Coluna ABDPRO
CONSIDERAÇÕES INCIAIS.
Na última segunda-feira, 08.04.2019, o professor Luiz Guilherme Marinoni publicou um texto (https://www.conjur.com.br/2019-abr-08/direito-civil-atual-possibilidade-prisao-antes-transito-julgado) sobre a possibilidade de execução provisória da pena, muito por conta da iminência (?) da retomada do julgamento das Ações Declaratórias de Constitucionalidade ns. 43, 44 e 54 pelo Supremo Tribunal Federal. O texto me impactou tanto que escrevi essas linhas.
A AUTONOMIA DO DIREITO ENTRE METODOLOGIA E POLÍTICA.
Tratando dos métodos interpretativos utilizados pelo STF, nosso autor diz o seguinte:
“O STF, na ADI 1.127, alterou vários artigos do Estatuto da Advocacia (Lei 8.906/94). Não só excluiu, por inconstitucionalidade, parcelas dos próprios dispositivos, mas, sob a afirmação de estar fazendo interpretação conforme, pronunciou norma — sem declarar a inconstitucionalidade do texto — que nitidamente exigiria acréscimo de conteúdo ao dispositivo legal ou a sua própria alteração [2]. O mesmo modo de decidir foi adotado na ADPF 132 [3]. Nesse caso, realizou-se interpretação conforme à Constituição do artigo 1.723 do Código Civil — que afirma que “é reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher ...”. A despeito da circunstância de que o STF deveria ter proferido “decisão manipulativa”, já que não há como fazer interpretação conforme contra o texto de um dispositivo legal [4], o que importa é que a Corte, ao rejeitar a constitucionalidade do artigo 1.723 do Código Civil, teve que elaborar sofisticada e adequada justificativa para também negar o texto do artigo 226,§ 3º, da Constituição Federal.
Ora bem, como o STF, ao decidir por unanimidade, não admitiu que pode “reinventar” a Constituição, ele indiscutivelmente fixou um critério ou uma diretiva para a sua interpretação, que evidentemente não é uma diretiva presa ao texto da Constituição ou às doutrinas que lhe deram origem. Aliás, isso está confessado na unanimidade dos votos dos Ministros que afirmaram a inconstitucionalidade do artigo 1.723 do Código Civil e advertiram para a circunstância de que a Corte, diante da realidade da vida em sociedade, não pode se render à literalidade do texto da Constituição”.
Está claro: desconsiderem-se os limites semânticos do texto, o que baliza a interpretação judicial é a “realidade da vida em sociedade”.
Mas o que vem a ser essa tal “realidade da vida em sociedade”, que prevalece sobre o texto do direito positivo na resolução de casos jurídicos pelo STF? Lamentavelmente, o nosso autor não responder. Nem nesse texto, nem em qualquer outro.
Contudo, ele responde quem define a “realidade da vida em sociedade”. Sem surpresa, são os “Juízes Constitucionais”:
No caso brasileiro, a totalidade dos ministros do STF, ao optar por uma diretiva interpretativa funcional – indo obviamente além das diretivas linguística e sistemática –, adotou claramente a diretiva que preceitua que ao texto constitucional deve ser atribuído significado conforme aos objetivos que a Constituição deve alcançar segundo as valorações do Juiz Constitucional, necessariamente amarradas aos fatos e valores sociais contemporâneos.
Embora afirme se tratar de uma “diretiva interpretativa funcional” adotada pelos Ministros do STF, o nosso autor não esboça crítica ou reserva ao expediente, pelo contrário, enaltece os resultados alhures obtidos através dele (“entender de modo contrário, privilegiando-se a impunidade e a ineficácia da ordem jurídica penal, é necessariamente esquecer a diretiva interpretativa que já levou o STF a proferir tantas decisões importantes para o desenvolvimento harmônico da vida dos brasileiros”). Claro está que ele não apenas descreve essa prática como concorda com ela.
Isso não é novo. Trata-se da má e velha confiança no “governo dos bons juízes”, pedra de toque da obra magna de Cândido Rangel Dinamarco, A Instrumentalidade do Processo. Como bem sintetizado por Georges Abboud e Guilherme Lunelli, para o mestre das Arcadas
o juiz, inserido que é nas estruturas estatais do exercício do poder, seria o legítimo canal de comunicação entre a sociedade e o mundo jurídico. A decisão/interpretação, sob tal ótica, seria fruto das opções axiológicas predominantes da nação, conforme percebidas pelo magistrado. Com efeito, o juiz seria o intérprete qualificado e legitimado a buscar cada um dos valores predominantes na sociedade, descobrindo-lhes o significado e decidindo em conformidade aos resultados dessa busca. Para os instrumentalistas “o juiz é membro da sociedade em que vive e participa do seu acervo cultural e dos problemas que a envolvem, advindo daí as escolhas que, através dele, a própria sociedade vem a fazer no processo”. (Ativismo Judicial e Instrumentalidade do Processo. Diálogos entre discricionariedade e democracia. Revista de Processo, Revista dos Tribunais Online, v. 242, p. 21, abr./2015).
