ABDPRO #77 - DISCURSO ANTICORRUPÇÃO E LEGITIMAÇÃO DE PRIVILÉGIOS: MITO DO BEM VERSUS MAL[1]  

27/03/2019

 Coluna ABDPRO

 

 

Reduzir problemas complexos a soluções simples e pré-concebidas, em época de linguagem comunicativa digital limitada a não mais que quarenta caracteres, traduzem o senso comum onde sempre há opinião de todos sobre tudo, transformando algoritmos em soluções fáceis também para o fenômeno social da corrupção, partindo-se do pressuposto de mal insolúvel e que possui, no direito penal, sua redenção.

Nesse universo digital, a luta por personagens do bem, heróis que midiaticamente forjados lutam contra os caricatos e maléficos seres corruptos, misturados a imagens proféticas detentoras de apoios massivos representados por vezes em discursos de ódio e julgamentos de exceção polarizam-se ali, nos tribunais existentes nas redes sociais.

E como todo herói que se preze possui super poderes, pelo senso comum nada atrapalha se, em seu objetivo de salvar a nação, apareçam como obstáculos superáveis algumas normas fundamentais que garantam a favor dos personagens do mal os direitos processuais previamente estipulados ou, pouco se importa que, em se tratando de normas restritivas de liberdade, formas sejam garantias.

Mas será mesmo que a superação sistêmica da corrupção se resume a uma luta entre bem versus mal? E mais, o direito penal per si seria a salvaguarda última da nação contra a temível corrupção sistêmica que, em suas cotidianas e nominadas operações, trará o melhor dos mundos tal qual imaginado pelo personagem Cândido na famosa saga Cândido ou Otimismo, de Voltaire?  

Todas essas questões, certo ponto complexas, para problemas complexos, bem verdade, passam invariavelmente pela definição de dominação, quadro administrativo e legitimação de poder. Nisso, todos os caminhos levam a Max Weber.

Em sua obra póstuma, Economia e Sociedade, Max Weber estabelece conceitos de dominações nominando-as de patrimonialistas, burocráticas ou carismáticas. Estudiosos de sua biografia apontam que o autor incluiria a dominação democrática entre suas espécies estudadas, o que não deu tempo uma vez que faleceu em 1920. Segundo ele, a dominação constitui um dos elementos mais importantes da ação social. E toda dominação, necessariamente, abrange um quadro administrativo por meio do qual o dominador (pessoa ou grupo de pessoas) se legitima. Aqui, coloca-se como ponto de diferença entre legitimação e coerção, aquela sendo decorrente da vontade do dominado e esta como sinônimo de submissão violenta.

Quando eu legitimo um discurso e o tenho como aceito a demais grupos, eu passo à posição dominante, o que pode se dar através da tradição de meu poder exercido no tempo, ou do carisma propalado (profeticamente, por exemplo), ou enfim por meio de normas gerais e abstratas, esta última que mais coaduna com a quadra histórica moderna, de poder não mais conferido por um Deus, por exemplo, mas limitado por normas fundamentais de uma Constituição.

Atendo-se ao primeiro caso, da dominação baseada na tradição, e aos dias atuais no Brasil, temos grupos políticos ou até mesmo famílias com poder político local que usam o Estado como extensão de sua casa, que enchem a máquina pública com apoiadores prevalecendo sobre critérios técnicos, privilégios direcionados a empresas amigas, contrariando assim princípios caros à sociedade na gestão da coisa pública, atuando como patriarcas de um quadro administrativo patrimonialista.

Em sentido oposto, mesmo que tenhamos uma Constituição, normativa nos critérios trazidos por Loewenstein, que em nível ideal representa a dominação baseada em normas, gerais e abstratas, que delimitam feixes de atribuições entre o público e o privado, ainda assim vivemos num forte grau de confusão patrimonial.

Já na dominação burocrática que legitima a norma enquanto poder, por um critério necessariamente racional e abstrato, não deveria existir espaços para interesses pessoais. Mas a realidade social é composta em camadas, em níveis de gradação de realidades sobrepostas onde as espécies de dominação se misturam.

