ABDPRO #69 - Negócios Processuais nas Execuções Fiscais da União

30/01/2019

Coluna ABDPRO

A Justiça em números e a situação dos executivos fiscais

A partir de 2004 o Poder Judiciário passou a sistematizar dados dos diversos Tribunais do País com o objetivo de detalhar sua estrutura e apurar dados estatísticos mais completos e confiáveis a respeito da litigiosidade. O levantamento destes dados permite conduzir a gestão judiciária com mais propriedade e auxilia na definição de políticas públicas ou procedimentos internos que possam dar uma resposta melhor aos problemas existentes.

Compilado e apresentado pelo Conselho Nacional de Justiça, os dados apresentados no último relatório, cujo ano-base de apuração foi 2017 e que inclui os números de noventa órgãos que integram o Poder Judiciário (ficaram de fora o Supremo Tribunal Federal e o Conselho Nacional de Justiça), dão a dimensão da complexidade que é a litigiosidade no Brasil e a superestrutura criada para dar conta dela.

O custo destes órgãos no ano de 2017 alcançou a importância de quase 91 bilhões de reais, para uma força de trabalho de aproximadamente 449 mil profissionais, dos quais cerca de 18 mil são magistrados, 272 mil são servidores e 158 mil são auxiliares. O custo do serviço abocanha algo próximo a 1,35% do PIB, taxa bastante elevada quando comparada a de outros Países Ocidentais (entre 0,12% a 0,34% do PIB, em média). Não entra nesta conta o custo com o Ministério Público, Defensorias Públicas e a Advocacia Pública.

Apenas para se ter uma idéia da grandeza dos números, o total arrecadado com a recuperação de tributos não pagos, por meio de execuções fiscais, alcançou a cifra aproximada de 33 bilhões de reais em 2017.

E neste arranjo estrutural os índices de composição e conciliação nos processos são bastante tímidos. Em 2017 foram de 11% na Justiça Estadual, 25% na Justiça do Trabalho, 7% na Justiça Federal e 0,2% na Justiça Eleitoral, o que demonstra que a negociação, a conciliação e a mediação ainda não são práticas verdadeiramente consolidadas na cultura judiciária brasileira.

Ao final de 2017 registrou-se aproximadamente 80 milhões de processos em tramitação, sendo que 53% deles são processos categorizados como "fase de execução". As execuções fiscais representam 74% dessa categoria (39% do total de casos pendentes e em tramitação ou algo em torno de 31 milhões de processos). Além deste contingente, somente em 2017 ingressaram quase 3.5 milhões de novas ações de execução fiscal. Dentre todas as categorias processuais (de conhecimento e de execução), a classe das execuções fiscais é a que apresenta a mais elevada taxa de congestionamento, mais especificamente 91,7% para uma média de 72,1% quando considerados todos os processos em seu conjunto.

 

A necessidade de alternativas para que as execuções fiscais possam ser eficazes mas sem desprezar as garantias dos devedores e contribuintes - a utilização dos negócios jurídicos processuais

A análise superficial destes dados já é o suficiente para apontar a necessidade de novos arranjos que possam minimizar a dificílima situação da litigiosidade fiscal.

O número de processos é superlativo. Os índices de composição ou de soluções negociadas são muito tímidos. A taxa de congestionamento dos executivos fiscais é das mais altas. Segundo o CNJ, a "historicamente as execuções fiscais têm sido apontadas como o principal fator de morosidade do Poder Judiciário. O executivo fiscal chega a juízo depois que as tentativas de recuperação do crédito tributário se frustraram na via administrativa, provocando sua inscrição na dívida ativa. Dessa forma, o processo judicial acaba por repetir etapas e providências de localização do devedor ou patrimônio capaz de satisfazer o crédito tributário já adotadas, sem sucesso, pela administração fazendária ou pelo conselho de fiscalização profissional. Acabam chegando ao Judiciário títulos de dívidas antigas e, por consequência, com menor probabilidade de recuperação."