Consequentemente, os problemas da proposta do nosso autor são os mesmos que maculam a de Dinamarco: uma completa ausência de critérios para saber como definir quais são os valores predominantes na sociedade.
O resultado dessa impossibilidade é de todos conhecido: do ângulo metodológico, temos decisionismo subjetivista (Lenio Streck, André Cordeiro Leal), já do ângulo político dá-se o esmagamento da democracia pela juristocracia (Georges Abboud) ou pela guardiania do STF (Lara Freire de Bezerra Sant’Anna).
Expressões como “o juiz deve decidir conforme os valores predominantes na sociedade” (Dinamarco) ou “amarrado aos fatos e valores sociais contemporâneos” (Marinoni) não passam de enunciados meramente performáticos, pois como nada descrevem são insuscetíveis de verificação empírica sobre sua verdade e falsidade. Servem apenas para encriptar a concessão de poderes incontrastáveis ao Estado-juiz. (Ponto que deixa cristalina a identidade fundamental entre o instrumentalismo e o cooperativismo).
Nem se diga que os riscos são minimizados pelo fato de a decisão ser fruto do diálogo entre o juiz e as partes, eventualmente ampliado com a participação de amicus curiae e realização de audiências públicas, pois à míngua de balizas jurídico-positivas (i.é, critérios objetivos mínimos) o jogo de linguagem totalmente aberto é inevitavelmente suscetível ao risco do arbítrio judicial.
Referido argumento, portanto, só impressiona quem ignora (quando não desdenha) de premissa empírica (i.é, inscrita em nosso direito constitucional positivo, inclusive com status de cláusula pétrea) segundo a qual as funções do Poder (i.é, Legislativo, Executivo e Judiciário) devem atuar de modo harmônico e interdependente (arts. 2º e 60, § 4º, III, CRFB). Um dos efeitos colaterais é a frequência com que a doutrina descuida da comezinha distinção entre discursos de lege ferenda e de lege lata para sobrepor seus arquétipos ideais ao regime jurídico posto e a naturalidade com que descreve os avanços do Judiciário sobre as esferas de competências do Legislativo e do Executivo.
Tudo isso confirma a crítica, tantas vezes dirigida às teorias dos precedentes e das “Cortes Supremas” do professor Marinoni: não são teorias do direito, mas teorias normativas do poder. Ali a preocupação não é com como se decide, mas exclusivamente com quem decide (Lenio Streck). Um quem decide sem atenção ao direito constitucional positivo, arrancando de um modelo ideal secundum conscientiam do nosso autor (Nelson Nery Jr. e Georges Abboud), em detrimento da separação dos poderes, da autonomia e da autoridade do direito, descambando para a primazia, a soberania e a autoridade do Poder Judiciário.
É a aniquilação da dimensão de produção legislativa do direito, urdida no debate parlamentar pelos representantes democraticamente eleitos pelo povo (Georges Abboud e Eduardo José da Fonseca Costa), e a totalização da dimensão de aplicação judicial do direito, fruto dos provimentos vazados por indefectíveis julgadores autoilustrados.
Tudo redunda em invencível blindagem metodológica: a partir do momento em que o direito é reduzido à dimensão aplicativa desaparece qualquer referencial prévio e objetivo definidor dos limites mínimos da interpretação judicial. E se o direito é aquilo que as Cortes Supremas dizem que ele é – algo que o texto em liça deixa inequívoco –, então suas decisões estão fora do alcance de qualquer controle e crítica.
Nosso autor, contudo, faz ao menos uma exigência ao STF, qual seja, que seja fiel aos critérios ou diretivas funcionais outrora utilizados. Como se o fato de a Corte ter optado por uma “diretiva interpretativa funcional – indo obviamente além das diretivas linguística e sistemática” fizesse com que ela devesse utilizá-la sempre. (Curiosamente, o texto normativo não vincula, mas as escolhas metodológicas do passado sim.).
