ABDPRO #31 - Processo judicial e desigualdade

02/05/2018

Quem “quebra” o nosso sistema de justiça? Qual é o fator responsável por essa crise do Judiciário de que sempre ouvimos falar? Há muito tempo escutei uma resposta  bastante difundida para essas perguntas: “o brasileiro é muito litigioso”. Tal afirmação tinha a força de um ditado popular. E era frequentemente referendada no discurso acadêmico, conforme percebi ao ingressar no curso de Direito. Mesmo quando não era dita com todas as letras, dava o tom àquele desabafo do autor em um livro, ao discurso entusiasmado do palestrante em um congresso, à entrevista dada por um especialista no jornal.

Fiquei contrariado com essa explicação. Em primeiro lugar, porque era muito diferente da minha percepção cotidiana: todos que eu conhecia odiavam qualquer coisa que remetesse a um processo judicial. Inúmeras vezes ouvi alguém dizer: “deixa isso pra lá”, “não vale a pena pôr na justiça”, “isso aí leva anos e não dá em nada”... Claro, havia exceções, mas logo se tornavam casos folclóricos, ganhavam apelido e tudo. Seria possível que a crise do Judiciário brasileiro fosse causada por um amigo meu, conhecido como “homem-litígio”, somado a alguns outros “homens-litígio”? Achava pouco provável. Afinal, em meio a um ceticismo generalizado, se um sistema de justiça não tivesse capacidade de atender a algumas pessoas que acreditam nele, que buscam ativamente seus direitos por essa via, para que ele serviria?[1] Mais do que isso:  instituições sólidas deveriam ser capazes de operar até mesmo com as demandas infundadas que surgem eventualmente entre as “pessoas comuns”, os pequenos litigantes.

Em segundo lugar, a explicação também me soava como “complexo de vira-lata”. Algo do tipo: “o problema do Brasil é o brasileiro”. Na comparação favorita de muitos, os Estados Unidos teriam prosperado economicamente porque seu povo é mais ético, mais civilizado, culturalmente superior a nós. O curioso era que elementos de cultura popular americana que me chegavam mostravam uma sociedade bem mais litigiosa. Obviamente, isso passa longe de um dado obtido através de mapeamento rigoroso da litigiosidade, mas já sinaliza para a maneira como outras sociedades se autorrepresentam, o que percebem como normal nas suas relações cotidianas. E o que aparece é uma disposição bem maior do que a nossa à solução judicial dos conflitos.

Em terceiro lugar, passei a ver tal “litigiosidade do brasileiro" a partir do que vim a aprender sobre filosofia e teoria social. Por meio dessa explicação, apela-se para um “essencialismo”[2], uma suposta natureza inferior do brasileiro, que seria fadado a dar errado em tudo que faz[3].

A desconfiança virou tema para pesquisa quando fui me dando conta da falta de fundamentos para essa explicação, de quão disseminada ela era e do estrago que ela gerava na nossa prática jurídica. Comecei a ver com que frequência se partia (acriticamente) do pressuposto de que o pequeno litigante era quem “quebrava” o Judiciário, para então justificar a restrição aos seus direitos processuais. Isso se encaixava numa rede de chavões cada vez mais comuns, do tipo: “a Constituição trouxe muitos direitos e poucos deveres”, “temos garantias demais para 'bandidos'”, “se está na justiça é porque fez alguma coisa” etc. Parece bobagem, mas essas ideias assumem uma vigência concreta e vêm pautando os desenhos de nossas instituições há muito tempo. À falta de uma grande ofensiva crítica sobre esse tema, tal descrição se naturaliza. E passa a inspirar prescrições.

Obviamente, a crise do Judiciário brasileiro é um fenômeno multifatorial, muito mais complexo do que poderia ser abarcado nesta coluna[4]. Contudo, há nele um aspecto negligenciado que merecia ocupar o centro das nossas discussões: a desigualdade.