Este quadro, contudo, não pode e não deveria levar o Judiciário e demais Instituições a desprezar garantias constitucionais e legais dos contribuintes sob a justificativa de assegurar a efetividade na execução judicial de tributos ou créditos com prerrogativas fiscais.

Soluções que possam conciliar ao mesmo tempo a efetividade para o credor com o zelo dos interesses e observância das garantias dos devedores são opções economicamente eficientes e que deveriam ser estimuladas.

Partindo desta premissa, quando há possibilidade se adotar caminho que passe pela cooperação ou negociação entre os adversos, aumenta-se a chance de alcançar uma solução eficiente para ambas, o que contribui consideravelmente para o atendimento dos propósitos de parte a parte e para a pacificação social. A cooperação costuma afastar comportamentos competitivos, seus  excessos e externalidades negativas que produz.

Recentemente, e com o propósito de disciplinar a aplicação do instituto do negócio jurídico processual no âmbito das execuções fiscais, a Procuradoria Geral da Fazenda Nacional editou a Portaria 742.

Publicada no DOU de 28 de dezembro de 2018, a Portaria 742 abre maior espaço de negociação e cooperação entre a Fazenda Nacional e seus devedores. Definindo critérios e procedimentos, a referida norma autoriza a celebração de negócios jurídicos processuais nas execuções fiscais, de modo a proporcionar soluções mais dinâmicas e colaborativas para o equacionamento de débitos inscritos em dívida ativa da União e executadas judicialmente, atendendo as características e capacidade econômico-financeira de cada devedor, o perfil da dívida e as peculiaridades do caso em concreto, mas sem desprezar os interesses da Fazenda Nacional.

 

O negócio jurídico processual nas execuções fiscais da União

De acordo com a Portaria 742, o negócio jurídico processual tem por objetivo equacionar os débitos inscritos em dívida ativa da União, por meio da negociação das seguintes situações:

calendarização dos atos processuais que serão realizados nas execuções fiscais;

plano de amortização do débito fiscal no processo;

aceitação, avaliação, liberação e substituição de garantias;

modo de constrição ou alienação de bens.

A calendarização da execução fiscal permite que a União e seu devedor, por exemplo, negociem o tempo ou data em que serão realizados os atos processuais, inclusive invertendo as fases se assim desejarem de modo a ajustar seus interesses em relação às especificidades da causa. A calendarização proporciona previsibilidade, otimização de trabalho e dispensa de atos de comunicação processual, diminuindo, também, consideravelmente o "tempo morto" do processo que há entre um e outro ato processual. Para a calendarização processual o CPC prevê a participação do Juiz no negócio processual, diferentemente da Portaria.

O plano de amortização do débito fiscal, por sua vez, acaba projetando efeitos para além do processo. Se está diante da negociação do tempo e forma para o pagamento da dívida tributária, proporcionando uma nova dinâmica na relação material e também processual.

A PGFN poderá, com a apresentação de um plano de amortização do débito fiscal pelo devedor, negociar condições conciliando o interesse da Fazenda Nacional no recebimento do seu crédito mas sem desconsiderar as condições econômico-financeiras do contribuinte e as peculiaridades do caso em concreto.

Dentre as possibilidades de negociação destacam-se, também, a possibilidade de negociação de constrição sobre faturamento ou recebimento de créditos futuros, a negociação de prazos para pagamentos em prazos de 120 meses ou mesmo maiores, com ou sem carência, a inclusão de débitos ainda não ajuizados no plano de amortização, dentre tantas outras condições.

Outra possibilidade bastante interessante é a negociação quanto aos bens que servirão de garantia à execução fiscal, inclusive eventual substituição e liberação de bens já penhorados, nomeados ou arrolados. As dificuldades inerentes à esta fase processual e as recorrentes tensões entre a efetividade da execução e a menor onerosidade da execução ao devedor podem ser verdadeiramente mitigadas por meio da colaboração e negociação processual. Os resultados alcançados pela cooperação são muito melhores e eficientes quando comparados aos da competição pura e simples entre eles. Não são raras as penhoras de bens indispensáveis para algumas atividades ou mesmo do capital econômico de giro de empresas, situações que produzem externalidades tão graves a ponto de colocar em questão a própria vantagem do recebimento do crédito fiscal quando avaliados os danos que as medidas provocam na cadeia econômica em que o devedor está inserido. Igualmente, não são raros os momentos em que as decisões judiciais pendem em prol da preservação de uma espécie de patrimônio mínimo do devedor, obstruindo a legítima expectativa da Fazenda Nacional quanto ao recebimento do seu crédito.

 

Procedimento para a celebração do Negócio Jurídico Processual com a PGFN nas Execuções Fiscais

A Portaria 742 apresenta todo um conjunto de requisitos, condições e procedimentos para o devedor que deseja promover a negociação com a PGFN buscando o equacionamento da dívida ativa ajuizada pela União ou mesmo em relação a uma situação tipicamente processual.

O interesse na negociação deve ser formalizado por meio de requerimento endereçado à unidade da PGFN do domicílio do devedor quando tratar de plano de amortização da dívida, ou para a unidade da PGFN responsável pelo acompanhamento das execuções fiscais quando o interesse é negociar outras situações relacionadas ao processo.

O requerimento deverá conter, basicamente, os dados do devedor, o detalhamento de suas condições econômico-financeiras, a indicação dos débitos que estarão sujeitos ao que for ao final negociado, algumas declarações sobre compromissos que deverão ser observados e a proposta explicitando o interesse desejado pelo devedor (seu plano de amortização do débito, seu interesse por substituição de garantias, liberação de gravames, calendarização do processo, forma para penhora de faturamento ou de  créditos futuros, etc..).

Devidamente apresentada, a proposta será analisada pela PGFN, a qual poderá inclusive marcar reuniões para negociar diretamente os termos do acordo processual. O aceite da proposta ou elaboração da contraproposta não é ato simplesmente discricionário. Há sim uma parcela de discricionariedade e liberdade. Mas a Portaria define alguns pontos que devem ser levados em consideração na avaliação da proposta e alguns requisitos específicos cuja inobservância pelo devedor ou pelo proponente resultará no insucesso da via negocial.

 

Considerações finais

É difícil arriscar uma previsão sobre qual será o resultado prático ou o impacto que a regulamentação e abertura à negociação proporcionará nas execuções fiscais.

Mas é possível adiantar, com alguma margem de segurança, que os impactos em termos quantitativos não serão relevantes. E há diversas razões para isso, o que inclui uma cultura que praticamente despreza soluções negociais e aposta na decisão judicial, como, também, os custos de transação envolvidos como o formalismo na negociação, o procedimento preponderantemente escrito e despersonalizado e a própria burocracia para a avaliação das propostas. E quanto maiores os custos de transação envolvidos, menores as chances para o sucesso de uma negociação e, consequentemente, para a celebração do negócio jurídico processual e equacionamento da dívida ativa por meio deste método.

Mas entre a ausência de regulamentação (e previsão da possibilidade de celebração de negócio jurídico processual com a PGFN) e um procedimento formal e um tanto quanto rígido para a negociação sobre situações processuais, muito melhor mostra-se a segunda opção. O impacto qualititativo, no sentido de oportunizar opções ao jurisdicionado e à Fazenda Nacional e desjudicializar algumas etapas ou atividades do processo, já são mais do que suficientes para legitimar a inovação.

Sempre é tempo de negar-o-ócio e negociar.

 

 

Imagem Ilustrativa do Post: Brasil, Porto Alegre // Foto de: Rogerio Camboim S A // Sem alterações

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