ABDPRO #54 - A Jurisdição Constitucional em Meio à Crise da Democracia: o Diálogo Judicial Internacional

17/10/2018

 

A ordem do dia em qualquer discussão, acadêmica ou não, é a crise da democracia no mundo. A capa da revista Foreign Affairs de maio/junho de 2018 perguntava, em sua manchete: “A democracia está morrendo?”. Os sinais políticos dessa constatação fúnebre estão não apenas na vitória eleitoral de candidatos ligados à xenofobia e com simpatia pelo autoritarismo aqui e ali, mas também com o crescimento, mesmo que ainda não ao ponto majoritário, de líderes e grupos com plataformas antidemocráticas em muitos outros países.

Um dos artigos da revista, assinado por Yascha Mounk e Roberto Stefan Foa, defende que o domínio da democracia sobre o autoritarismo na política internacional tem se sustentado nas últimas décadas, principalmente, pela ascendência econômica e pela influência cultural dos países “livres” em relação aos “não livres”. Ambas as coisas estão em risco. Em 1990, países classificados como “não livres” pela organização independente Freedom House – categoria mais baixa, que exclui os países “parcialmente livres” como Cingapura, por exemplo – respondiam por 12% da renda mundial. Agora, são responsáveis por 33%, nível equivalente ao dos anos 1930 – época que marcou a ascensão do fascismo na Europa – e superior ao da guerra fria, com a União Soviética no seu apogeu[1].

Sucesso econômico produz potencial militar, e, mais importante, fascínio intelectual. O desejo de partilhar da riqueza do “mundo ocidental” gerava por si próprio o desejo de adotar o seu “estilo de vida”, o que parecia exigir a emulação do seu sistema político. Mas o livre fluxo de informações do mundo contemporâneo quebrou decisivamente o monopólio da produção e circulação cultural dos países mais ricos. A atual situação dos Estados Unidos, em especial, dificilmente seduz o mundo como modelo de sociedade bem resolvida politicamente. Ao contrário, se há algo da sua vida política que aquele país tem exportado é a “guerra cultural”, marcada pelo conflito extremo e apaixonado de ideologias e visões de mundo.

Se é verdade, porém, que o imaginário popular tem migrado da democracia para o autoritarismo, da convivência pacífica para o conflito, é talvez a hora de colocarmos uma pergunta ainda anterior àquela da Foreign Affairs. A democracia é sequer possível? Ou a ascendência, pela via majoritária – e, pois, formalmente democrática – de visões de mundo autoritárias apenas demonstra o caráter paradoxal e inevitavelmente autodestrutivo do sistema político democrático?

Essa questão é justamente o centro do debate Habermas-Michelman sobre o caráter não-paradoxal da democracia. Em um resumo apertado, Frank Michelman questiona o fundamento da forma de estabelecimento da democracia, afirmando que um processo verdadeiramente democrático é inescapavelmente constituído e condicionado legalmente, mas que, de acordo com a premissa liberal do pluralismo, as próprias arenas de legislação e adjudicação que legitimam o processo democrático podem se tornar matéria de discordância. Com isso, diz, o processo não pode evitar a circularidade da autorreferência, e se vê presa de um regresso ao infinito[2]. A essa objeção, Jürgen Habermas responde que o próprio regresso é uma expressão da abertura da Constituição democrática. E acrescenta que uma Constituição democrática – e que o é não apenas em seu conteúdo, mas também em sua fonte de legitimação – é um projeto de construção de uma tradição, com um começo claramente marcado no tempo histórico, sendo que todas as gerações seguintes à elaboração do documento material original da Constituição têm a tarefa de atualizar a substância normativa do sistema de direitos positivado nele[3].