Nosso país é um dos mais desiguais do mundo (sob alguns critérios, o mais desigual), e isso traz repercussões importantes para diversas áreas do Direito. As desigualdades aumentam os conflitos entre os cidadãos, e entre esses e o Estado, o que termina chegando ao Judiciário. Isso já dá muito o que pensar. Mas há uma faceta ainda mais perversa e pouco perceptível do fenômeno: como o sistema de justiça pode ser estruturado de uma maneira desigual, como pode permitir que seus recursos sejam alocados de modo discriminatório, e como ele mesmo pode aumentar as desigualdades, mobilizando para isso as melhores intenções dos operadores do direito.

Pretendo discutir como parte da crise do Judiciário brasileiro se deve a essas desigualdades estruturais que o sobrecarregam, mas que não têm sido suficientemente enfrentadas, mesmo após várias reformas e a elaboração de novos Códigos. Tal sobrecarga é uma opção político-jurídica feita na base do sistema. Enquanto ela não for revista, decidindo-se regulamentar o problema dos grandes litigantes que atuam de modo predatório dentro do sistema, corremos o risco de estar apenas “enxugando gelo”.

Para tanto, procederei da seguinte maneira: 1) começarei levantando algumas dúvidas sobre o discurso da “litigiosidade do brasileiro” como explicação para a crise do Judiciário, propondo explorar mais a hipótese das desigualdades estruturais no nosso sistema de justiça; 2) contextualizarei o problema no direito processual, recuperando brevemente alguns momentos históricos importantes em que essa área do direito tentou lidar com a questão da desigualdade; 3) tentarei esboçar algumas notas sobre as possibilidades de combate à desigualdade sem cair em antigos problemas, isto é, sem pôr em risco as garantias processuais.

 

  1. Da “litigiosidade” à desigualdade: explorando uma hipótese sobre a crise do Judiciário brasileiro

 

Há várias explicações essencialistas em voga para os problemas do nosso Judiciário. Todos já ouvimos generalizações absurdas do tipo: “todo juiz é isso”, “todo advogado é aquilo” etc. Mais restritos a determinados grupos, esses chavões alimentam a guerra forense, reforçam a sensação de pertencimento a um lado contrário ao grupo criticado, e cumprem um papel ideológico de fornecer um esquema (preguiçoso) para encobrir os verdadeiros problemas.

Em meio a todas essas pseudo-explicações, a “litigiosidade do brasileiro” tem um lugar destacado. Ela atravessa todos os grupos, liga-se a uma série de discursos autodepreciativos em circulação no Brasil e ainda parece ser corroborada pelos números. Como tem sido exaustivamente noticiado, temos mais de 100 milhões de processos judiciais em trâmite, isso em um país com pouco mais de 200 milhões de pessoas. Então, como negar a nossa litigiosidade? Para começar, lembrando que a mesma parte pode aparecer em mais de um processo. É simples, é básico, é óbvio, mas é informação omitida quase sempre[5]. Falar em "cultura da litigiosidade", assim genericamente, sem discriminar quem está litigando, é socializar o problema de maneira indevida; falar em excessiva judicialização dos conflitos no Brasil é qualificar antecipadamente toda essa litigância como excessiva, naturalizando um juízo de valor. Seria preciso justificar porque se considera excessiva tal judicialização e se as razões desse adjetivo se aplicam igualmente a todos os litígios[6]

Na mesma notícia em que se anuncia a tal litigiosidade do brasileiro, costumam vir soluções problemáticas. Trata-se de "cobrar a conta” pela crise do Judiciário indistintamente, penalizando os pequenos litigantes[7] de várias maneiras: pressionando-os por mais conciliações; empurrando-os para ambientes jurisdicionais alternativos, em que se promete maior celeridade, desde que a parte se disponha a sacrificar alguns direitos; defendendo-se o fim de garantias processuais e a adoção de mecanismos de decisões seriais que atropelam as especificidades dos casos concretos; concentrando poderes em órgãos de cúpula; ameaçando extinguir ramos do Judiciário; importando acriticamente institutos de outros sistemas jurídicos (muitas vezes, versões deturpadas dos institutos originais) etc[8].    

