns países da Europa no século XIX foi caracterizado pela doutrina como escrito, formal e lento; como seu andamento ficava à inteira sorte das partes, já que os magistrados não eram munidos de poderes à sua condução formal, além de ser moroso, também foi rotulado de "coisa das partes" (Sache der Parteien), atribuindo-se-lhe a "pecha" do modelo liberal-individualista.[8] Então sob a hegemonia de uma visão privada do procedimento judicial e do conflito ("duelo privado"), não é ocioso recordar que o direito processual ainda carecia de um estatuto científico.
Na esteira de esforços já presentes no direito romano, Oskar Büllow é reconhecido como um dos responsáveis pela dignidade científica do direito processual. Em 1868, com a publicação da obra La teoría de las excepciones procesales y los presupuestos procesales, Büllow apartou o direito processual do direito material, assentando a autonomia do primeiro ao demonstrar a configuração da relação jurídica processual em vista de seus requisitos próprios, específicos (os "pressupostos processuais"); uma relação integrada pelo Estado-juiz, revestindo-se de caráter público, de modo que não devia ser encarada como uma espécie de derivação das relações jurídicas contratuais.[9] Desde então, a ele é tributada a certidão de nascimento do processo. Muitos autores apontam o ano de 1868 como o marco do processualismo científico.[10]
Permita-me abrir um parêntese.
Doutor: Pois não.
Paciente: Sob a perspectiva filosófico-científica, a exigência de sistematização do conhecimento precede o gênio de Kant. Contudo, a partir desse filósofo, mormente sua Crítica da Razão Pura (1781), a organização do saber em sistema (unidade sistemática) se tornou m imperativo científico, vale dizer, condição indispensável a que um dado conhecimento vulgar galgasse o status de ciência.[11] A ênfase na sistematização foi tamanha que Mario Losano sustentou a confusão dentre sistema e ciência no pensamento kantiano.[12] Doutor, tudo isso é fundamental à compreensão do esforço de Oskar Büllow. O senhor está acompanhando?
[O doutor meneou cabeça positivamente e ainda teve o cuidado de enfatizar contraindo o sobrecenho. Não tinha dificuldades em acompanhar a parte filosófica, o que fazia muita diferença nas sessões com aquela paciente.]
Paciente: Contextualizando ao direito processual, a obra de Büllow conduziu à superação do empirismo outrora reinante, pois as contingências eram repudiadas pelo paradigma científico,[13] tendo galgado os passos decisivos à construção de uma base dogmática sistematizadora da qual o processo civil era então carente;[14] isso sem descuidar os frutos hauridos da polêmica Windscheid x Müther (1856-1857); e a consolidação das bases científicas por Adolf Wach (1888) mediante a obra A pretensão de declaração: um aporte para a teoria da pretensão e da proteção do direito.[15] Claro, já ia me esquecendo que Oskar Büllow foi um dos mais notáveis representantes da Escola do Direito Livre. Voltarei ao assunto oportunamente.
Em vista dos diferentes problemas do processo escrito do séc. XIX, tendo sido simbolizado negativamente por sua influência liberal e individualista; e considerando que o direito processual ainda carecia de uma plataforma científica, não é difícil perceber que o status científico foi conquistado por meio do publicismo, pois que a fase privatista nos manteve "sufocados" no procedimentalismo. Nesse sentido, a associação público-científico é natural. E isso não deve ser questionado por qualquer estudioso. Doutor, quiçá iluminados pelo Iluminismo, já naquela época a doutrina percebeu que todo e qualquer aperfeiçoamento do processo está atrelado à presença mais intensa do Estado ou à sobreposição dos interesses privados pelo público.
[A paciente parecia discursar para um auditório atento e lotado. A alusão ao Iluminismo remeteu o auditório à exacerbação da razão. Mas a paciente prosseguiu empolgada com seu discurso racionalista.]
