ABDPro #37 - A RELEVÂNCIA DA DOGMÁTICA JURÍDICA DE UMA PERSPECTIVA LUHMANNIANA ÀS POSIÇÕES DE TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JR.: BASES PARA UMA CRÍTICA AO PAPEL A ELA DESIGNADO NA OBRA DE FREDIE DIDIER JR.

13/06/2018

Coluna ABDPro

  1. Considerações iniciais

            Este texto está desenvolvido em formato de paper[2]. Exatamente por isso, ele consolida uma das tantas etapas da pesquisa por mim empreendida visando à elaboração de minha tese doutoral no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Católica de Pernambuco.

            Parto, aqui, de duas hipóteses: a) a impossibilidade de se falar em conceitos a priori para o direito e, em específico, para o direito processual (referente a área de pesquisa na qual estou inserido), tal como defende ressonante doutrina, isso em nível de Tese de Livre-Docência (título comercial: Sobre a Teoria Geral do Processo, essa desconhecida); b) a relevância dos conceitos que tal doutrina diz ser “meramente” jurídico-positivos (dogmáticos), logo a importância Dogmática Jurídica, observando, acima de tudo, o aspecto funcional desta.

Duas são, portanto, as críticas a serem feitas à mencionada doutrina: a) a primeira, de ordem epistemológica, demonstrando a impossibilidade de se falar em conceitos jurídicos a priori, e isso mesmo na perspectiva da Primeira Crítica de Kant. Este filósofo será utilizado no trabalho não como marco teórico do que será proposto, mas sim como antípoda da tese que se pretende refutar. A crítica a ser feita terá por norte as próprias premissas utilizadas na tese em oposição; b) a segunda, verdadeira consequência possível da primeira, de viés metodológico, de modo a demonstrar, a partir do aspecto funcional, a relevância do aperfeiçoamento dos estudos dogmáticos. Na tese oposta, os chamados conceitos jurídicos-positivos, por serem mutáveis, flexíveis a qualquer “mudança de ventos” no sistema normativo posto, não serviriam (ao menos com a mesma dignidade epistêmica) aos estudos do verdadeiro jurista do Direito Processual, o qual deveria se dedicar à análise dos conceitos jurídicos a priori.

Este trabalho corresponde aos marcos teóricos possíveis (e, por enquanto, ainda não de todos definidos) a serem adotados para a sustentação da segunda crítica acima.

Dois autores que, a seus modos, dedicaram-se a analisar a Dogmática Jurídica foram, em opção metodológica, escolhidos para tanto. São eles: Niklas Luhmann e Tércio Sampaio Ferraz Jr. Isso sem impedir que, a latere, outros sejam utilizados.

De Luhmann, utilizarei a noção que a Dogmática Jurídica é componente do sistema jurídico, e não do científico, de modo que são nas especificidades do primeiro (e para elas) que ela deve ser pensada, incluindo-se, em tal âmbito, os chamados conceitos jurídicos gerais (para não dizer universais ou, pior, a priori, como se encontra na tese a que me oponho); de Ferraz Jr., valer-me-ei, a partir da distinção entre as dogmáticas analítica, hermenêutica e empírica, da relevante função que a primeira desempenha.    

Antes de analisar as perspectivas acima, delimitarei a noção de Dogmática Jurídica a partir da sua relação com o que se entende por direito positivo. Neste momento inicial, Tércio Sampaio Ferraz Jr. e Marcelo Neves serão os autores de suporte.  

O trabalho que ora desenvolvo, percebe-se, tem um viés preponderantemente analítico, algo que faço de modo algum para restringir o fenômeno jurídico a tal âmbito, mas sim porque é neste que a tese oposta diz laborar[3]. Como dito, é a partir das premissas dela que pretendo lançar as necessárias críticas.

  1. Relações entre a Dogmática Jurídica e o direito positivo

            Tércio Sampaio Ferraz Jr.[4], partindo de Mario Bunge e Miguel Reale, diz que a primeira se articula em diferentes modelos. Por estes, entende-se serem padrões esquemáticos postos em dois sentidos: o objeto-modelo e o modelo-teórico. 

A seu ver, o primeiro é o esquema simbólico que seleciona fenômenos individuais, agrupando-os em classes. No caso sistema jurídico, eles seriam compostos pelas fontes do direito. Já o segundo tipo tem a ver com esquemas que se referem aos anteriores, a partir de enunciados logicamente concatenados, impossíveis de configuração gráfica, com precisão no máximo aproximativa, algo que os torna sempre passíveis de serem superados. As chamadas teorias jurídicas sobre os mais diversos institutos jurídicos constituem-no[5]

Daí se dizer que a Dogmática Jurídica se articula em modelos teóricos referidos a objetos-modelos.

Um exemplo serve para elucidar.

Relação jurídica é termo pertinente não só à linguagem objeto (objeto modelo, no dizer de Ferraz Jr.), como também à metalinguagem (modelo teórico, para o mesmo autor)[6]. No direito positivo – realidade socialmente significativa – há vínculos entre os sujeitos de direito. À metalinguagem doutrinária cabe, dando utilidade metodológica e correção epistemológica, definir e estruturar (apresentar classificações etc.) esse vínculo. Quando um juiz, analisando uma causa, diz, por exemplo: “A comprou de B o automóvel X e, em virtude disso, passou a dever R$ 100.000,00 (cem mil reais)”[7], está-se a referir ao plano da linguagem objeto, falar de um fato do mundo existente entre dois sujeitos; já quando um jurista (que pode ser o próprio juiz numa atividade não judicante) diz: “em tal caso, há uma obrigação, que consiste numa relação jurídica cujo objeto é uma promessa de prestação patrimonialmente mensurável”, está-se a falar no âmbito da metalinguagem (Dogmática Jurídica).

Essa relação, porém, não é estática, mas sim dinâmica (movimentando-se em circularidade), pois a linguagem da Dogmática Jurídica pode vir a ser objeto de uma linguagem no âmbito do direito positivo. Não há, pois, hierarquização entre elas. Como diz Marcelo Neves: “A Constituição como ‘nível inviolável’ foi reconstruída por níveis normativos ‘inferiores. Ela, que, em princípio, seria ‘metaliguagem’ normativa em relação aos atos da jurisdição constitucional, que constituiriam a respectiva ‘linguagem objeto’, tornou-se ´linguagem objeto´ desses atos, que se transformaram, sob outro ângulo, em ´metalinguagem”[8].

 

  1. Luhmann e a Dogmática Jurídica

            Luhmann, por óbvio, insere o problema da Dogmática Jurídica na sua Teoria dos Sistemas.

            Em brevíssima síntese, ela parte da ideia de que a sociedade é um sistema envolvido por um ambiente. O ser humano (sistema psíquico), por exemplo, está em seu entorno. Sociedade, além disso, opera apenas por comunicação, tendo cada sistema social o seu código próprio de absorção da comunicação. A sociedade moderna, caracterizada pela complexidade e contingência (aquilo que é apenas possível), tem nesses sistemas um redutor da própria complexidade, absorvendo as contingências (daí se dizer que o sistema jurídico absorve eventuais injustiças, sendo a justiça a contingência dele)[9]

            O sistema jurídico estrutura-se por expectativas normativas[10]. Por essas, deve-se entender aquelas pelas quais o sistema admite adaptação, sendo elas por ele absorvidas. É o que acontece se alguém matar outrem, não vai haver, com isso, pura e simplesmente, a “ruína” da previsão normativa do crime de homicídio (art. 121, CP). A elas se contrapõem as chamadas expectativas cognitivas, como ocorre com as teses científicas, que “ruinam” caso venham a ser falseadas[11].

            No caso do direito, tal código é o de licitude/ilicitude da comunicação ocorrida. Isso significa dizer que, do ponto de vista do sistema jurídico, ela só é compreensível mediante tal código. Isso, como em toda teoria luhmanniana, opera uma redução da complexidade social, de modo que “emergências” advindas de outros sistemas sociais, como o econômico (cujo código é ter/não ter, no sentido de patrimônio), não têm relevância, por si sós, no sistema jurídico que não seja por intermédio do código próprio deste último. Assim, por exemplo, não é o fato de alguém não ter algo (economicamente falando) que poderá reivindicá-lo juridicamente; para tanto, é preciso verificar a licitude (conformidade ao direito) dessa reivindicação.   

            O sistema jurídico é composto não apenas do direito positivo propriamente dito (no sentido de leis, decretos, regulamentos etc.), mas também por outros programas[12], dentre eles: a Dogmática Jurídica, base deste texto.

            Resumidamente, a Dogmática Jurídica, acima de tudo pelo conhecimento transmitido por aqueles que analisam o direito (ditos juristas), constitui parte do programa referente ao sistema jurídico (submetido ao código lícito/ilícito). Os relatos emitidos por eles servem para definir, sistematizar, organizar o sistema jurídico, daí atuarem para o fechamento operacional do sistema[13]. Funciona, enfim, como uma autorreflexão do sistema jurídico.  

            A Dogmática, porém, tem um viés tecnológico (algo por ser pormenorizado abaixo), não tem pretensão de veracidade, mas sim de decidibilidade[14], baseada no proibição de negação (por ser esmiuçado abaixo)[15]. Seu aspecto veritativo é apenas meio para tanto. Daí se dizer que ela não compõe o sistema social científico, sendo parte do sistema jurídico, submetida, pois, a toda a comunicação (código, programa etc.) nele ocorrente.

            Aqui, inclui-se não só a Dogmática Jurídica propriamente dita, mas também a abstração que dela se faz, a que chamamos de Teoria Geral do Direito. 

            O viés analítico desta última ressalta esse perfil não (propriamente) científico. Eis o porquê de não se poder confundi-la com a Ciência do Direito (ou as ciências possíveis dele). Uma coisa é teorizar, no todo ou em parte, sobre o fenômeno jurídico, tal como se diz que há Teoria do Direito de Hans Kelsen, a de Hebert Hart, a de Ronald Dworkin, e até, para citarmos um brasileiro, a de Pontes de Miranda[16]; outra é uma abstração (e, por isso, delimitação) dos conceitos, das sistematizações etc. próprios da Dogmática Jurídica, que, alcançando um viés mais universal, passam a compor a abstração da abstração: a dita Teoria Geral do Direito.

              

  1. A posição de Tércio Sampaio Ferraz Jr.

            Tércio Sampaio Ferraz Jr. parte da distinção feita por Theodor Vieweg entre disciplinas zetéticas e dogmáticas[17].    

            As segundas, ao contrário das primeiras, são limitadas, logo de início, pelo problema da decidibilidade, ou seja, trata-se de um saber de ordem tecnológico, e não propriamente científico, tendo em vista que o fim deste último é, na maior medida possível, a descoberta da verdade. Nas dogmáticas a fim é sempre a justificação de uma tomada de decisão[18]

Embora partam de pontos estabelecidos – os chamados dogmas-, as disciplinas dogmáticas não constituem uma prisão do espírito, pois que, exatamente pelo problema da decidibilidade, acabam tendo de interpretar seus próprios pontos de partida, estes que, no caso da Dogmática Jurídica, são os textos normativos[19].

Como diz Ferraz Jr., baseado em Luhmann, o chamado princípio da inegabilidade dos pontos da partida não constitui a função da dogmática, sendo apenas sua condição de possibilidade[20].

Mas não é mera necessidade de decidir que impõe a ocorrência de uma Dogmática Jurídica. Em sociedades menos organizadas em que não haja diferenciação funcional entre o direito e outros sistemas, estando o primeiro submetido a outros, como o político, o saber dogmático não tem relevância. É exatamente pelo fato de questões jurídicas terem de ser resolvidas a partir do próprio sistema jurídico, em oposição ao que se chama de questões de fato (ou seja, problema de vinculação), que passa a se ter a Dogmática Jurídica, sendo ela algo que está entre as premissas para decisão e o ato de tomada de decisão[21]

Nesse contexto, tem-se uma dupla contingência: de um lado os casos podem ou não existir; de outro, a interpretação dos textos normativos não necessariamente dá-se da mesma maneira. Este é o ponto de máxima relevância do saber dogmático, por ele funcionar como limitador dessa dupla contingência. Do ponto de vista da tomada de decisão, a consistência da Dogmática Jurídica serve de verdadeiro controle de consistência das decisões. Eis o que Ferraz Jr. chama de função social da dogmática[22].   

            Em seguida, o autor em referência dispõe sobre os três modelos de Dogmática Jurídica: o analítico, o hermenêutico e o empírico.

            Rapidamente, já que o cerne deste texto é o primeiro, entende-se pelo segundo a mediação entre o conflito e a hipótese de decisão a partir do sentido atribuível. É, portanto, uma questão de ordem interpretativa; pelo último, tem-se a mesma relação a partir das condições empíricas da tomada de decisão. Não se parte de regras postas, mas sim das exigências que o ambiente impõe ao homem que precisa ao primeiro adaptar-se.

            Diz-se analítico porquanto tal modelo baseie-se em distinções, classificações e sistematizações[23]. Nele, a função heurística (descoberta), típica de disciplinas tecnológicas, executa-se reforçando o aspecto organizatório[24].

            Um viés que deve ser ressaltado é o de que, embora a Dogmática Jurídica se revele como modeladora, os conceitos, sistematizações etc., por meio dela estabelecidos, não podem ficar ao puro arbítrio do modelador (o jurista, no caso do direito). O saber dogmático deve se adequar à realidade para a qual ele serve, no sentido de oferecer condições racionais para a decidibilidade. O que não se pode ter é um “analiticismo”, onde as posições doutrinárias (dogmáticas), além de servirem à decidibilidade, destoam, por completo, do direito positivo[25].

            Pode-se dizer que, na modelação típica do saber dogmático, se deve buscar a resposta mais adequada ao problema a ser resolvido com o máximo de rigor analítico possível.

 

  1. Primeira apresentação de uma crítica à distinção entre conceitos jurídicos fundamentais (lógico-jurídicos) e jurídico-positivos estabelecida na obra de Fredie Didier Jr.

            Neste momento, e tendo em vista a formatação de apresentação do estado de arte de uma pesquisa acadêmica (paper), lanço as primeiras bases para uma crítica à teorização, contida em obra já mencionada, de Fredie Didier Jr.

O autor em referência parte da ideia de que, para além dos níveis do direito positivo e da Dogmática Jurídica, haveria um terceiro: o da Teoria Geral do Direito (TGD), do qual a Teoria Geral do Processo (TGP), cuja ocorrência é o objeto de sua tese, seria uma espécie.

            A seu ver, enquanto a Dogmática Jurídica tem por objeto os chamados conceitos jurídico-positivos[26], à TGD cabe os chamados conceitos jurídicos fundamentais[27]. Não estabelece, porém, um critério preciso para que se opere tal distinção, algo que possibilitasse saber, com um grau de segurança alto, se os conceitos x e y são do primeiro tipo ou do segundo.

Afirma, porém, de modo categórico, que os conceitos jurídicos fundamentais não decorrerem de um sistema jurídico específico, mas sim antecedem a qualquer um, são alheios à experiência, conquanto dela sejam produto[28]. Assumem, por isso, uma perspectiva universal. Já os jurídico-positivos (a quem se poderia chamar de dogmáticos) decorrem de determinado sistema jurídico, ficando sujeitos à toda sorte de alterações legislativas. No entender do autor em análise, a cientificidade, propriamente, só estaria na análise dos primeiros; não chega ele, todavia, a dizer se os segundos não teriam similar status científico, seja por sua maior variabilidade, seja pela adoção de teses como a de Ferraz Jr., esta que, como visto, atribui um papel tecnológico, não científico, ao saber dogmático.

Críticas, porém, devem ser lançadas à tal perspectiva.

Além da falta do critério distintivo, como acima adiantado, a tese padece, ao menos, dos seguintes equívocos: a) confunde aquilo que é a priori com o problema da abstração[29]; b) confunde as definições meramente lógicas (logo, tautológicas) de um conceito com um determinado conteúdo possível a ele atribuível; c) por último, ao sobrelevar o papel da TGD, acaba por, senão eliminar, mitigar bastante a função da Dogmática Jurídica, mesmo dentro sua perspectiva analítica (única, como dito, abordada pelo autor).

            Dentro dos limites, quantitativos e qualitativos, deste trabalho, analisarei as críticas postas acima. 

            Quanto ao primeiro ponto, o autor em referência parte de um erro de categorização. O que entende por a priori é, em verdade, aquilo que se obtém por abstração. Ou seja, em vez de anteceder a qualquer experiência sensível, funcionando, nos moldes kantianos, como condição de possibilidade dela própria, os conceitos jurídicos, por mais gerais que sejam, têm base na própria experiência, esta, no contexto, formada, acima de tudo, pelo direito positivo. Não se pode falar sobre o que é um fato jurídico[30] sem que antes possa ter havido alguma experiência minimamente jurídica. Fato jurídico não é um dado que se desenvolve pela experiência, tal como as noções de espaço e tempo o são para Kant[31]. Salvo se se ater a tautologias, que é a base a segunda crítica a ser lançada.

            No contexto desta última, o autor acaba por confundir duas noções fundamentais, conduzindo-nos a uma aporia, somente solucionável mediante a utilização de tautologias. 

            Um exemplo ajuda a compreensão. Segundo sua classificação, os conceitos de competência relativa e competência absoluta são jurídico-positivos; já o de competência puro e simples seria jurídico fundamental.  

            Por qual razão ele diz isso? A seu ver[32], no primeiro caso, como os regimes jurídicos de ambas, em alguns pontos, se confundem (caso da competência absoluta que, embora cognoscível de ofício, não pode sê-lo a qualquer tempo, art. 63, § 3° c/c § 4°, CPC), não há como extrair delas algo universal. Ora, nesse caso, há uma total mistura entre a essencialidade de algo e o conteúdo a que se pode atribuir a ele. Há, de algum modo, uma essencialidade na ideia de competência relativa: seria dizer “uma competência não absoluta”. Mas essa essencialidade somente dá-se numa tautologia: “competência relativa é aquela que não é absoluta”. Isso, por óbvio, não pode ser modificado por qualquer regime jurídico.

            Com isso, pretendo dizer que a essencialidade de um conceito jurídico (como em geral) somente é possível valendo-se do recurso de uma definição tautológica.

            Não por outra razão ele diz que o conceito de sujeito de direito é lógico-jurídico. Em suas palavras: “o conceito de sujeito de direito é lógico-jurídico: todo ente que puder ser titular de uma situação jurídica[33]”. Ora, analogamente, é como dizer: “o triângulo retângulo tem três lados iguais e três ângulos iguais”. Tal tipo de definição não agrega nenhum conhecimento, pois apenas reproduz o que está no próprio sujeito, é o juízo analítico a que alude, por exemplo, Kant.

            Posto que não o faça expressamente, Didier Jr., para manter sua coerência, teria de dizer que o conceito de fato jurídico é fundamental porque “fato jurídico é tudo aquilo que é relevante ao direito”.   

            Conceitos como fato jurídico, sujeito de direito, competência, norma jurídica, dentre outros que o autor arrola como lógico-jurídicos, são identificáveis pelo seu conteúdo, atribuível de acordo com possibilidades das mais diversas, sendo o contexto do direito positivo apenas uma delas. Por exemplo, em Pontes de Miranda, fato jurídico é produto de uma incidência infalível[34]; em Paulo de Barros Carvalho, é resultante do ato de aplicação do direito[35]. Qual dessas duas concepções sobre o suposto conceito fundamental de fato jurídico deve prevalecer? Seria possível um conceito desse tipo, nos moldes fixados pelo autor aqui criticado, admitir, ao mesmo tempo, duas concepções tão distintas? São perguntas que precisam, por óbvio, ser respondidas.

            Por isso, muito embora sejam conceitos de maior generalidade, podendo, de algum modo, serem utilizados para a compreensão de ordenamentos jurídicos dos mais variados (conquanto não necessariamente), eles não têm fundamentalidade no sentido de independerem da realidade positiva, mas sim, e apenas, por um maior grau de abstração, sempre contingente, porém.

            Não, por outra razão, o autor acaba por ter de reconhecer que eles têm historicidade, algo que possibilita que determinados conceitos fundamentais tornem-se inadequados, caso da preclusão e da execução forçada, como ele alude[36]

            Por fim, é preciso lançar a pedra fundamental de uma justificação da terceira crítica lançada à obra em análise.

Como dito, ao sobrelevar os conceitos lógico-jurídicos, o autor acaba por relegar o status teórico da análise sobre aqueles “meramente” positivos. A afirmação parece bastante ousada e, talvez, sem embasamento. Isso, contudo, é o que se percebe da obra. Pretendendo atribuir status de ciência à Teoria Geral do Direito (e, mais particularmente, à Teoria Geral do Processo)[37], o autor não dedica uma única linha à relevância dos conceitos referentes à Dogmática Jurídica.

Ora, para um trabalho que, a partir da oposição entre conceitos tidos por fundamentais e outros chamados de “meramente” positivos, pretende redefinir o que seja Teoria Geral do Processo (e, até mesmo, apresentar sua essência, vide seu “provocativo” título) a não abordagem do quando (isso sem falar no como e no porquê) seria necessário “doutrinar” sobre os do segundo tipo pode, no mínimo, dar azo a marginalizá-los.

Como já aventado a partir das perspectivas de Niklas Luhmann e Tércio Sampaio Ferraz Jr., o saber dogmático tem viés tecnológico: existe para dar uma justificativa racional à resolução de conflitos (problema da decidibilidade).

Desse modo, se se tem um conceito que, no critério (ou na falta deste) apresentado pelo autor criticado, não tem status científico por não pertencer à Teoria Geral do Processo, qual seria a importância de analisá-lo?   

A razão desta última, sem dúvida, aparece quando tal conceito não serve mais para justificar soluções para diversos problemas ocorrentes na realidade jurídica. Utilizo-me do conceito de recurso, tido pelo mencionado autor como jurídico-positivo[38].

Dentro da Dogmática Processual Civil brasileira, a parte relativa ao direito recursal é das mais destacadas. Há relevantes trabalhos sobre a Teoria Geral dos Recursos, sejam de modo geral[39], sejam de modo específico[40]. Contudo, em relação a um dos pontos da chamada Teoria Geral dos Recursos – o relativo à natureza do recurso-, muito pouca coisa foi publicada ao longo dos anos. Na literatura estrangeira, há conhecido debate sobre o tema, no qual são colocadas duas posições antagônicas: o recurso como simples prolongamento da ação originária[41] e o recurso como ação autônoma[42].

Não obstante a pouca ênfase dada pela doutrina ao tema, trata-se de algo da mais alta relevância. Para além da necessidade de, na maior medida possível, se estabelecer a devida precisão conceitual (perspectiva analítica), há problemas práticos por serem solucionados a partir do que venha a se entender por recurso. É possível entender o juízo da decisão recorrida como destinatário de uma ordem a ser emitida pelo juízo do recurso? As decisões no âmbito do recurso que não tenham a ver com aquilo que consta na sentença recorrida são aptas a formar coisa julgada, formal e material? Para poder responder a essas e outras questões de modo satisfatório, é necessário que a compreensão do que seja recurso se funde em bases analíticas sólidas. Cabe à processualística, portanto, fazê-lo.

 

  1. Conclusões parciais

             Sem embargo da ausência de status científico, o saber dogmático tem extrema relevância no contexto jurídico, pois, tal como lançado por Luhmann e, na realidade brasileira, destrinchado por Tércio Sampaio Ferraz Jr., ele posiciona-se diante do problema da necessidade de decisão. A Dogmática Jurídica, conteúdo do sistema jurídico, atua para atribuir uma justificação racional entre essa premência do (ter de) decidir e a tomada de decisão propriamente.

            Em sua perspectiva analítica, a precisão de seus conceitos, no sentido de maior redutibilidade aos diversos problemas que se apresentam ao operador do direito, é de sua própria essência.

            É essa nota distintiva que torna relevante a Dogmática Jurídica serviu de base para uma crítica metodológica possível à Tese de Livre-Docência de Fredie Didier Jr., pela qual se defende a ocorrência dos chamados conceitos lógico-jurídicos, de modo a ter status de ciência a disciplina que os analisa, a chamada Teoria Geral do Direito.

Notas e Referências

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[1] Bacharel, mestre e doutorando em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco. Professor de Direito Civil e Processual Civil da mesma Instituição. Vice-Presidente da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro). Membro do Conselho Editorial da Revista Brasileira de Direito Processual (RBDPro). Advogado.

[2] O presente texto foi apresentado como trabalho de conclusão da disciplina ministrada pelo professor João Paulo Allain Teixeira no Doutorado Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Católica de Pernambuco.

[3] “’Ela [minha refutação] não é baseada em documentos da Fé, mas nas razões e afirmações dos próprios filósofos’. Seriam todos os doutores ortodoxos, em suas deliberações, tão razoáveis quanto foi Aquino em sua ira? Lembrariam os apologistas cristões está máxima; e a gravariam em letras grandes na murada, antes que afixassem lá quaisquer de suas teses? No ápice de sua fúria, Tomás de Aquino compreende o que muitos defensores da ortodoxia não entenderão. Não é bom dizer a um ateu que ele é ateu; ou acusar alguém que nega a imortalidade com a infâmia de negá-la; ou imaginar que alguém pode forçar um oponente a admitir que esteja errado, provando que ele está errado com bases em princípios alheios, que não seus próprios. Depois do grande exemplo de Tomás de Aquino estabelece-se o princípio, ou mantém o que desde sempre já se havia estabelecido; que ou nós nunca devemos argumentar com homem nenhum, ou devemos fazê-lo em seus próprios termos, não nos nossos” (CHESTERTON, 2015, p. 83-84).

[4] FERRAZ JR., 2015, p. 116-117.

[5] Ferraz Jr. utiliza como exemplos as teorias sobre a norma jurídica, o direito de ação, as fontes do direito etc. (FERRAZ JR., 2015, p. 117). Isso, claro, pode ser estendido a outros casos, como a teoria do recurso, da execução forçada, do litisconsórcio, para ficar apenas no âmbito do direito processual.

[6] Trabalha-se, aqui, com a tradicional distinção feita no âmbito do neopositivismo lógico, especialmente por Rudolf Carnap, entre linguagem objeto e metalinguagem (sobre a originalidade de Carnap, quanto ao ponto, ver OLIVEIRA, 1996, p. 75).

[7] O referencial acima, para dizer ser linguagem objeto o ato judicial, é o fato de os relatos dos aplicadores do direito objetivo serem componentes do ordenamento jurídico como um todo. Não obstante, a linguagem do aplicador do direito pode ser dita metalinguística se considerarmos que ele se pronuncia sobre outra linguagem: a do direito positivo aplicável à espécie. A distinção entre linguagem objeto e metalinguagem é, sempre, dependente de um referencial, pois a segunda é linguagem sobre outra linguagem. Logo, para dizer que se está a falar de uma linguagem, precisa-se saber que linguagem ela é. A linguagem científica é, sempre, metalinguagem do objeto da respectiva ciência. Eis a razão de, acima, se dizer que a linguagem da Dogmática Jurídica é a metalinguagem da linguagem do direito positivo. 

[8] NEVES, 2009, p. 296. 

[9] “A sociedade moderna é para Luhmann caracterizada pela complexidade e pela contingência. Contingência significa que as possibilidades são sempre maiores do que aquelas que podem ser efetivamente atualizadas. Em outras palavras, contingente é algo que nem é necessário e nem impossível” (TEIXEIRA, 2009, p. 102).

[10] TEXEIRA, 2009, p. 102.

[11] Sobre o ponto, LUHMANN, 1983, p. 62-64.

[12] “Um programa é um complexo de condições de correção (e isso significa: da desmontabilidade social) do comportamento. O plano do programa se autonomiza em face do plano dos papéis, quando o que está em questão é exatamente esse ganho de abstração, quando, portanto, o comportamento precisa ser regulado e esperado por mais de uma pessoa” (LUHMANN, 2016, p. 360).

[13] “É possível introduzir novas distinções, refinar conceitos, decompondo-os, ou, também, buscar conceitos novos de caráter mais geral, por exemplo, no caso de formas de união civil semelhantes ao casamento. Rebelar-se contra conceitos é algo sem sentido, como todo intento de chegar a um juízo apoiando-se apenas em valores e interesses” (LUHMANN, 2016, p. 519).

[14] Aqui, o conteúdo da Dogmática Jurídica ganha contornos relevantíssimos no âmbito da argumentação: “Os conceitos devem ser empregados de maneira consistente com relação a si mesmos e às distinções que neles foram marcadas (assim como as palavras na linguagem). Os conceitos constroem em rede de segurança de caráter segundo e metatextual, que se faz disponível para a redundância do sistema. Uma vez que os conceitos tenham sido elaborados e que os textos jurídicos se servem de sua linguagem, é quase inconcebível que o argumentar no direito possa prescindir deles” (LUHMANN, 2016, p. 519).

[15] “La característica más importante en el concepto de la dogmática para la comprensión habitual es la prohibición de la negación: la no-negabilidad de los puntos de partida de las cadenas de argumentación” (LUHMANN, 1983, p. 27)

[16] Neste caso, refiro-me à Teoria (ou, nas palavras do autor, Ciência) do Direito desenvolvida, acima de tudo, na sua obra (Sistema de Ciência Positiva do Direito, PONTES DE MIRANDA, 1972), e não propriamente sua teorização dogmática, em que se destaca a conhecida Teoria do Fato Jurídico (nomenclatura esta cunhada por MELLO, 2003), cuja principal obra é o Tratado de Direito Privado, em especial os seis primeiros tomos.

[17] Segundo Ferraz Jr. tal distinção remonta a Quintiliano (FERRAZ JR., 2015, p. 79, nota 14).

[18] FERRAZ JR., 2015, p. 94.

[19] FERRAZ JR., 2015, p. 94.

[20] FERRAZ JR., 2015, p. 94.

[21] FERRAZ JR., 2015, p. 96.

[22] FERRAZ JR., 2015, p. 97.

[23] FERRAZ JR., 2015, p. 124.

[24] Nesse sentido, FERRAZ JR., 2015, p. 119.

[25] É bom exemplo ocorre no âmbito do direito processual. É conhecida a discussão para saber se a competência do STF para processar e julgar mandado de segurança contra ato do Presidente da República (art. 102, I, d, CRFB) é funcional ou em razão da pessoa. Ora, essa discussão não tem a menor relevância prática, pois, tendo em vista o problema da decidibilidade, o que releva saber é “qual juízo é competente” (no caso, o STF) “se tal competência é absoluta ou relativa”, pois as consequências da ausência de uma e de outra diferem de modo considerável.

[26] Conquanto não diga expressamente, o autor acaba por limitar o papel da Dogmática Jurídica ao aspecto conceitual.

[27] Na tese e nas primeiras edições da versão comercial desta, o autor utilizava, influenciado por Juan Manuel Teran e José Souto Maior Borges, a nomenclatura conceito lógico-jurídico. Ao que parece, a partir da terceira edição, há prevalência, inclusive nos títulos atribuídos aos itens do desenvolvimento, do uso do termo conceito jurídico fundamental. Ver, para tanto, acima de tudo DIDIER JR., 2016, p. 52.

[28] DIDIER JR., 2016, p. 53.

[29] “O conceito, como vimos, é o resultado de uma abstração. Temos este livro, e temos aquele; este é maior, aquele é menor e verde; este é de capa amarela. Aquele é grosso, este é fino. Vamos abstraindo essas concreções e chegamos a uma abstração geral, que é conceito de livro, uma porção de cadernos manuscritos ou impressos, encadernados ou brochados. Livro é um livro ideal, um livro que não se coloca no espaço, que não tem dimensões, que não tem tempo, pois não tem um ano, nem dois de existência” (SANTOS, 2015, 73).

[30] Utiliza-se, como exemplo, o conceito do fato jurídico pois é um dos que o autor criticado mais realça como tendo essência de conceito fundamental.

[31] KANT, 2012, p. 71-73.

[32] DIDIER JR., 2016, p. 51.

[33] DIDIER JR., 2016, p. 55.

[34] PONTES DE MIRANDA, 1970, 77.

[35] CARVALHO, 2007, p. 135-136.

[36] DIDIER JR., 2016, p. 55-57.

[37] Vide, para tanto, DIDIER JR., p. 45-48.

[38] DIDIER JR., 2016, p. 60.

[39] Por todos, LIMA, 1976, NERY JR., 97.

[40] Neste caso, BARBOSA MOREIRA, 1968.

[41] De que é defensor, dentre outros, ROCCO, 1972, p. 311 e segs.

[42] Tese defendida por, também dentre outros: no direito italiano, BETTI, 1936, p. 638 e segs.; PROVINCIALI, 1962, p. 71 e segs.; DEL POZZO, 1951, p. 136 e segs.; no direito alemão, GILLES apud NERY JR., 1997, p. 184-185; e, no direito espanhol, GUASP, 1968, p. 709 e segs.

 

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