Ocorre que não se pode tratar de modo genérico um problema que é causado especialmente por alguns. Refiro-me aqui a um determinado tipo de litigante de grande capacidade socioeconômica que figura repetidamente em vários processos. No último relatório do CNJ sobre os 100 maiores litigantes, se destacam entes do setor público, bancos e companhias telefônicas. Apenas para uma se ter uma estimativa, só esses 3 grandes litigantes "representam aproximadamente 35,5% do total de processos ingressados entre 1º de Janeiro e 31 de Outubro de 2011 do consolidado das Justiças Estadual, Federal e do Trabalho. Sendo que, com relação ao total de processos ingressados de cada Justiça, esse percentual quase atinge o patamar de 32,5% na Justiça Estadual, 93,5% na Justiça Federal e 5,5% na Justiça do Trabalho"[9].

Esse grau de litigiosidade já poderia ser qualificado como excessivo se comparado ao número de processos dos demais litigantes. Mas há algo além da mera diferença numérica, e que não causa surpresa a ninguém: o padrão de comportamento de alguns desses litigantes indica que não figuram em muitos processos por acidente, por uma explosão circunstancial da litigiosidade em que se viram envolvidos, mas por um planejamento que envolve o uso abusivo, predatório, do processo judicial contra partes economicamente menos favorecidas. Aí sim, eis uma litigiosidade que mereceria ser considerada excessiva, como recentemente vêm alertando os que se dedicam ao estudo do acesso à justiça[10].

Nos litígios que se multiplicam, cada área temática tem suas especificidades, mas podemos especular aqui sobre alguns padrões. Sobre o setor privado, há tempos o Ministro Luis Felipe Salomão, do STJ, diagnosticou bem: “Todos estão acomodados. As empresas estão acomodadas. Os grandes litigantes do Judiciário estão acomodados porque transferiram o seu call center para a Justiça”[11]. No setor público, transferiu-se o equivalente aos call centers, o setor de cobranças e a diretoria. Sempre tivemos muitos serviços públicos cujo funcionamento foi se desenhando labirinticamente em torno do Judiciário, para retardar sua prestação. Há também muitas questões ligadas ao serviço público que nem deveriam ser passíveis de judicialização. Como exemplo, poderiam ser discutidas as execuções fiscais que abarrotam os gabinetes.

Todo esse quadro é consistente com o histórico de exclusão social do país, em que as instituições funcionaram durante muito tempo como um anteparo contra demandas populares, reproduzindo (e até aumentando as) desigualdades.

Enfim, tudo leva crer que, da maneira como nosso sistema de justiça está estruturado, o acesso à justiça que formalmente se estende a todos, na prática, continuará sendo sufocado pela capacidade econômica de alguns litigantes. Sem medidas específicas contra eles, não haverá redução significativa no estoque de processos judiciais. Por mais que os juizes e servidores trabalhem, por mais que as partes conciliem, os conflitos que geram processos continuarão surgindo, pois continuarão compensando para quem lhes deu causa. Por mais que um pequeno litigante eventualmente ganhe no resultado de um julgamento, o grande litigante já ganhou com o processo.

Admitamos essa hipótese por um momento. Sabendo que a desigualdade não é fenômeno novo, antes de avançar cogitando soluções, interessa saber: como o direito processual já vem lidando com a desigualdade?

 

  1. Contextualizando o problema: a controvérsia sobre a desigualdade no direito processual

 

A desigualdade é um dos temas mais controversos no desenvolvimento do direito processual. Por isso, uma reconstrução detalhada de suas variações no tempo e no espaço seria inviável aqui. Contudo, podemos recorrer aos grandes modelos teóricos de processo[12], pontuando algumas referências históricas.

Antes de tudo, é preciso lembrar a advertência de José Reinaldo Lima Lopes: "O direito processual teve sempre um papel importante na organização do poder político. De fato, constituindo a rotinização e racionalização da atividade de um dos ramos do poder soberano, torna-se constitutivo da prática diária do ideal de 'estado de direito'[…]"[13].

Por isso, muitas vezes as discussões supostamente técnicas e neutras desta área são atravessadas por pressupostos políticos, como a disputa entre concepções de Estado, quais devem ser seus poderes e sua função.

Durante um longo período, no Direito Romano, a resolução de disputas através de julgamentos foi um direito reservado apenas para uma elite, excluindo dos tribunais uma grande massa de “não cidadãos".