No processo escrito do século XIX os juízes tinham um papel de somenos importância; alguns chegaram a descrevê-lo como "convidado de pedra", visto que o processo judicial ficava à inteira sorte dos sujeitos parciais. A descrição é apropriada. Provável que essa tenha sido a principal causa à sua morosidade.
Tendo por premissa a ideia do processo (judicial) como um "mal social" que afetava a economia, desgaste social etc., supondo, ademais, o descompromisso das partes ao seu encerramento, Klein vislumbrou o aumento dos poderes dos juízes como a solução para esses entraves. Consigo imaginá-lo dizendo "Eureka"... Esse aumento também foi propiciado pela instituição de um modelo oral, é dizer, de predominância da palavra falada sobre a escrita, entre outros consectários.
[A paciente prosseguia empolgada. O tom inicial de desabafo havia cedido espaço ao professoral.]
Paciente: A partir da "publicização", mormente pelo contributo de Klein, os juízes passaram a ter poderes para conhecer os pressupostos processuais oficiosamente e para garantir a adequada marcha processual, dando-lhe impulso (impulso oficial); é o que se pode chamar de "poderes formais". Mas não só. A eles foram adensados os "poderes materiais", isto é, aqueles que podem influir no conteúdo da decisão, tal como sucede com a determinação oficiosa de provas e o conhecimento de circunstâncias não alegadas por qualquer das partes.[16]
Doutor: Um juiz mais poderoso para resolver o problema da justiça?
[O doutor não apenas disparava provocações convidando o Inconsciente à sessão, como parecia interessado em compreender o assunto. Guardou a menção à árvore genealógica em sua memória. A paciente não estaria descobrindo antepassados... talvez estivesse tomando consciência da origem de suas lentes; de seu(s) paradigma(s).]
Paciente: Sem dúvida. Mas não só. Retenha-se o que afirmei anteriormente. Um juiz que pudesse concorrer à concretização do projeto de Estado Social, assim como acelerar a resolução dos processos. Definitivamente, não faz sentido deixar as coisas soltas, sob o "controle" [as aspas são da paciente] das partes.
[A paciente fez uma pausa para beber água.]
Doutor: Ora, mas o início do processo depende de nós, cidadãos. Não é assim que funciona? No cenário que você descreve seria natural o Estado fazê-lo.
Paciente: Não, não. Isso seria um absurdo! Naquela época, o processo também começava à "instância da parte", visto que Klein não chegou a professar os valores abrigados por alguns países comunistas.
Permita-me continuar. Vejo que o senhor está interessado.
Doutor: Verdade. É que não entendi o motivo de um instrumento à concretização de um projeto de Estado ficar a cargo das partes... Por favor, continue.
Paciente: A guinada científica do direito processual também foi política, difundindo-se a ideia do processo como instrumento (político) do Estado-jurisdição. Observe que essa ideia já estava presente no pensamento de Klein, incorporada pelo CPC austríaco de 1895, sendo uma premissa expressamente adotada na Exposição de Motivos do CPC italiano de 1940. A história do direito é a do poder. Não parece ser diferente com a história (científica) do processo.
Por carrear o ideal de promoção de igualdade efetiva entre os sujeitos do processo, entre outros escopos que devem ser encartados como fins da jurisdição, a atribuição de mais poderes aos magistrados foi algo natural. Inerente ao contexto da publicização a que me referi. Uma espécie de "publicientificização", amálgama do público ao científico [Publicientificização?! Desta vez, nem o narrador conteve a incredulidade]. Estou convencido que isso foi (e é) imprescindível.
Doutor: Pelos autores que leu?
Paciente: Isso. Dos autores que li. Não foram muitos... mas estou convencida.
Doutor: Suponho ter havido alguma pesquisa para determinar isso, é dizer, incremento da presença do Estado, não?
Paciente: Desconheço. Mas não entendi a relevância da pergunta.
Doutor: Pareceu resoluta. Apenas isso. Voltando. Isso que você disse, munir os juízes de poderes, foi imprescindível à época? Final do séc. XIX, correto?
Paciente: Exato. Até porque, há uma estreita relação entre o modelo processual e o modelo político. Tudo isso foi imprescindível naquela época, mas continua sendo. Primando pela clareza, permita-me ir além. Acredito que exista uma proporcionalidade entre os poderes do juiz e a realização de justiça. Quanto mais poderes, tanto maior a possibilidade de se obter justiça.[17]
Doutor: Confesso que não entendi. O modelo político de seu sonho é o mesmo de nossa realidade atual? O modelo da sociedade que você descreve é o do Brasil do séc. XXI?
Paciente: Decerto que não! Me referi ao Estado Social...
Doutor: E essas mesmas ideias devem ser defendidas à luz do modelo brasileiro? Quem define o que é justiça?
[A paciente ignorou as perguntas e continuou. O doutor, ainda que leigo, estranhava aquelas ideias.[18] Não estando ali para opinar ou debater, calou-se.]
Paciente: Confesso que li algumas coisas que me deixaram intrigada. Por exemplo. Vi que Moacyr Amaral Santos, conhecido processualista brasileiro, rotulou o modelo de juiz preconizado por Klein de autoritário.[19] Acredito que ele não sabia o que estava dizendo. Em verdade, não acho que o "moralismo" e o "socialismo" preconizados por Klein sejam problemas.[20] Afinal, se o senhor estivesse litigando com outra pessoa, não acharias apropriado que o comportamento processual de seu adversário pudesse ser controlado jurisdicionalmente por argumentos de fundo moral? E se seu advogado cometesse algum deslize técnico, acaso o senhor discordaria da ajuda do juiz?
Doutor: Eu?! Receio não ter condições para responder isso.
Paciente: Não há comprometimento da imparcialidade [Pensou alto].
Doutor: ?!
Paciente: Tudo isso me remete ao pensamento de Giuseppe Chiovenda.
Doutor: O que ficará para a próxima sessão.
Paciente: Já?! Tudo bem. Seguirei com as leituras para voltar com as ideias concatenadas. Vi que o senhor pareceu confuso a maior parte da sessão.
[A paciente fazia perfeita leitura corporal... muito embora o corpo do doutor falasse várias línguas, J. era poliglota.]
Notas realizadas pelo Dr. P. (sessão do dia 29 de novembro de 2017):
Seus sonhos parecem lhe remeter a um passado que explica seu presente. Talvez o "ser" atual esteja tomando consciência dos "seres" pretéritos. Não conseguirá compreender o ser-aí enquanto não desvendar o passado que lhe assombra o sono.
Refere-se a um vírus, mas não consegue explicar sua origem. Tampouco esclarece se também foi infectada.
Por outro lado, continua acreditando-se estritamente racional. Não tanto pelo que consta das linhas, mas por aquilo que pulsa das entrelinhas. Não tanto pelo posto, senão pelo pressuposto em seu discurso. Descura multidimensionalidade do sujeito. Endossa a pregação iluminista sem ressalvas, alimentando a crença da hegemonia da razão.
[1] [Até aquele momento, a paciente ainda não havia percebido que aquela era a descrição de Correia de Mendonça sobre o pensamento e a influência de Franz Klein e outros sobre o processo civil de muitos países da Europa e além-mar.] MENDONÇA, Luís Correia de. Vírus autoritário e processo civil. Julgar. v.1. janeiro-abril, 2007. Disponível em: http://julgar.pt/virus-autoritario-e-processo-civil. Acesso em 12 nov. 2017.
[2] Essa é uma crença da paciente, imersa no paradigma da modernidade. O caos sempre seria aparente, carente do esforço do intelecto para ser simplificado, ordenado e apreendido. Essa é uma crença moderna. Sobre o tema, cf. BERTALANFFY, Ludwig von. Teoria geral dos sistemas: fundamentos, desenvolvimento e aplicações. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 2009, p. 239-240. MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Trad. Eliane Lisboa. 4. ed. Porto Alegre: Sulina, 2011, p. 12.
[3] SPRUNG, Rainer. Os fundamentos do direito processual civil austríaco. Revista de Processo, São Paulo, RT, v. 17, jan.-mar. 1980, p. 138-149.
[4] A expressão fora empregada por Carlos Alberto Alvaro de Oliveira, pois que, segundo ele, em sua renovada visão da administração civil, Klein teria se recusado a aderir tanto ao esquema autoritário quanto à visão puramente individualista; tanto ao processo romano-justinianeo, quanto ao processo comum e aos liberais do século XIX, respectivamente. Do formalismo no processo civil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 50. Enaltecendo a contribuição de Klein ao aumento dos poderes dos magistrados à condução dos processos: BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Efetividade do processo e técnica processual. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 108.
[5] Assim: CAPPELLETTI, Mauro. Proceso, Ideologias, Sociedad. Trad. Santiago Sentís Melendo e Tomás A. Banzhaf. Buenos Aires: Ediciones Juridicas Europa-America, 1974, p. 23.
[6] Sobre o tema, ver: RAATZ, Igor. A organização do processo civil pela ótica da teoria do Estado: a construção de um modelo de organização do processo para o Estado Democrático de Direito e o seu reflexo no projeto do CPC. Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 19, n. 75, jul./set. 2011. Disponível em: . Acesso em: 9 nov. 2017.
[7] GARTH, Bryant G.. Franz Klein, Mauro Cappelletti y la misión de los cultores del Derecho procesal comparado. Derecho-puc: Revista de la Facultad de Derecho de la Pontificia Universidad Católica del Perú, Lima, v. 52, p.555-564, dez. 1998. Quadrimestral.
[8] Sobre o tema, ver: CAPPELLETTI, Mauro. Proceso, Ideologias, Sociedad. Trad. Santiago Sentís Melendo e Tomás A. Banzhaf. Buenos Aires: Ediciones Juridicas Europa-America, 1974, p. 16-17; p. 35-44.
[9] Nesse sentido: RAATZ, Igor. Desvelando as bases do processualismo científico: ou de como a teoria do processo nasceu comprometida com o protagonismo judicial. Empório do Direito, Florianópolis, Coluna ABDPro. Disponível em: <http://emporiododireito.com.br/leitura/desvelando-as-bases-do-processualismo-cientifico-ou-de-como-a-teoria-do-processo-nasceu-comprometida-com-o-protagonismo-judicial-por-igor-raatz>. Acesso em: 08 nov. 2017.
[10] Nesse sentido: GOLDSCHMIDT, James. Principios generales del processo. Buenos Aires: Ediciones Juridicas Europa-America, 1961, p. 16; MARQUES, José Frederico. Instituições de direito processual civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1966, v. 1, p. 108 e ss.; ROCHA, José de Moura. Estudos sôbre o processo civil. Recife, Universidade Federal de Pernambuco, 1969, p. 322; GOMES, Fábio Luiz; SILVA, Ovídio A. Baptista. Teoria geral do processo civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p. 34; FERNANDES, Antonio Scarance. Teoria geral do procedimento e o procedimento no processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 23; DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2005, v. 1, p. 277. MITIDIERO, Daniel Francisco. O processualismo e a formação do Código Buzaid. Revista de Processo, São Paulo, RT, Ano XXXV, n. 183, maio 2010, p. 165-194.
[11] KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. 5. ed. Trad. Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Alfradique Morujão. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, p. 657.
[12] LOSANO, Mario G. Sistema e estrutura do direito: das origens à escola histórica. Trad. Carlos Alberto Dastoli. São Paulo: Martins Fontes, 2008, v. 1, p. 131.
[13] Paradigma da ciência moderna.
[14] Observando que o movimento de publicização é anterior ao pensamento de Büllow, mas é com ele que o direito processual civil ganha seu apelo sistemático na esteira do reconhecimento de uma relação jurídica pública e autônoma em relação aos direitos materiais nela discutidos. Sobre esses passos iniciais já existentes no direito romano no período da extraordinaria cognitio, ver: SILVA, Carlos Augusto. O Processo Civil como Estratégia de Poder: reflexo da judicialização da política no Brasil. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 29 e ss.
[15] Nesse sentido: RAATZ, Igor. Desvelando as bases do processualismo científico: ou de como a teoria do processo nasceu comprometida com o protagonismo judicial. Empório do Direito, Florianópolis, Coluna ABDPro. Disponível em: <http://emporiododireito.com.br/leitura/desvelando-as-bases-do-processualismo-cientifico-ou-de-como-a-teoria-do-processo-nasceu-comprometida-com-o-protagonismo-judicial-por-igor-raatz>. Acesso em: 08 nov. 2017.
[16] Sobre essa herança autoritária de Klein, ver: AROCA, Juan Montero. Los principios políticos de la nueva Ley de Enjuiciamiento Civil: los poderes del juez y la oralidad. Valencia: Tirant lo Blanch, 2001, p. 66-71.
[17] " El mito procesal al que me refería y me sigo refiriendo es el de la publicización del proceso civil, en el que se han escondido mitos derivados, como el del proceso que llaman “social”, mitos que deben conjugarse con el del juez que hace “justicia” a pesar de las partes y, por tanto, en contra de sus abogados, para lo que necesita de amplios poderes44. Se trata de la idea mítica, es decir, ilusoria, de que siendo el proceso como es un instrumento de “justicia” (siempre entre comillas o en cursiva) cuanto mayores sean los poderes del juez tanta más “justicia” podrá conseguirse. En el fondo no se sabe muy bien si se trata de la misma o de otra “giustizia sociale” a la que se referían Calamandrei y Grandi cuando decían, en la Relazione núm. 2 al final, que la misma era la meta de la Revolución (con mayúsculas) fascista, o si se confunde o se debe diferenciar de aquella “justicia social” a la que aspiraba el socialismo, conforme a las Bases del Proceso Civil de la URSS de 1961 y el Código de 1964." MONTERO AROCA, Juan. El proceso civil llamado "social" como instrumento de "justicia" autoritaria. In: Proceso civil e ideología: un prefacio, una sentencia, dos cartas y quince ensayos. Juan Montero Aroca (coord.). Valencia: Tirant lo Blanch, 2006, p. 130-166.
[18] No ponto, ver a precisa crítica de Lúcio Delfino, demonstrando que o núcleo instrumentalista poderia estar alinhado ao projeto de Estado Social, mas que não está alinhado ao Estado Democrático de Direito, paradigma instituído entre nós pela CF/88. Daí porque não é possível insistir na ideia de que o processo seja mero instrumento da jurisdição. Mas a paciente ainda não tinha percebido isso. Outro era o paradigma dela. Ver: A espetacularização do processo (uma preleção em família). Empório do Direito. Disponível em: http://emporiododireito.com.br/leitura/a-espetacularizacao-do-processo-uma-prelecao-em-familia-por-lucio-delfino>. Acesso em: 02 nov. 2017.
[19] SANTOS, Moacyr Amaral. Prova judiciária no cível e comercial. 3. ed. São Paulo: Max Limonad, 1968, v. I, p. 355.
[20] Referindo-se à função de moralização e socialização do Código Klein, ver: CAPPELLETTI, Mauro. Proceso, Ideologias, Sociedad. Trad. Santiago Sentís Melendo e Tomás A. Banzhaf. Buenos Aires: Ediciones Juridicas Europa-America, 1974, p. 18.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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