Sem pretender resolver a contenda teórica, mas livremente inspirados na posição habermasiana do debate, poderíamos dizer que a democracia pressupõe um mínimo consenso sobre sua fonte de legitimação, que seria o da própria organização política do Estado – o que gostaríamos de chamar aqui de “primeiro momento” da democracia –, para possibilitar o debate livre das questões que exigem deliberação e escolha no espaço público – nosso “segundo momento”. O equilíbrio é difícil em tempos de “guerra cultural” justamente porque, quanto mais se acirram os ânimos na discussão do “segundo momento”, maior é a tentação de negar o direito de participação do adversário, o que põe em risco evidente as condições estabelecidas no “primeiro momento”.

Em países como o Brasil, a tentação antidemocrática tende a ser maior à medida que, no “segundo momento”, ou seja, na arena da discussão política cotidiana, muitos pensam que “o problema” do país é a predominância histórica do adversário, que precisa ser interrompida ainda que de modo traumático. Em linhas grosseiramente traçadas, há, por exemplo, uma visão de mundo dita “de direita” que localiza “o problema” do país na tradição patrimonialista e paternalista do Estado, e uma outra dita “de esquerda” que o enxerga no domínio secular da sociedade por uma elite econômica. Em ambos os casos, a solução seria a ruptura do curso das coisas em nome da promessa de um novo futuro, que envolve, invariavelmente, a redução do oponente político à irrelevância, quando não a sua destruição pura e simples.

Aqui, portanto, a justiça constitucional se apresenta como condição de continuidade do exercício da democracia. Ronald Dworkin observou que a democracia significa o governo sujeito a condições, que garantem o estado de igualdade a todos os cidadãos: quando instituições majoritárias não respeitam as condições democráticas, não pode haver objeção, em nome da democracia, a procedimentos que as protejam e respeitem melhor[4]. Da mesma forma, Dieter Grimm apontou que um sistema que pretende reconhecer como legítimos o conflito de opinião e a pluralidade de interesses apenas poderá subsistir se houver algum consenso sobre a forma de resolução de conflitos e sobre os limites mesmos desses conflitos[5]. Se, por outro lado, a controvérsia tiver por objeto o próprio método (democrático) de solução dos conflitos, então o sistema não está livre da ameaça de instabilidades e de tumultos no seu funcionamento[6].

Não é por acaso que tantos países saídos de experiências autoritárias mais ou menos recentes passaram a instituir em seus sistemas jurídicos o controle de constitucionalidade e a confiá-lo a tribunais constitucionais ou a cortes supremas. Falamos tanto de Estados europeus que tiveram experiências fascistas ou similares e de Estados latino-americanos que sofreram com ditaduras militares, quanto de ex-colônias africanas e asiáticas e de ex-membros da “Cortina de Ferro”. Nesse sentido, Dworkin destaca como, quando uma ampla maioria da população veio a empunhar o poder político pela primeira vez na África do Sul pós-apartheid, ao invés de instalar o poder absoluto das maiorias, preferiu submeter o próprio poder ao controle de um tribunal constitucional. O autor sugere que as pessoas que foram oprimidas pelo poder arbitrário sentiram, de alguma forma, que a proteção contra esse poder arbitrário viria de um tribunal forte[7].

A partir de um estudo de casos nas “novas democracias” asiáticas, Tom Ginsburg chegou a conclusões que se pretendem válidas para a avaliação do papel do controle de constitucionalidade em qualquer democracia “jovem”, e que aqui resumimos[8]:

(a) A justiça constitucional opera como um “seguro” nas novas democracias. Isso porque os desdobramentos políticos futuros são mais incertos na democracia do que na autocracia: a presença de competição eleitoral significa que mesmo os partidos mais populares enfrentam um risco maior de perder o poder do que em um sistema de, por exemplo, partido único. Essa incerteza aumenta a demanda pela segurança política que o controle de constitucionalidade oferece.

(b) Por oferecer centros de poder alternativos, a democracia incentiva os atores políticos a levarem suas disputas aos tribunais. Isso também reduz os constrangimentos ao discurso político e permite àqueles desalojados do poder desafiar a ação do governo de turno.

(c) A justiça constitucional pode expressar valores fundamentais para a democracia e marcar uma ruptura com o passado autoritário. Ao impor aos novos líderes limitações que não eram impostas aos antigos, o controle de constitucionalidade expressa e conforma novas noções de justiça e de direito. A judicial review pode transformar tensão política em limitação jurídica.

(d) Quando o conflito político se torna muito severo, a democracia pode entrar em colapso. Ao transformar conflitos políticos em diálogos constitucionais, os tribunais podem reduzir a ameaça à democracia e permiti-la que cresça. Para exercer esse importante papel de contribuição para a estabilidade democrática, os tribunais devem desenvolver seu próprio poder ao longo do tempo.

(e) o controle de constitucionalidade, enfim, não é apenas uma questão de desenho institucional. As decisões dos tribunais são cruciais para se determinar como o sistema operará e se ele será ou não uma parte importante da ordem política.

A legitimidade da jurisdição constitucional será tanto maior quanto se puder demonstrar, concretamente em cada caso, que a autoridade de uma determinada prática eventualmente contramajoritária está ancorada em uma tradição jurídica sólida. Com efeito, os tribunais não podem descurar do que Grimm denominou de “risco democrático”[9] e que Gilmar Mendes chama, similarmente, de “ambivalência democrática”[10]. Ao mesmo tempo em que a atuação da jurisdição constitucional pode contribuir para reforçar a legitimidade do sistema democrático, ela pode também bloquear o desenvolvimento constitucional do país, à medida que se torne um mecanismo de imposição da vontade particular dos juízes em detrimento do processo decisório levado a cabo por um órgão com legitimação representativa. Estabelece-se, assim, um “equilíbrio instável”, que constitui “o autêntico problema da jurisdição constitucional na democracia”[11].

É assim que, se de um lado a legitimidade democrática do exercício em tese da jurisdição constitucional é amplamente aceita nos meios jurídico-políticos contemporâneos, nem sempre será tão fácil justificar um exercício específico de justiça contramajoritária. Distinguimos, deste modo, o problema da legitimação abstrata e o da legitimação concreta da justiça constitucional: uma coisa é convencer a comunidade política, com base em argumentos como os expostos acima, de que a supremacia constitucional depende da atuação de um órgão judicial capaz de garanti-la; outra, porém, é sustentar em um caso específico a razão de uma solução contramajoritária ser uma legítima expressão dessa garantia, e não uma usurpação de poder por parte de um pequeno grupo de juízes.

De modo similar, Antoine M. Hol diferencia a “legitimidade de entrada” (input legitimacy) e a “legitimidade de saída” (output legitimacy) de uma decisão judicial. A legitimidade de entrada é aquela oferecida pelo próprio sistema jurídico, ou seja, pela autoridade formal do julgador. A legitimidade de saída, por sua vez, é aquela que diz com a aceitabilidade da decisão pelas partes e pelos cidadãos para os quais ela pode ser importante no futuro. Segundo Hol, é fácil perceber que um tribunal pode hoje ser confrontado com questões críticas relacionadas às suas decisões se elas diferem dos julgados de cortes estrangeiras em casos similares. Para prevenir ou responder a uma crítica dessa ordem, pode ser prudente discutir as soluções alternativas encontradas pelos juízos estrangeiros. Em suma, o que Hol propõe é que a busca por coerência nas decisões judiciais é, afinal, uma busca por legitimidade[12].

O que queremos salientar é que, ainda que uma maioria – ou mesmo uma virtual unanimidade – de cidadãos de uma ordem constitucional estejam de acordo a respeito de que uma instituição exerça a guarda da observância a um pré-compromisso estabelecido em um momento de sobriedade[13], essa maioria pode ter dificuldades para identificar os termos daquele pré-compromisso, e outras ainda maiores para reconhecer que a sua vontade atual esteja em desacordo com eles.

Aí o valor do diálogo judicial internacional. A demonstração de que outro juízo, de outra nação ou de um tribunal internacional, julgou de determinada maneira uma questão semelhante pode conferir legitimidade concreta para que a mesma solução, ainda que contramajoritária, seja adotada também em âmbito local. Os julgados estrangeiros servem, pois, como indícios de que uma determinada interpretação encontra esteio na tradição que conformou o pré-compromisso, deslocando assim o foco da discussão, da vontade individual para a construção supra-individual.

Nesse sentido, Michiel Scheltema sustenta que, em um mundo internacionalizado, alguma forma de “consistência transnacional” é importante para a autoridade dos tribunais e do direito: se os tribunais dos diversos países chegam a soluções muito diferentes para questões semelhantes, sem que a cultura jurídica dos países envolvidos ofereça argumentos que justifiquem tais diferenças, isso poderá minar a autoridade desses tribunais. Poderia dar a impressão de que os tribunais não fazem mais do que declarar as suas próprias preferências, como se elas representassem o direito vigente. Entretanto, se os tribunais encontram suas soluções com alguma consistência, isso fortalecerá a autoridade das cortes e do direito: ficará claro que o direito é mais do que a mera opinião do tribunal, e que ele pode oferecer uma base para a decisão de novos casos[14].

Enfim, se os desafios à democracia são globais, qualquer perspectiva de solução passa inevitavelmente pelo reforço mútuo da autoridade e da consistência da jurisdição constitucional pelos tribunais de todo o mundo.

 

 

Notas e Referências

[1] MOUNK, Yascha; FOA, Roberto Stefan. The End of the Democratic Century. Foreign Affairs, vo. 97, n. 3. New York, 2018, p. 30.

[2] MICHELMAN, Frank. Constitutional Authorship. In: ALEXANDER, Larry (ed.). Constitutionalism: Philosophical Foundations. Cambridge, UK: Cambridge University Press, 1998, p. 91.

[3] HABERMAS, Jürgen. Constitutional Democracy: A Paradoxical Union of Contradictory Principles? Political Theory. Vol. 29, n. 6. London, 2001, p. 774.

[4] DWORKIN, Ronald. Freedom’s Law: The Moral Reading of The American Constitution. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1996, p. 17.

[5] GRIMM, Dieter. Verfassungsgerichtsbarkeit: Funktion und Funktionsgrenzen im demokratischen Staat. In: HOFFMANN-RIEM, Wolfgang (org.). Sozialwissenschaften im Studium des Rechts. Band 2: Staats- und Verwaltungsrecht. München: Beck, 1977, p. 96.

[6] MENDES, Gilmar Ferreira. Controle de Constitucionalidade: Hermenêutica Constitucional e Revisão de Fatos e Prognoses Legislativos pelo Órgão Judicial. Revista Jurídica Virtual. Vol. 1, n. 8. Brasília, 2000, p. 4.

[7] DWORKIN, Ronald. Judicial Activism [Intervenção]. In: BADINTER, Robert & BREYER, Stephen. Judges in Contemporary Democracy: An International Conversation. New York: New York University Press, 2004, p. 34-35.

[8] GINSBURG, Tom. Judicial Review in New Democracies: Constitutional Courts in Asian Cases. New York: Cambridge University Press, 2003, p. 30-31, 104, 247 e 261-262.

[9] GRIMM, Verfassungsgerichtsbarkeit, op. cit., p. 97-98.

[10] MENDES, Controle de Constitucionalidade, op. cit., p. 5.

[11] MENDES, Controle de Constitucionalidade, op. cit., p. 5.

[12] HOL, Antoine M. Internationalisation and Legitimacy of the Decisions by the Highest Courts. In: MULLER, Sam & LOTH, Marc (ed.). Highest Courts and the Internationalisation of Law: Challenges and Changes. The Hague: Hague Academic Press, 2009, p. 78-9.

[13] ELSTER, John. Ulysses and the Sirens: Studies in Rationality and Irrationality. Cambridge, UK: Cambridge University Press, 1979.

[14] SCHELTEMA, Michiel. The Changing Role of Highest Courts: Concluding Observations. In: MULLER, Sam & LOTH, Marc (ed.). Highest Courts and the Internationalisation of Law: Challenges and Changes. The Hague: Hague Academic Press, 2009, p. 189. 

 

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