Na modernidade, com a organização do Estado e a Revolução Francesa, advém o modelo liberal de processo[14], marcado pela racionalização e pelas garantias individuais, mas ainda ligado a uma visão elitista. Tal modelo se pautaria pelo protagonismo das partes e pelo formalismo dos procedimentos. Por estruturar o processo a partir de uma noção de igualdade formal, o processualismo liberal passou a ser criticado porque privilegiaria aqueles com maior capacidade econômica de litigar.

Em contraposição a isto, a ordenança processual austríaca de 1895 estabeleceu o famoso marco do processualismo social[15], passando o processo a ser visto como instituição de bem-estar social. Este modelo se pautaria pelo publicismo, o "princípio inquisitivo", a flexibilização procedimental, com destaque para a oralidade. Apostava-se na assistência do juiz para suprir a desigualdade entre as partes, atraindo as críticas por paternalismo/autoritarismo judiciais[16].

Alguns autores falam em outros modelos de processo[17].[18] Há inúmeras polêmicas sobre o que compõe historicamente cada um deles[19]. Mas há mais polêmicas ainda hoje em dia, sobre como deveria ser o processo judicial no Estado Democrático de Direito, quais faculdades, deveres e poderes devem caber a cada sujeito processual nesse novo paradigma político-jurídico. Recentemente, esse debate vem sendo catalisado pelo garantismo processual[20]. movimento jurídico que vem ganhando destaque no Brasil[21], sofisticando e atualizando a preocupação com os poderes do Estado-juiz no processo[22].

É importante ter essa visão geral sobre os modelos processuais, para não nos perdermos nas trincheiras dogmáticas. Contudo, evitarei disputar teorias muito abrangentes aqui, preferindo explorar pequenas soluções concretas que possam ser aceitas pela maioria dos juristas.

 

 

  1. Combater a desigualdade sem pôr em risco as garantias processuais

           

O ativismo judicial (mesmo com as melhores intenções) ameaça a democracia, como tem denunciado Lenio Streck[23]. Por essa prática, rompe-se com os critérios normativos na tomada de uma decisão pública, em prol de uma escolha particular do juiz. De modo geral, aumentar os poderes do Estado sem estabelecer controles rigorosos ao seu exercício é algo preocupante nas democracias contemporâneas.

Sem conflitar com isto, é possível ajudar aqueles que têm menos acesso à justiça  ao onerar os abusos daqueles litigantes que tem "acesso demais”[24]. Embora o novo CPC/2015 já tenha avançado um pouco nesse sentido, ainda têm se mostrado necessárias novas intervenções legislativas para lhes dar maior eficácia. Por exemplo: aumentando valores de multas para litigância de má-fé e atos processuais de caráter protelatório, concomitantemente ao estabelecimento de critérios legais que diminuam o subjetivismo judicial na sua aplicação.

Ainda, o direito comparado é repleto de exemplos que merecem ser considerados para uma adaptação ao nosso contexto. Recentemente, vigeu em Portugal[25] uma lei experimental aumentando o valor das custas processuais para litigantes que tivessem dado entrada em mais de 200 ações em um ano. Haveria várias dificuldades na sua adaptação ao Brasil. Aqui, sua natureza jurídica impediria nesse momento a criação de alíquotas diferenciadas por via infraconstitucional. Contudo, tal exemplo serve para movimentar o debate dogmático e para inspirar soluções em sede constitucional. Em temas de menor apelo popular, nossa vontade política já conseguiu emendar a Constituição para criar tributos sui generis.

Outro flanco a explorar vem do direito concorrencial.  Nos EUA, na disputa entre empresas, pune-se financeiramente a litigância judicial predatória em que se abusa de processos para prejudicar concorrentes. No nosso CADE já há decisões em sentido similar à punição estadunidense da "sham litigation", partindo das referências legais brasileiras.

Em todos esses casos, tratam-se de institutos que não restringem direitos, mas oneram seu (ab)uso de modo inteligente e proporcional à movimentação da máquina pública e, em alguns casos, ao lucro que se espera obter indevidamente com ela. Servem ao combate de desigualdades injustas, sem “mérito”, que não produzem nada a não ser mais desigualdades injustas. Todos são institutos passíveis de disciplina por critérios legais, jurisprudenciais e doutrinários.

