ABDPRO #58 - “Levando os fatos a sério”: algumas considerações sobre a fundamentação do juízo de fato no direito brasileiro

14/11/2018

 

 

O Código de Processo Civil de 2015 trouxe parâmetros a partir dos quais se pode considerar ou não uma decisão fundamentada do ponto de vista do “direito”, ou seja, das questões de direito, de forma que, por exemplo, não se considera fundamentada uma decisão que se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida, da mesma forma como não se considera fundamentada uma decisão que empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso ou, ainda, uma decisão que invoque motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão ou que não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgado, limitar-se a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos; dentre outras hipóteses enumeradas no art. 489, §1º, I-VII. Preocupou-se o legislador em estabelecer critérios racionais para evitar a mera reprodução de legislação, de jurisprudência ou de motivos “abstratos” que não estejam direta e fundamentadamente relacionados aos fatos do processo.

Veja-se que, pelo novo modelo do CPC/2015, a mera indicação, reprodução e paráfrase de ato normativo, sem que sua relação com a causa seja explicada, faz com que, objetivamente, a decisão judicial não seja considerada fundamentada. Porém, não há nenhuma previsão legislativa a respeito de qualquer ônus do juiz em fundamentar a escolha de algumas provas produzidas no processo, dentre as diversas provas porventura existentes em um mesmo processo. Encontra-se legislado que o juiz não pode se limitar a reproduzir um texto legislativo ou um enunciado de súmula, mas não há qualquer impeditivo de que deduza expressões tais como “a ocorrência do fato F encontra-se provada pelo depoimento da testemunha A”, mesmo quando haja uma série de outras provas e mesmo de outras testemunhas com depoimentos conflitantes no processo.

Nesse mesmo contexto, não há nada similar no sentido da valoração das provas em um contexto de multiplicidade de provas. Tomando como exemplo a prova testemunhal e a presença de três testemunhas, A, B e C, em que as testemunhas A e C afirmam que o fato jurídico em questão ocorreu e a testemunha B afirma que o fato não ocorreu. Não há qualquer regra explícita, dentro do modelo do livre convencimento motivado, que afirme que o juiz – considerando, para o exemplo aqui proposto, apenas a existência de prova testemunhal – deve considerar que o fato ocorreu devido ao fato de ser narrado por uma maioria de testemunhas. Suponha-se que, no exemplo proposto, apenas a testemunha B contava com posição privilegiada (por exemplo, uma localização que facilitava a visualização de determinada ocorrência). Não existe um modelo racional que determine se o juiz deve considerar o depoimento da maioria das testemunhas ou daquela testemunha que tiver uma “aproximação” maior do fato a ser provado, sendo o juiz livre para utilizar a prova que, circunstancialmente, entender pertinente. O juiz pode até mesmo, em determinados contextos, considerar como suficientemente provados fatos acerca dos quais pesem notada controvérsia sobre sua ocorrência, bem como considerar como não suficientemente provados fatos acerca dos quais pese relevante e reconhecida carga probatória.

A situação tende a se agravar à medida em que a complexidade das questões fáticas aumenta. Imagine-se uma situação em que há vários elementos probatórios acerca de um mesmo fato, porém de forma divergente e mesmo contraditória, alguns apontando no sentido de provar a verdade do fato e outros no sentido de provar a falsidade do enunciado relativo ao mesmo fato. No caso, o juiz deverá escolher entre duas versões diferentes acerca do mesmo fato, ambas apoiadas por uma parte dos elementos probatórios constantes do processo.

No modelo vigente, o juiz não encontraria qualquer limite ou ônus normativamente previsto no sentido de fundamentar seu juízo acerca dos fatos, apontando que critérios utilizou para utilização de uma ou de outra prova, fundamentando por que considerou o fato provado em um ou outro sentido, podendo limitar-se a deduzir afirmações genéricas tais como “tendo em vista a Prova P1, considero provado que o fato F efetivamente ocorreu”, sem qualquer menção às razões que levaram à eleição da prova P1 em detrimento de eventuais provas P2, P3, P4, etc. ou por que a prova P3, que apontava justamente no sentido contrário da prova P1 não foi considerada apta a interferir no convencimento judicial.

Knijinik (2001) aponta que a práxis brasileira orienta-se pela pura e simples renovação ou repetição do juízo de fato, como forma de efetuar controle do próprio juízo de fato: os tribunais brasileiros, quando do exame da quaestio facti, em geral reavaliam a prova como um todo, de modo que o mecanismo de controle da convicção judicial acaba reduzindo-se à sua própria renovação. Em outras palavras, o objeto do controle – a convicção judicial – num segundo momento – o do recurso – transforma-se no próprio mecanismo de controle, pois não se costuma examinar e verificar o iter lógico, a congruência narrativa, a consistência lógico -argumentativa do juízo de fato como uma questão ‘in se’, ou seja, como uma questão autônoma e relevante.

Como se disse, a disciplina da fundamentação da decisão judicial já evoluiu, no âmbito normativo, notadamente no Código de Processo Civil de 2015, no que diz respeito à fundamentação dos ‘juízos de direito”, já não mais se admitindo a mera remissão a artigos de lei, enunciados de súmula ou motivos que não se relacionem, fundamentadamente, ao feito. Mas em relação ao juízo de fato, surgem perplexidades tais como as acima exemplificadas, que chegam a fulminar diretamente a própria norma constitucional que exige a fundamentação da decisão judicial. Trata-se, sem dúvida, se uma grave anomalia em nosso sistema processual que o juízo de direito conte com parâmetros objetivos de aferição enquanto o juízo sobre os fatos seja relegado ao total arbítrio, favorecendo a irracionalidade das decisões e os erros judiciais.

É certo que, ao se tratar do tema da fundamentação judicial, necessariamente depara-se com o modelo do livre convencimento motivado, que contaria, segundo a processualística moderna, notadamente para aquela desenvolvida no esteio da tradição europeia continental, com uma acentuada capacidade de conformação harmônica dos institutos da teoria da prova, o que não se coadunaria com a realidade. Segundo Silveira (2011, p. 15), por um lado, a proposta do livre convencimento primeiro justifica sua existência na necessidade romper com a ideia de prova legal, cujo desenvolvimento histórico foi considerado inadequado para a investigação dos fatos. Por outro, procura expressar o que significaria a proposta do livre convencimento, de modo a viabilizar o controle necessário de legitimidade das decisões judiciais sem ceder a arbitrariedades.

O livre convencimento seria, portanto, o sistema mais adequado para a valoração da prova por que equilibraria, com maior possibilidade de êxito, o controle do poder jurisdicional quando da interpretação dos elementos trazidos aos autos e a liberdade de interpretação necessária ao exercício desse poder, o que deixaria os juízos mais capacitados a compreender corretamente a situação de fato. Essa proposta de compreensão da cognição judicial pretender controlar o juízo de fato com uma série de recomendações, dentre as quais pode-se citar como exemplo, postular inferências somente a partir dos elementos colhidos dos autos, motivar as conclusões que servem de embasamento da decisão em matéria de fato ou considerar, em alguns casos, a prévia valoração da lei para situações do raciocínio probatório, como presunções e regras de exclusão de provas com a condição de serem compatíveis com os pressupostos epistemológicos assumidos. Tais limitações seriam suficientemente aptas ao controle da decisão judicial, pois esta estaria submetida a métodos adequados de análises empíricas que sigam os ditames da mesma concepção de conhecimento racional.

Silveira (2011, p. 20) aponta que, apesar de ter como ponto de partida o entusiasmo com as conquistas epistemológicas, o livre convencimento, de forma paradoxal, deixa de considerar o raciocínio empregado na consideração dos fatos. O tratamento sobre a temática se restringe à imposição, pelo legislador, de normas e técnicas para condução da consideração de elementos probatórios, funcionando estritamente na restrição do arbítrio em juízos de fato, especialmente mediante a regulamentação da participação dos interessados no procedimento, o acesso à possibilidade de recursos e duplo grau, a obrigação de motivação das decisões, mas em nenhum momento trata sobre como considerar as provas produzidas.

O modelo do livre convencimento motivado, ao contrário do modelo da prova legal – onde há a imposição de regras de constatação dos fatos dissociando a relação entre convencimento e comprovação, deixa ao total arbítrio do magistrado a afirmação de quando um fato está ou não devidamente comprovado. Em geral, há a estipulação de que o julgamento deve se pautar tão somente nas disposições referentes aos ônus da prova, porém, segundo aduz Silveira (2011, p. 26), trata-se de uma imposição artificial de limite contra o contra o arbítrio do juiz, pois, dependendo apenas daquilo que o próprio julgador entenda como necessário à comprovação dos fatos da causa em comparação ao que foi apresentado, incidirá ou não a regra de ônus da prova. Por certo que, com tão ampla margem de liberdade para afirmar quando um fato está ou não provado, a fundamentação acerca dos juízos de fato é praticamente relegada ao esquecimento.

Um modelo normativo de fundamentação do juízo de fato vem a ser ferramenta indispensável ao adequado cumprimento de uma das mais relevantes normas constitucionais, a saber: aquela que impõe a obrigatoriedade da fundamentação das decisões judiciais (CF, art. 93, IX). O correto atendimento desta exigência, repita-se, é imprescindível para que se possa, entre outras coisas, aferir o respeito a outros valores constitucionais fundamentais, tais como a legalidade, a imparcialidade do juiz, o contraditório e outros. Além disso, o modelo serve, sem dúvida, para incrementar a racionalidade das decisões judiciais em matéria probatória, por servir aos operadores jurídicos como instrumento da análise crítica de tais decisões e a consequente consolidação de uma cultura de elevada racionalidade judicial.

 

Notas e Referências

KNIJINIK, Danilo. A prova nos juízos cível, penal e tributário. Rio de Janeiro: Forense, 2007.

_______________. OS “STANDARDS” DO CONVENCIMENTO JUDICIAL: PARADIGMAS PARA O SEU POSSÍVEL CONTROLE. 2001. Disponível em http://www.abdpc.org.br/abdpc/artigos/Danilo%20Knijnik%20-%20formatado.pdf

SILVEIRA, Daniel Coutinho da. Prova, Argumento e Decisão. Critérios de suficiência para orientação dos juízos de fato no direito processual brasileiro. 2011. Dissertação (Mestrado em Direito) Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

TARUFFO, Michele. A prova. Tradução de João Gabriel Couto. São Paulo: Marcial Pons, 2014.

_________________. Uma simples verdade. O juiz e a construção dos fatos. Tradução de Vitor de Paula Ramos. Madrid: Marcial Pons, 2012.

 

 

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