Logo, perfeitamente possível num Estado Constitucional e Democrático a presença de círculos viciosos de privilégios e legitimação de discurso expandindo o grau de complexidade do fenômeno corrupção para muito além de uma questão de bem versus mal e, ainda, noutro ponto, devemos cuidar para que tal constatação jamais represente ideia de uma realidade presa a uma gaiola de ferro weberiana, sem saída e fadada à corrupção eterna.

Na dominação patrimonialista, temos a figura do patriarca que, uma vez estendendo seu poder através de um quadro administrativo, o legitima tendo o público como expansão de seu domínio privado. São os nossos coronéis-barões na pós-modernidade em seus domínios nos extensos rincões brasileiros; são os políticos profissionais que representam grupos locais de poder em seus currais eleitorais; mas também são os detentores de poder público que, mesmo na formal legalidade, repartem o não inesgotável erário entre privilégios de seus semelhantes. Vemos, pois, que tudo isso está muito além do mero conceito criminal de corrupção.

Já podemos perceber que a falta de delimitação entre o público e o privado é algo maior, envolve familismo, nepotismo, fisiologismo, sendo a corrupção enquanto mera definição penal apenas uma pequena faceta de um fenômeno maior, onde o grau de cultura constitucional, entre nós vivido, em sequência, há apenas 30 anos, tem relação com aquilo que Luigi Zingales tratou em seu capitalismo para o povo como sendo capital cívico, que nada mais são que nossos códigos comportamentais adquiridos através da história. Como disse Caio Prado Júnior, o caminho cria o tipo social.

Nosso caminho vem traçado pelo peso da cultura patrimonialista de privilégios em nossa história, que requer para sua superação arranjos institucionais sólidos e contrários à cultura do patriarcal e, colocando-se as peças de um jogo democrático nos seus devidos lugares, veremos que precisamos, pois, de instituições, não de heróis.

O próprio discurso anticorrupção pode se tornar mecanismo de legitimação de poder e privilégios, como aqueles onde se prega matar, prender, jogar chave fora, ou que acabam por criar projetos se autodenominando anticrime, como se a lei em si, no direito penal, fosse solução mesmo para evitar a ocorrência do delito.

Como num sistema criminal em que, de um lado, na baixa criminalidade, vemos um Estado elefante, devagar, mas pesado, certeiro e fatal em sua pisada; do outro lado, nas altas rodas do White Collar Crime, após um suspiro inicial de justiça do bem contra o mal resulta em enxurradas de colaborações premiadas desenfreadas com efeitos que quase nunca ultrapassam o rigor de suas prisões mansões domiciliares a que se soma a precificação da liberdade com restituição de alguma parcela da fortuna subtraída. Eis a perpetuação da seletividade penal como forma de abandonarmos a esperança do discurso do direito penal como solução.

Edwin Sutherland e os adeptos da Escola de Chicago trouxeram famosos estudos sobre os chamados crimes de colarinho branco (white collar crimes). O autor, em 1949, após dezessete anos de intenso trabalho reuniu informações sobre práticas ilícitas das setenta maiores empresas norte-americanas do período, entrando assim no fenômeno dos crimes praticados nas atividades exercidas por pessoas de alto status social, desbancando teorias que ligavam classes econômicas menos favorecidas como sendo o locus de geração da delinquência.

Falamos aqui da teoria criminológica da associação diferencial, para qual todo comportamento criminoso, assim como os demais comportamentos humanos, são frutos de um aprendizado, e com o crime de colarinho branco não funciona diferente, ele trilha atalhos no mundo negocial da concorrência (leal ou desleal) que acabam sendo valorados de forma diferente pelas instâncias formais de controle, as quais tendem a ser mais benevolentes no trato com tal modalidade criminosa.

Superar esse quadro de corrupção sistêmica requer saber que passamos 300 anos de nossa história sendo colônia de simples exploração de recursos socioambientais, e quando deixamos de ser colônia, passamos outros quase setenta anos numa monarquia absolutista escravagista de pífio quadro administrativo.

Ao chegar o início da república, tínhamos a cada três brasileiros, um sendo escravo, integrado este na vida urbana e liberto para viver numa república de coronéis, na proporção de oitenta e dois por cento de analfabetos, status que perdurou nos primeiros 40 anos republicanos, a que se seguiu na década de 30 o crescimento urbano intercalado em ditaduras pífias, em grande parte do século XX intercaladas por espasmos democráticos que em quase nada contribuíram para diminuir a estupenda desigualdade social, ainda que por vezes ocasionasse aumento do produto interno bruto, nada mais representando a nossa constante ausência de liberdade política e capacidade cidadã que a perda de um fator fundamental para o desenvolvimento humano: O poder e a capacidade de sermos livres.

Como exigir resultados de uma democracia participativa, fundada em instituições sólidas e delimitadas, com regiões do país ainda hoje superando vinte por cento de analfabetismo funcional, inserida em dezenas de milhões de cidadãos sobreviventes marcados por um ciclo de reprodução intergeracional de pobreza e educação de baixíssimo rendimento?

Em 30 anos de cultura democrática e de uma Constituição republicana, de cunho compromissória, ainda brigamos para efetivar direitos de primeira geração, de liberdade ameaçada quase que diariamente por violações constitucionais resultantes das mais variadas forças, muitas delas por tentar aglutinar poderes não concedidos pela carta maior. 

A história é farta de nos mostrar que o déficit democrático provocado pela falta da cultura constitucional apaga as luzes da transparência entre divisão do público e o privado, e que toda concentração de poder, sem fiscalização e controle, favorece a corrupção, não havendo ajustes na legislação que suplantem arranjos institucionais concentrados, sem mecanismos de controles autônomos e independentes. 

Fatores ligados ao índice de desenvolvimento humano são fundamentais para expansão de liberdades, tais como e, por exemplo, uma necessária e efetiva rede de proteção social, ou a fundamental garantia da transparência das ações tomadas em âmbito público, ou plena capacidade de gozo de liberdade política tida como a possibilidade de escolher quem governa, de fiscalizar e até mesmo de criticar autoridades. No esteio do Nobel da economia Amartya Sen, um dos idealizadores do índice de desenvolvimento humano, liberdades serão exercidas por cidadãos capazes. Quando o artigo terceiro da Constituição da República estabelece como objetivo fundamental o desenvolvimento nacional, é nesse sentido que o faz.

Estabelecer a utilidade do discurso de combate à corrupção como serventia à coesão do corpo social para reavivar os laços de consenso social sobre a valoração da necessária proteção dos bens jurídicos moralidade e patrimônio públicos, é válido. Não para criarmos heróis.

Inclusive essa tese criminológica funcionalista vem abarcada primeiramente por Durkheim e usada no direito penal (exclusiva proteção) na teoria de Claus Roxin.

O corpo social buscando proteger o bem jurídico patrimônio público não pode significar crença de que heróis da república apareçam de tempos em tempos para nos restituir a glória, ou que o direito penal com suas barganhas premiadas em mansões domiciliares ou projetos anticrimes se apresentem como soluções prontas, sem que haja o devido comprometimento também social na melhora do grau de desenvolvimento humano (redução de desigualdades) e do fortalecimento da cultura democrático-constitucional de respeito e separação entre o que seja público e o que seja privado.

Dentro mesmo dos poderes independentes da república ou dos órgãos técnicos-fiscalizatórios autônomos, discursos anticorrupção como blindagem à legitimação de privilégios, nada mais representa que uma espécie legalizada de patrimonialismo, que alimentam junto aos demais fatores mitológicos, a ilusão da história de que precisamos cada vez mais de garantia da lei e da ordem, que incutem soluções simples para problemas complexos, na retórica ilusória de que tudo se resume numa constante luta entre bem e mal.

 

 

Notas e Referências

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