Para concluir essas reflexões, é preciso lembrar: devido à generalização da crise nas instituições brasileiras, vem por aí uma onda de reformas que atravessam várias áreas do Direito. Conhecendo nosso histórico, e mesmo os projetos atuais, verifica-se a tendência de que boa parte dessas reformas seja feita "cortando por baixo”, penalizando a coletividade sem tocar em privilégios inconstitucionais de uma minoria. Tornou-se urgente discutir medidas capazes de rever esse pacto de desigualdade que bloqueia a efetividade de nossa Constituição.

 

NOTAS

[1] Mesmo com todos seus percalços, a tradução dos conflitos sociais numa linguagem jurídica só foi conquistada recentemente e a duras penas. Ela traz consigo o lado positivo da juridificação, o potencial emancipatório apresentado pelo Direito. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. v. I e II. Além disso, o desenho institucional brasileiro atribui lugar de destaque ao Poder Judiciário. SADEK, Maria Tereza. Judiciário: mudanças e reformas. Estudos Avançados, São Paulo, v. 18, n.51, p. 79-101, 2004.

[2] Lenio Streck vem atacando essas explicações desde sua dissertação sobre Tribunal de Juri, a partir da  semiologia e da crítica à ideologia, chegando à sua Crítica Hermenêutica do Direito, com os aportes de Heidegger e Gadamer ao pensamento jurídico. STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito, ed 11. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013

[3] Nesse sentido, veja-se o polêmico: SOUZA, Jessé. A elite do atraso: da escravidão à lava jato. Rio de Janeiro: Leya, 2017. Lança um ataque contundente às teses essencialistas sobre o brasileiro (o tal "jeitinho") como explicação para os atuais escândalos de corrupção, as quais desprezam explicações institucionais. Devo registrar várias discordâncias, particularmente das leituras que o autor faz sobre o Direito — mesmo criticando os abusos judiciais, não os qualificaria da mesma maneira que o autor, tampouco os encaixaria na mesma narrativa. Em todo caso, é inegável o mérito do autor em conseguir colocar a desigualdade como questão central para a compreensão do Brasil hoje, trazendo referências sociológicas para o debate público.

[4] Tomei a liberdade de escrever de maneira mais coloquial, reservando formalidades acadêmicas para as notas de rodapé.

[5] Desde que os censos judiciais começaram a ser noticiados pela mídia, após se anunciarem os números costuma vir  a divisão descontextualizada: “é como se tivéssemos x processos por cidadão”.

[6] Mesmo nos pontos em que é possível dizer que há uma preferência dos pequenos litigantes pela via judicial, é preciso discutir quais os mecanismos alternativos de resolução de conflitos à disposição no Brasil, quais suas condições operacionais e o porquê desse desconhecimento ou desconfiança da população com relação a elas, ao invés de apelar para a conscientização das pessoas e alimentar um discurso vago que culpa o cidadão pela crise do Judiciário, como se litigar se tratasse de uma “birra” nacional.

[7] Facilitar a opção pela conciliação ou por meios jurídicos simplificados pode ser muito bom, desde que isso não seja feito num contexto em que se imponha às partes como única maneira de obter uma solução para seu problema.

[8] Mesmo quando não se chega a defender uma solução injusta (como as mencionadas acima), repetem-se ideias que não atacam a raiz do problema. Por exemplo, havia a clássica solução: ˜mais recursos para o Judiciário˜! Recentemente, tem sido constatado que nosso Judiciário é o mais caro e ineficiente do mundo, como tem apontado: DA ROS, Luciano. O custo da Justiça no Brasil: uma análise comparativa exploratória, The Observatory of Social and Political Elites in Brazil. v. 2, n.º 9, 2015. Então, não seria apenas uma questão de gastar mais com o Judiciário. Ao mesmo tempo, é inegável que há vários setores do Judiciário brasileiro em péssimas condições operacionais. E que os juízes e servidores brasileiros estão entre os mais produtivos do mundo, como também tem sido constatado pelo CNJ recentemente. Esse fenômeno complexo que combina altos custos, más condições operacionais, alta produtividade e ineficiência deveria apontar para um problema de base, algo errado na própria estrutura do sistema.

[9] BRASIL. 100 maiores litigantes. Brasília: CNJ, 2012. p. 7.