Referida exigência é um sem sentido, pois nenhuma Corte Suprema (do mundo!) adota um único método interpretativo, especialmente o STF, que já se contentou a decidir casos mediante aplicação apenas da “diretiva linguística”[1] e até empregando várias “diretivas” para solucionar um caso[2]. Variações que comprometem gravemente o argumento do nosso autor, embora desprezadas em seu texto.
O fato é que a questão metodológica foi tratada de modo simplório, deixando de lado toda a complexa discussão que gera na teoria do direito (tanto que os hermeneutas (Lenio Streck) chegam ao ponto de negar a relevância do “método”, compreendido como “supremo momento da subjetividade”). Não desconheço os limites quantitativos do Conjur e a impossibilidade de aprofundar todos os pontos relevantes do texto, sobretudo este, mas não custava ter ao menos mencionado a existência do debate. Em tempo: os textos do Conjur devem ter até 15.000 caracteres e o texto em questão tem 10.817, portanto era possível ao menos noticiar a questão nos 4.183 restantes.
Ao fim e ao cabo, encampa uma espécie de realismo tardio (Lenio Streck) algo soberbo, pois enquanto se gaba de superar o positivismo exegético não contaria com a adesão dos positivistas exclusivistas contemporâneos, insuspeitos (e por mim respeitadíssimos) defensores da pretensão de autoridade do direito, pois estes repelem qualquer descrição do direito que o reduza àquilo que os tribunais dizem que ele é (Scott Shapiro). Retenha-se o ponto: quanto trata da interpretação dos textos legislativos a análise limita-se ao plano semântico da linguagem (desprezando o plano pragmático, a historicidade e a tradição), bitolada nos problemas de indeterminação para concluir que só sabemos o sentido do direito quando é definido pelas Cortes Supremas, momento em que promove uma guinada metodológica que descamba na univocidade dos textos jurisprudenciais (com a licença da expressão “jurisprudenciais”, capaz de soar ofensiva aos melindrosos ouvidos transcendentalistas). Passa-se do profundo ceticismo interpretativo em relação aos textos legislativos, próprio de um realismo jurídico extremado, ao formalismo interpretativo (aqui tomado no sentido de respeito intransigente ao texto) em relação aos textos jurisprudenciais, agora sim abraçando o positivismo exclusivo (só nessa parte contariam a com a adesão deles, tal como descreve Thomas da Rosa Bustamante). O que não se explica é o porquê de a linguagem dos textos legislativos serem pura indeterminação e a dos textos jurisprudenciais serem pura determinação...
Passo ao aspecto mais dogmático do texto, prenhe de afirmações merecedoras de reproche.
OPORTUNIDADE DAS ADCs.
Nosso autor afirma que o pedido de declaração de constitucionalidade do art. 283, CPP é “intempestivo”. Provocação improcedente. O dispositivo entrou em vigor em 2011 e só recebeu interpretação destoante em fevereiro de 2016, sendo a ADC 44 ajuizada em maio do mesmo ano. Prontamente, pois.
O SENTIDO DO ART. 5º, LVII, CRFB NO TEXTO EM LIÇA.
Nosso autor entende que a execução provisória da pena não viola o art. 5º, LVII, CRFB, pois, a um, “o dispositivo não diz que ninguém será preso antes do trânsito em julgado da condenação”, e, a dois, “a prisão é um efeito da sentença condenatória”.
“O dispositivo não diz que ninguém será preso antes do trânsito em julgado”.
Exortando fidelidade ao texto do art. 5º, LVII, CRFB, segundo o qual “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”, nosso autor afirma que “o dispositivo não diz que ninguém será preso antes do trânsito em julgado”. De fato, não é isso que está escrito, ao menos não com essas palavras.
Todavia, se o que se quer é estrita fidelidade ao texto, então o professor Marinoni terá de convir que, ao contrário do que ele defende, o dispositivo também não diz, ao menos não com essas palavras, que “ninguém será preso até o exaurimento da instância ordinária” e que “o ônus da prova é de quem acusa”. Texto por texto, nem lá, nem cá. Assim, resta verificar os demais fundamentos apresentados por nosso autor.
A interpretação de que o art. 5º, LVII, CRFB, significa que “o ônus é de quem acusa” contrasta com o conjunto do seu pensamento. Explico. Ele diz que “o trânsito em julgado da sentença que declara a responsabilidade penal tem a ver com a coisa julgada material” e que “a ninguém poderá ser atribuído o estado jurídico de “culpado” – próprio da coisa julgada – antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória”. Note-se: ele reduz a presunção de inocência ao “estado jurídico de culpado” e atrela este à “coisa julgada”. Ao fazer isso, rompe qualquer relação da presunção de inocência com a questão do ônus da prova. Afinal, tomado nesse sentido tão estreito, mesmo o titular do ônus da prova é inocente até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Tal como acontece, mutatis mutandis, com o réu na ação declaratória de paternidade em que se tenha invertido o ônus da prova, afinal – e as palavras são do nosso autor – “a ninguém pode ser atribuído o estado jurídico de pai antes do trânsito em julgado da sentença que julga procedente o pedido de investigação de paternidade”. Em termos lógicos, de duas, uma: ou a presunção de inocência (i) se restringe ao estado jurídico de culpado atrelado ao trânsito em julgado – e aí não há margem para interpretar o art. 5º, LVII, CRFB, como “o ônus da prova é de quem acusa” –, ou (ii) não se restringe ao estado jurídico de culpado atrelado ao trânsito em julgado – e aí há margem para interpretar o art. 5º, LVII, CRFB, como “o ônus da prova é de quem acusa”. Impossível escolher a premissa de (i) e exigir a conclusão de (ii) – e vice-versa.
Destarte, a interpretação do nosso autor – o art. 5º, LVII, CRFB, significa “o ônus é de quem acusa” – não encontra respaldo categórico no texto constitucional, ao menos não com essas palavras, e é infiel às suas próprias premissas.
Pior: se o Supremo Tribunal Federal acolher uma leitura da presunção de inocência idêntica à do nosso autor não tardará a que se institucionalize, sem peias, a possibilidade de inversão do ônus da prova no processo penal (aliás, o que já se dá, aqui e ali, como de há muito denuncia Lenio Streck), e não será possível rechaçar tal interpretação com a leitura ora analisada do art. 5º, LVII, CRFB.
Para registro: interpreto a pressuposição de inocência (substituir presunção por pressuposição não é mero apuro linguístico, mas descrição correta do direito constitucional positivo prenhe de consequências práticas, como se tira das lições de a Eduardo José da Fonseca Costa) como regra de tratamento e como regra de julgamento. Se “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”, então até o trânsito em julgado todo réu deve ser tratado como se fosse inocente (regra de tratamento). Nada menos que cristalino, o único tratamento condigno ao estado jurídico de inocência é a liberdade, daí a pessoa só poder ser presa após o trânsito em julgado (refiro-me à prisão pena, a prisão cautelar está prevista no art. 5º, LXI, CRFB, e, claro, independe do trânsito em julgado). Na mesma linha, se o réu é pressupostamente inocente até o trânsito em julgado e esse estado jurídico só pode ser rompido com a prova (cabal) da materialidade e da autoria, conclui-se que o ônus da prova é de quem acusa (regra de julgamento). Mas isso leva em conta a historicidade e a tradição em torno do conceito (sem prejuízo, claro, do direito positivo, como se verá), o que é menoscabado no texto em apreço (“o STF, ao decidir por unanimidade, não admitiu que pode “reinventar” a Constituição, ele indiscutivelmente fixou um critério ou uma diretiva para a sua interpretação, que evidentemente não é uma diretiva presa ao texto da Constituição ou às doutrinas que lhe deram origem”).
“A prisão é efeito da condenação”.
Nada poderia ser mais equivocado que a afirmação apriorística de que “a prisão é um efeito da sentença condenatória”.
Artificial, o direito é fenômeno de imputação, não de causalidade (Hans Kelsen). As fontes sociais autorizadas prescrevem os suportes fáticos das eficácias jurídicas, autoridade que o direito brasileiro não outorga à doutrina, a quem cumpre descrever o direito, apresentar soluções corretas e promover constrangimento epistemológico de práticas errôneas ou abusivas das autoridades competentes (Lenio Streck). Logo, as relações de imputação entre suportes fáticos e eficácias jurídicas devem ser buscadas na lei, o ato máximo da democracia (Georges Abboud).
Já tendo admitido – para argumentar – que o art. 5º, LVII, CRFB, não é categórico a respeito, observo que uma rápida consulta à legislação infraconstitucional revela inequivocamente que a eficácia (ao menos principal) da sentença penal condenatória (i.é, a prisão pena) é condicionada à ocorrência do trânsito em julgado. A contrario sensu, é o que prescreve o Código de Processo Penal:
Art. 283. Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva.
E é o que demarca categoricamente a Lei de Execuções Penais, em relação a todas as modalidades de pena:
Art. 105. Transitando em julgado a sentença que aplicar pena privativa de liberdade, se o réu estiver ou vier a ser preso, o Juiz ordenará a expedição de guia de recolhimento para a execução.
Art. 107. Ninguém será recolhido, para cumprimento de pena privativa de liberdade, sem a guia expedida pela autoridade judiciária.
Art. 147. Transitada em julgado a sentença que aplicou a pena restritiva de direitos, o Juiz da execução, de ofício ou a requerimento do Ministério Público, promoverá a execução, podendo, para tanto, requisitar, quando necessário, a colaboração de entidades públicas ou solicitá-la a particulares.
Art. 164. Extraída certidão da sentença condenatória com trânsito em julgado, que valerá como título executivo judicial, o Ministério Público requererá, em autos apartados, a citação do condenado para, no prazo de 10 (dez) dias, pagar o valor da multa ou nomear bens à penhora.
Art. 171. Transitada em julgado a sentença que aplicar medida de segurança, será ordenada a expedição de guia para a execução.
Inegável, portanto, que se reduzirmos todos esses dispositivos à linguagem formalizada básica da norma jurídica Se A, deve ser B, onde A é o antecedente (i.é, elemento descritivo da norma jurídica) e B é o consequente/efeito jurídico (i.é, elemento prescritivo da norma jurídica), chegaremos invariavelmente à seguinte proposição: se é sentença penal condenatória transitada em julgado (=antecedente), deve ser a execução da pena (=consequente).
De modo que não há dúvida: no direito positivo brasileiro a prisão pena é, sim, efeito do trânsito em julgado, não da condenação. Se isso não cabe na descrição idealizada da doutrina, bem, pior para a doutrina.
Por isso mesmo a comparação com a execução provisória da decisão que condena a pagar alimentos é equivocada. Desconsidera-se o dado elementar e fundamental de que o direito positivo disciplina as hipóteses de modo diferente – o que muda tudo! O art. 1.012, II, CPC, admite expressamente a execução provisória de alimentos. Diferentemente do que ocorre com a prisão pena, o antecedente da norma jurídica de execução de alimentos não inclui o trânsito em julgado. Distinção que não é sem motivo. O direito material aos alimentos diz com o quanto imprescindível à manutenção da vida humana, ocupa o “patamar máximo de periculosidade” em face do ínsito “risco de dano extrapatrimonial irreparável in natura” (Eduardo José da Fonseca Costa). A política legislativa capturou esse dado da realidade e autorizou a execução provisória da decisão que condena a pagar alimentos. Não que isso fosse imprescindível, pois condicionar a eficácia principal de tal decisão ao trânsito em julgado daria ensejo à consumação de dano de difícil ou incerta reparação, incorrendo na proibição de proteção deficiente do direito fundamental de cessar qualquer ameaça de lesão (art. 5º, XXXV, CRFB). Inexistente semelhante imediatez fenomenológica em relação à prisão pena a solução não deriva diretamente da Constituição, resolve-se exclusivamente em termos de política criminal, que é pela eficácia somente após o trânsito em julgado.
PRISÃO PENA, EXECUÇÃO PROVISÓRIA E LEGITIMIDADE DECISÓRIA.
Nosso autor é impreciso na exposição da questão. Em dado momento ele considera “equivocado imaginar (...) que ninguém possa ser preso depois de a sentença de condenação ter sido confirmada por Tribunal de Justiça ou Tribunal Regional Federal”. Posteriormente, afirma que “chega a ser curioso imaginar que ainda possa existir presunção de inocência depois de dois juízos terem analisado a responsabilidade do réu”. Finalmente, sustenta que “a ideia de que ninguém pode ser preso, mesmo depois de dois juízos repetitivos acerca da conduta atribuída ao demandado, soa como uma tentativa de procrastinação da justiça penal em qualquer região do planeta”.
Enquanto a primeira passagem propõe que a presunção de inocência cessa quando há duas decisões condenatórias, a segunda e a terceira propõem que a presunção de inocência cessa quando dois juízos decidiram o mérito, expressão mais aberta que abarca tanto a hipótese em que as decisões têm o mesmo conteúdo (i.é, condenação na primeira e na segunda instância) ou não (i.é, absolvição na primeira e condenação na segunda instância). Na primeira hipótese, só haveria execução provisória da pena na pendência dos recursos extraordinários nos casos em que o réu fora condenado tanto em primeira como em segunda instância. A contrario sensu, o réu absolvido em primeira instância e condenado apenas na segunda instância aguardaria em liberdade o julgamento do seu recurso extraordinário e/ou recurso especial (tirante, claro, os casos de prisão cautelar). Refinamento inexistente na segunda e terceira hipóteses. Nelas, o réu condenado em segunda instância sempre seria submetido à execução provisória da pena na pendência do(s) recurso(s) extraordinário(s). Daí a necessidade de maior rigor terminológico na enunciação do tema.
Observe-se, no mais, que a articulação deixa de fora as ações penais de competência originária dos tribunais locais, nas quais a transição da instância ordinária para a instância extraordinária se dá sem duplo juízo sobre a responsabilidade penal do réu. Tal como colocado o argumento, a única conclusão seria rechaçar a prisão pena antes do trânsito em julgado em tais ações. (Ao menos o critério ora examinado pode ser apropriado por quem, como eu, repele a pretensão de autorizar a prisão pena antes do trânsito em julgado nos casos de condenação pelo tribunal do júri, proposta presente no Pacote Anticrime há pouco apresentado pelo Ministro da Justiça e da Segurança Pública.).
Pois bem.
O que foi até aqui exposto deixa claro que o entendimento favorável à prisão pena antes do exaurimento da instância ordinária não tem qualquer amparo no direito positivo. É nefasta perversão dos textos constitucional e infraconstitucional patrocinada por apertada maioria do STF.
E tudo se passa sob o signo da mais absoluta aleatoriedade. Assim como nada justifica a interpretação permissiva à prisão pena após o exaurimento da instância ordinária, não surpreenderá se, no futuro, o STF alterar seu entendimento para tolerá-la a partir do exaurimento da instância federal (i.é, no STJ), restringindo-a ao momento em que restar apenas o julgamento pelo STF. Seria apenas mais uma invencionice sem lastro jurídico-positivo.
Seja como for, a única maneira de escapar da conclusão ora defendida seria defender a inconstitucionalidade de todos os dispositivos acima transcritos, o que jamais foi feito. Não há espaço para soluções interpretativas quando elas conduzem a sentido diametralmente oposto ao dos limites semânticos do texto. Isso é declaração de inconstitucionalidade à capucha (Lenio Streck).
Restaria saber qual(is) seria(m) o(s) dispositivo(s) constitucional(is) violado(s). Busca fadada ao fracasso, pois o único artigo que tem pertinência com o tema é o 5º, LVII, CRFB, e seria demasiado exagerado concluir pela sua violação. Francamente, quem olha para o texto dele e não enxerga que a prisão pena antes do trânsito em julgado é proibida pelo menos há de convir que é tão ou mais forçado interpretar que ela é obrigatória. Nesse modo de ver, uma interpretação sincera concluiria que o dispositivo não tem densidade normativa suficiente para definir categoricamente se a prisão pena antes do trânsito em julgado é obrigatória ou proibida.
Nesse orbe, a solução é descer rumo aos comandos normativos dotados de maior grau de concretude e precisão semântica, ou seja, aptidão à decidibilidade (Jaldemiro Rodrigues de Ataíde Júnior), trajeto que invariavelmente conduziria aos arts. 283, CPP, 105, 107, 147, 164 e 171, LEP. E é a única interpretação legítima possível, dirá Winfried Hassemer:
“quando a jurisprudência se pode socorrer de normas codificadas, o problema das exigências de legitimação põe-se de modo diferente. A norma codificada em si já não precisa de ser legitimada na fundamentação da decisão. Ela “vigora”. Aqui, demonstração da “correção” da decisão apenas significa que a dedução da decisão jurídica a partir da norma pode ser demonstrada: a invocação de princípios jurídicos fundamentais já não é necessária – e, em regra, é considerada suspeita. Quem, num sistema codificado, se reportar à “boa-fé”, aos “bons costumes”, ou ao “caráter condenável” para legitimar sua decisão, arrisca-se a ser suspeito de estar a contornar ou a distorcer as normas codificadas, de não levar a sério o direito codificado, que aliás alega ter concretizado os princípios jurídicos fundamentais. Por isso, compreende-se que um tal sistema da prática de decisão veja no direito codificado a representação de princípios jurídicos fundamentais e não somente uma soma de decretos do legislador, emitido em conformidade com regras formais de competência. Um sistema codificado só pode realizar a redução, aqui descrita, das exigências de legitimação das decisões jurídicas, se for reconhecido que a norma codificada representa princípios jurídicos consentidos. A invocação da norma significa, então, simultaneamente, a invocação do princípio de que a norma é portadora. A norma transporta a regra de decisão do princípio jurídico para a decisão jurídica”. (Sistema Jurídico e Codificação: a vinculação do juiz à lei. Introdução à Filosofia e à Teoria do Direito Contemporâneas. 3ª ed. Orgs. Arthur Kaufmann. Whinfried Hassemmer. Fundação Calouste Gulbenkian. 2015, p. 288).
Perceba-se, ademais, que a interpretação contrária ainda conduziria à insustentável conclusão de que o texto da Constituição é teto e não piso de direitos e garantias fundamentais, o que é rechaçado primo icto oculi pelos §§ 2º e 3º art. 5º da CRFB, seja pela clareza quando à natureza exemplificativa daquele rol (§ 2º), seja pela possibilidade de acréscimo através de incorporação de tratados internacionais de direitos humanos pelo iter das emendas constitucionais (§ 3º). E claro, negaria a possibilidade de o legislador ordinário instituir microgarantias procedimentais (Eduardo José da Fonseca Costa), o que varreria um sem número de institutos jurídico-positivos...
Em suma, ainda que se concorde com o nosso autor quanto ao entendimento de que o art. 5º, LVII, CRFB, per se, não veda a execução provisória da pena – do que discordo e só admito para argumentar –, é imperativo concluir que o art. 283, CPP, institui essa microgarantia procedimental penal e deve ser declarado constitucional por não conter qualquer ofensa à Lei Maior.
PERFIL SOCIOECONÔMICO E O NIVELAMENTO DE SUPRESSÕES DE GARANTIAS
Já em seu arremate, o nosso autor sustenta a necessidade de admitir a execução provisória da pena, se não a responsabilização penal atingirá “somente aqueles que não podem suportar o custo financeiro de um advogado que os leve ao exaurimento do processo perante a Corte Constitucional”.
Aqui ecoa a superficialidade do senso comum. Em verdade, a relação entre a “capacidade financeira” e “condução do processo ao exaurimento perante Supremo Tribunal Federal” é possível, mas não necessária. Basta pensar nos réus assistidos pela Defensoria Pública. Quantitativamente, é notório, ainda que à míngua de dados empíricos, que em parte expressiva dos processos penais do dia a dia os réus são patrocinados por defensores públicos. Para esse imenso contingente de cidadãos, portanto, a “capacidade financeira” não tem a menor relação de implicação com a “condução do processo ao exaurimento perante o Supremo Tribunal Federal”. Aqui, o definitivo para garantir o exercício pleno das suas garantias processuais penais em juízo é a efetiva realização de políticas públicas voltadas à consolidação de uma Defensoria Pública material, estrutural e pessoalmente forte. Qualitativamente, 45% (quarenta e cinco por cento) dos habeas corpus concedidos pelo Supremo Tribunal Federal de 2009 a 2017 foram obtidos pela Defensoria Pública (https://www.jota.info/stf/do-supremo/quem-mais-vence-hc-no-stf-07122017#.WiqxXO3FYVk.whatsapp), o que demonstra o alto nível técnico dos serviços públicos por ela prestados. É o que basta para reduzir o argumento a uma caricatura.
Posto que caricatural, o argumento navega por águas nefandas. A Defensoria Pública não atingiu estágio ideal no Brasil. Sua realidade é extremamente variável entre os estados da federação, lugares há em que ela enfrenta dificuldades de toda ordem, para prejuízo da camada mais pobre da população que depende dos seus serviços para exercer adequadamente sua cidadania em juízo. Portanto, no do processo penal ainda há muito que fazer para garantir que os “réus pobres” por ela assistidos possam gozar todas as garantias ofertadas pela legislação. Mas o texto em liça sinaliza para o caminho contrário. Ao invés de exigir que aos “réus pobres” sejam asseguradas mesmas condições de atuação daqueles que podem contratar advogados privados, nivela o tratamento deles pelas impossibilidades materiais dos primeiros. Como a dizer: se o “réu pobre” não pode gozar todas as franquias democráticas, tolha-se do “réu rico” o direito de fazê-lo. Um arrematado absurdo! Se algo deve ser generalizado é a efetivação dos direitos, não a sua supressão. Conquanto no aqui e agora da realidade brasileira ainda tenhamos de reconhecer e deplorar o fato de que alguns “réus pobres”, por sua condição, recebem assistência processual deficitária (quiçá mais nos casos de advocacia dativa, onde não há ou é precária a presença da Defensoria Pública), é completamente fora de cogitação invocar tal assimetria para prejudicar, igualmente por sua condição, os “réus ricos” que, por ventura, não padecem da mesma privação.
Infelizmente, observa-se que no momento em que “ricos e poderosos” passam a ser réus e condenados em processos penais nosso autor manifesta alinhamento às deletérias posturas alhures atribuídas à chamada esquerda punitiva (Maria Lúcia Karam).
EFICIENTISMO E INTERPRETAÇÃO DAS GARANTIAS NO INTERESSE DAS CORTES SUPREMAS
Finalmente, o nosso autor defende a necessidade de execução provisória da pena porque “a realidade contemporânea atesta que muitos condenados em primeiro e segundo graus deixam de cumprir pena em virtude da demora inerente ao processamento dos recursos no STJ e no STF”. Afirma, ainda, que “algumas penas, quando cumpridas muito depois, deixam de ter o seu devido significado para a sociedade”.
Começando pela última, não há muito que dizer. Não está dito o que se entende por significado que a pena pode ter para a sociedade. Não especularei. Do modo como está, é só mais um enunciado performático. E caso queira aludir às tradicionais “finalidades da pena”, é tema que agita caudaloso debate entre penalistas e criminalistas e, bem ou mal, possui disciplina jurídico-positiva. O que importa marcar é que isso não tem a menor relação com a definição do momento de início da execução da pena. Quando muito, é um (mau) argumento de política.
Em relação à admissão da execução provisória da pena para impedir o risco de consumação da prescrição, só posso registrar meu estarrecimento.
Impossível negar que há processos demais perante o Poder Judiciário brasileiro, especialmente nos escaninhos do STF e do STJ, a ponto de inviabilizar a prestação do serviço jurisdicional. O problema é sério e exige soluções adequadas com vistas ao gerenciamento do trabalho dos tribunais.
Contudo, é caminho inaceitável aquele que aposta na solução dos problemas da carga de trabalho dos tribunais mediante esvaziamento dos direitos dos cidadãos. Seria abrir um novo capítulo na já suficientemente vergonhosa história da jurisprudência defensiva, autorizando o consequencialismo utilitarista ensimesmado das Cortes Supremas a avançar impiedosamente sobre as mais caras garantias processuais contrajurisdicionais. Institucionalizaríamos a noção de que a capacidade de assimilação do acervo pelo Judiciário é a régua de medição da eficácia dos direitos fundamentais.
É precisamente o que acontece quando se admite a execução provisória da pena para evitar que eventual demora no julgamento descambe em prescrição. É a autodefesa do tribunal à custa da integridade da garantia da pressuposição de inocência, tal como disciplinada em nosso direito positivo.
Qual seria o limite? Até onde estaríamos dispostos amesquinhar direitos à bem das Cortes Supremas? É postura metodológica assaz imprudente apostar em leituras eficientistas focadas exclusiva ou prioritariamente no desempenho das agências estatais. Essa trilha pode abrir fissuras pelas quais o utilitarista código custo/benefício, próprio do sistema econômico, penetre sorrateiramente no sistema do direito positivo para corromper seu modo específico de funcionamento, orientado internamente pelo código lícito/ilícito, com riscos graves, principalmente, para os direitos e garantias fundamentais de liberdade, só plenamente efetivados quando respeitada sua característica contramajoritária (verdadeiros trunfos contra as maiorias, diria Ronald Dworkin).
CONCLUSÃO
Espero sinceramente que os posicionamentos vertidos no texto ora analisado não sejam prestigiados no julgamento das Ações Declaratórias de Constitucionalidade n. 43, 44 e 54. Em verdade, que não ressoem em nenhum provimento que deve obediência à Constituição e às leis, em homenagem à manutenção do Estado de Direito. O contrário seria demasiado desolador.
Notas e Referências
[1] “Segundo a jurisprudência majoritária da Corte, a regra do art. 115 do Código Penal somente é aplicada ao agente com 70 (setenta) anos na data da sentença condenatória, conforme interpretação literal do referido dispositivo legal. 3. Embargos de declaração dos quais não se conhece”. (RE 1045217 AgR-ED, Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI, Segunda Turma, julgado em 04/04/2018, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-083 DIVULG 27-04-2018 PUBLIC 30-04-2018).
[2] “Tanto interpretação extensiva do art. 21, § 2º, do RISTF quanto exegese literal do art. 557, § 1º, do revogado CPC de 1973, aplicável aos recursos examinados na decisão agravada, autorizam que se profira decisão monocrática de provimento de recurso interposto contra decisão em confronto com jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal”. (ARE 933945 AgR, Relator(a): Min. EDSON FACHIN, Segunda Turma, julgado em 29/09/2017, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-251 DIVULG 31-10-2017 PUBLIC 06-11-2017)
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