[10]Na última década, multiplicaram-se as pesquisas sobre os grandes litigantes, realizadas e fomentadas sobretudo pelo CNJ.

[11] HAIDAR, Rodrigo. Cultura do litígio: “Empresas transferiram seu call center para o Judiciário”. Consultor jurídico. São Paulo, 6 jan 2013.

[12] Recorrer a esses modelos (pelo menos, como os emprego) não significa defender uma correspondência direta entre a vida política de um Estado e seu direito processual, mas influências, relações entre eles. Tais modelos não precisam se apresentar de forma pura na realidade. Servem para periodização tanto quanto inspiram prescrições atuais sobre como deve ser o processo.

[13] Veja-se o excelente: História da Justiça e do Processo no Brasil do século XIX. Curitiba: Juruá, 2017. p. 106.

[14]NUNES, Dierle José Coelho. Processo Jurisdicional Democrático: uma análise crítica das reformas processuais.  Curitiba: Juruá, 2012. p. 55-79..

[15]Idem, p. 79-141

[16] Assim ficou conhecido o processualismo social e assim muitos o defenderam explicitamente. Contudo, não é preciso conectar toda medida de caráter social no processo ao aumento de poderes do juiz, muito menos ao aumento de poderes sem controles, fundado em subjetivismos. Um exemplo de medida social é o custeio pelo Estado de advogados para as partes que não têm condição de pagar. Da mesma maneira, as técnicas liberais não precisam ser aplicadas todas juntas nem sofrer da mesma pecha elitista do liberalismo clássico. Os modelos são pontos de partida, não rótulos que fecham o debate. Assim, processualistas respeitáveis podem reivindicar hoje as virtudes de determinadas tradições, dentro da linhagem democrática, sem necessariamente estarem se comprometendo com seus pontos mais polêmicos.

[17]Eduardo José da Fonseca Costa fala ainda nos modelos processuais fascista, liberal-moderno e gerencialista. Veja-se: Uma espectroscopia ideológica do debate entre garantismo e ativismo. In: DIDIER JR., Fredie; NALINI, José Renato; RAMOS, Glauco gumerato; LEVY, Wilson. Ativismo judicial e Garantismo processual. Salvador: Juspodivm, 2013. Devo-lhe um agradecimento especial pelos ensinamentos sobre mais este tema.

[18] Dierle Nunes (Op. Cit.) cogita ter existido no Brasil um processualismo “neoliberal/pseudo-social”: um modelo influenciado por interesses de mercado, produtivista, industrial, desformalizador, insensível aos casos concretos. Aqui o dinheiro e o Poder Administrativo atropelariam o Direito, mas sob o álibi da sensibilidade social do juiz. Nesse sentido, levantas as críticas ao mau uso dos juizados e da conciliação.

[19] Institutos ligados à "ética" e à "eficiência epistêmica" do processo também se conectam à discussão feita entre esses modelos políticos, por exemplo: o poder probatório do juiz, a busca da "verdade real”, a boa-fé, a cooperação etc.

[20] Veja-se o famoso debate que envolveu juristas de vários países: AROCA, Juan Montero (Coord.) Proceso y ideología: Un prefacio, una sentencia, dos cartas y quince ensayos. Valencia: Tirante lo blanch, 2006.

[21] DIDIER JR., Fredie; NALINI, José Renato; RAMOS, Glauco Gumerato; LEVY, Wilson. Op. Cit. O Brasil tem se mostrado um espaço privilegiado para superação de velhos bloqueios nesse debate, com ganhos para o garantismo e seus interlocutores.

[22] A Associação Brasileira de Direito Processual lançou o manifesto "Pela compreensão e concretização do Garantismo Processual", o qual subscrevo (subscreva também aqui).

[23] Op. Cit.

[24] CAMPOS, André Gambier. Sistema de justiça no Brasil: problemas de eqüidade e efetividade [texto para discussão número 1328]. Brasília: IPEA, 2008.

[25] Decreto-Lei n.º 52/2011.

 

 

Imagem Ilustrativa do Post: Cheminée Moretti abstract // Foto de: Oleg Sklyanchuk // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/sklyanchuk/33663462355/

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura