Coluna ABDPRO
Os conceitos
Antes de se adentrar na discussão a respeito do tema objeto deste texto, convém que sejam apresentados conceitos básicos dos institutos que serão envolvidos na discussão que se travará.
O Código de Processo Civil de 2015 buscou empreender mudanças em alguns setores do Direito Processual e agora, passados dois anos da sua vigência, é importante verificar se as mudanças propostas pelo legislador, de fato, ocorreram ou se o texto legal nada tem significado de novo na prática da aplicação do Direito.
Quando se iniciaram as discussões a respeito de um novo código, apresentou-se na arena dos debates doutrinários o tema dos precedentes e logo surgiu o temor da “commonlização” do Direito brasileiro.
Nesta altura dos acontecimentos, já nem convém mais discutir tal ponto. O fato é que nada se “commonlizou”. Embora tenha havido e ainda haja um esforço considerável para se falar em um sistema de precedentes para o Brasil, o sistema não há e precedentes estão difíceis de encontrar.
O que, de fato ocorreu, foi que o art. 927/CPC estabeleceu um rol de decisões que qualificou de vinculantes. E há uma grande distância entre o conceito de decisão vinculante e o de precedente. Há vozes respeitáveis no cenário processual tecendo severas críticas a essa vinculação imposta pela lei, como é o caso do prof. Nelson Nery Jr., em evento promovido pela ADBPRO, cuja conferência você pode conferir aqui: https://youtu.be/9-5urYaD7ls.
Afora essa discussão, que é de extrema importância para a questão da autoridade das decisões vinculantes, é imperativo que se compreenda que nem toda decisão judicial tem condições de ser considerada um precedente.
O precedente há de ter uma qualidade de transcendência. Vale dizer, a decisão do precedente serve para a resolução do conflito estabelecido no processo em que foi proferida, mas, dada a importância da questão discutida e a qualidade da fundamentação construída para justificá-la, pode servir de paradigma para outros casos que guardem semelhanças fáticas.
E o precedente requer humildade. Se o processo existe para a solução de conflitos concretos, a decisão judicial que analisa o seu mérito deve ser construída com foco nessa finalidade e a partir daí é que se vai verificar se há ou não esse valor transcendental. A humildade que se requer é justamente para que a decisão não seja construída para ser precedente, travestida de tese. A decisão há que ser para o caso. Do caso, pode se transformar em paradigma para outros casos. Decisão fabricada com a intenção de ser tese, não logra êxito nem em resolver o caso concreto que lhe deu ensejo e, com isso, sequer tem a qualidade básica necessária para servir de exemplo.
O precedente será encontrado “pelo julgador do caso posterior, uma vez que é ele quem irá dizer, a partir da comparação entre as situações fáticas do caso anterior e do caso a ser julgado, se a ratio decidendi daquele é possível de ser aplicada a este como base suficiente para a solução que se espera”.[1]
Além disso, quando se quer dizer que uma decisão é paradigmática e que pode servir como modelo para casos futuros, há que se verificar a qualidade da sua fundamentação e, neste ponto, o respeito aos dispositivos do art. 489, §1º/CPC já seria um bom começo. Sem a atenção àquelas exigências básicas, nem se pode cogitar que a decisão tenha efeitos transcendentes, ainda que ela tenha resolvido questão importante que seja discutida em vários outros processos.
Também os conceitos de precedente e jurisprudência não se confundem. O precedente diz respeito, em regra, a uma determinada decisão ou a um conjunto específico de julgados, ao passo que o termo jurisprudência deve corresponder a uma pluralidade de decisões em variados casos concretos. A jurisprudência está atrelada a uma quantidade imprecisa, podendo existir considerável número de decisões em um determinado sentido, o que pode aumentar a dificuldade de se identificar qual tenha sido o julgado condutor do entendimento firmado.
Ainda, os precedentes não se confundem com os enunciados de súmulas. Estes dizem respeito diretamente ao conceito de jurisprudência e não ao de precedentes. É certo que o enunciado de súmula pode nascer a partir de um precedente, mas ele não poderá ser considerado o precedente.
E o CPC/2015, quando trata da aplicação de enunciados de súmulas como fundamentos de decisões, exige que se faça análise dos fundamentos determinantes constantes das decisões que lhes deram base. Este é o comando do art. 489, §1º, V e VI/CPC, que considera não fundamentada a decisão que “se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos” e que “deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento”.
Ou seja, mesmo para a aplicação de enunciados de súmula, há necessidade de que sejam debatidos no processo os seus fundamentos determinantes, não bastando a mera invocação do texto do enunciado, como se ele fosse autoexplicativo.
Não é. Enunciado é resumo de entendimento do tribunal a respeito de um dado tema. Tal entendimento foi forjado em decisões judiciais que antecederam a construção do enunciado. Logo, é fundamental que sejam conhecidas as decisões originárias, que são, inclusive, indicadas pelos tribunais.
Feita essa introdução, o que se vai fazer a partir de agora é justamente uma breve investigação das decisões que originaram o enunciado n. 385 da súmula de jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça.
Os fundamentos determinantes do enunciado n. 385 da súmula do STJ
O STJ aprovou o referido enunciado nos seguintes termos: “Da anotação irregular em cadastro de proteção ao crédito, não cabe indenização por dano moral, quando preexistente legítima inscrição, ressalvado o direito ao cancelamento”.
Não se vai discutir neste artigo o conteúdo do enunciado e nem mesmo o acerto ou desacerto do tribunal com relação ao entendimento ali exposto. A finalidade única é encontrar os fundamentos determinantes do enunciado, a fim de verificar, a partir das decisões indicadas pelo próprio tribunal como “precedentes” do enunciado, se o enunciado teria base formal e poderia sobreviver diante das regras do CPC/2015.
O referido enunciado foi aprovado pela Segunda Seção do STJ, em 27 de maio de 2009 e publicado no DJe do dia 8 de junho daquele ano. Na Revista Eletrônica do tribunal encontra-se publicado o enunciado e as decisões que o geraram[2]. Neste documento, constam como “precedentes” do enunciado as seguintes decisões: AgRg no REsp 1.046.881-RS (4ª T, 09.12.2008 – DJe 18.12.2008); AgRg no REsp 1.057.337-RS (3ª T, 04.09.2008 – DJe 23.09.2008); AgRg no REsp 1.081.404-RS (4ª T, 04.12.2008 – DJe 18.12.2008); AgRg no REsp 1.081.845-RS (3ª T, 04.12.2008 – DJe 17.12.2008); REsp 992.168-RS (4ª T, 11.12.2007 – DJ 25.02.2008); REsp 1.002.985-RS (2ª S, 14.05.2008 – DJe 27.08.2008); REsp 1.008.446-RS (4ª T, 08.04.2008 – DJe 12.05.2008); REsp 1.062.336-RS (2ª S, 10.12.2008 – DJe 12.05.2009).
Cada uma delas será analisada, de modo que sejam verificados os seus respectivos fundamentos determinantes.
No AgRg no REsp 1.046.881-RS, relatado pelo Ministro João Otávio de Noronha, tinha-se um pedido de reconsideração de decisão monocrática, alegando a parte que ela estava em descompasso com entendimento majoritário do tribunal. Nos termos do relatório que consta da decisão, a parte recorrente alegou “que o acórdão recorrido reconheceu a ilegalidade dos registros diante da ausência da prévia comunicação legalmente exigida, tanto que foi determinado o cancelamento das inscrições” e aduziu “que a jurisprudência desta Corte é no sentido de que, comprovada a existência de anotações não precedidas de notificação, resta configurado o dano moral decorrente de tal conduta ilícita”.
No seu voto, o relator assim se pronuncia:
“O presente recurso não reúne condições de êxito, pois não prosperam as argumentações apresentadas pelos recorrentes, devendo a decisão ora atacada ser mantida por seus próprios fundamentos.
Com efeito, a jurisprudência atualizada deste Superior Tribunal de Justiça, para os casos como o presente, em que o devedor possui várias inscrições no
cadastro de inadimplentes, firmou-se no sentido de que a anotação em órgão de proteção ao crédito é conseqüência natural que se impõe àqueles que procedem ao inadimplemento de suas obrigações, sendo, pois, o cadastro providência esperada pelo devedor, o que exclui a ofensa moral.
Ante o exposto, nego provimento ao agravo regimental.
É como voto.”
Como se vê, trata-se de voto bastante sintético, o que não seria um mal em si. Entretanto, a referida decisão é indicada pelo tribunal como base de um enunciado de súmula que afeta milhares de relações de consumo pelo país inteiro. Na decisão, o relator indica que a decisão atacada deve ser mantida pelos seus próprios fundamentos e, se feita a comparação entre o relatório e a fundamentação, verifica-se que o questionamento da parte recorrente recaiu sobre um tema e a resposta dada a ele sobre outro.
Veja-se: tratava-se, segundo o relatório, de discussão sobre a ilegalidade de inscrições nos serviços restritivos de crédito que decorreu da não comunicação prévia do consumidor. Já no voto, o relator invoca “jurisprudência atualizada” do tribunal no sentido de que a existência de outras inscrições em nome do mesmo consumidor excluiria o direito ao recebimento de indenização por danos morais.
Ou seja, não houve efetivo diálogo entre as razões do recurso e as razões da decisão e isso pode ser identificado a partir da leitura tão somente do acórdão, comparando-se o relatório e o voto, ambos feitos em poucas linhas pelo mesmo ministro.
Mas vamos além. No seu voto, o ministro relator manteve a decisão recorrida por seus próprios fundamentos. Daí a necessidade de se buscarem os fundamentos da decisão recorrida, proferida monocraticamente no REsp 1.046.881/RS, nos seguintes termos:
“A Segunda Seção do STJ pacificou entendimento de que quem já está inscrito em cadastro de proteção ao crédito não pode se sentir moralmente ofendido em razão de nova inscrição de seu nome como inadimplente.
Transcrevo, por oportuno, o seguinte trecho do acórdão recorrido: ‘Ocorre que, diante das peculiaridades do caso em análise, não há falar em indenização da parte autora na esfera imaterial. De fato, verifica-se na fl. 17 que o demandante possui diversas anotações desabonadoras em seu nome, evidenciando, pois, reiteração de conduta. Assim, na situação vertente, em que os débitos nem sequer são objeto de impugnação, a apontada irregularidade não enseja a pretendida reparação.’ (fl. 244).
Assim, em relação ao pedido de indenização pelos supostos danos morais suportados pela parte recorrente, o pleito não merece prosperar, uma vez que a jurisprudência do STJ firmou-se no sentido de que a inscrição no cadastro de inadimplentes é consequência natural que se impõe àqueles que procedem ao inadimplemento de suas obrigações, sendo, pois, o cadastro providência esperada pelo devedor, o que exclui a ofensa moral.
Nesse sentido, confira-se o seguinte precedente desta Corte:
"AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. DANOS MORAIS. INSCRIÇÃO EM CADASTRO DE INADIMPLENTES. COMUNICAÇÃO PRÉVIA. CDC, ART. 43, § 2º. EXISTÊNCIA DE OUTRO REGISTRO. PRECEDENTE DA SEGUNDA SEÇÃO. I - Afasta-se a pretensão indenizatória pois, conforme orientação da Segunda Seção desta Corte, 'quem já é registrado como mau pagador não pode se sentir moralmente ofendido pela inscrição do seu nome como inadimplente em cadastros de proteção ao crédito' (REsp 1.002.985/RS, Rel. Min. ARI PARGENDLER, DJ 27.08.2008). Agravo Regimental improvido" (Terceira Turma, AgRg no REsp n.1.057.337/RS, relator Ministro Sidnei Benetti, DJ de 23.9.2008.).
Ante o exposto, conheço do recurso especial e nego-lhe provimento”.
Como se viu, a referida decisão não aprofundou a discussão a respeito do assunto e limitou-se a invocar entendimento da Segunda Seção, consubstanciado no AgRg no REsp 1.057.337/RS, que, por seu turno, na ementa invoca o julgado no REsp 1.002.985/RS e a citar trecho do acórdão recorrido.
Diante da ausência de aprofundamento tanto desta decisão monocrática quanto da decisão colegiada referida acima, em que se decidiu o agravo regimental, há que se ir mais além e analisar os julgados no AgRg no REsp 1.057.337/RS, que é o segundo “precedente” do enunciado naquela lista indicada acima e no REsp 1.002.985/RS, que também figura na lista como sendo o sexto “precedente” do enunciado.
No AgRg no REsp 1.057.337/RS relatado pelo Ministro Sidnei Beneti, a parte alegava que a decisão recorrida, monocraticamente proferida pelo relator, teria invocado “precedente” que não havia sido publicado. No julgamento do agravo regimental, entretanto, o tribunal entendeu que o “precedente” reflete a orientação da sua Seção de Direito Privado e que não seria possível a indenização por danos morais, por já haver inscrições anteriores.
Não obstante isso, a decisão é bastante breve e não aprofunda a discussão, limitando-se a citar o “precedente”, que é o julgado no REsp 1.002.985/RS, de relatoria do Ministro Ari Pargendler, que será examinado abaixo.
São breves as linhas deste julgado também. Em uma lauda, o relatório, na outra, o voto. De acordo com o relatório, a discussão centrava-se no fato de que a consumidora teria sido inscrita nos serviços de proteção ao crédito de forma ilegal, já que não teria havido cientificação prévia. O tribunal de origem entendeu que não haveria dever de indenizar diante da existência de outros cadastros desabonadores.
No voto, o relator cita trechos do acórdão recorrido e conclui assim: “O acórdão está, salvo melhor juízo, a salvo de censura. Quem já é registrado como mau pagador não pode se sentir moralmente ofendido pela inscrição do seu nome como inadimplente em cadastros de proteção ao crédito. Evidentemente, o dano moral estará caracterizado se provado que as anotações anteriores foram realizadas sem a prévia notificação do interessado.”
Por fim, o relator vota para não conhecer do recurso especial e é seguido por todos os demais julgadores da Segunda Seção.
O “precedente” mencionado nos “precedentes” do enunciado de súmula não enfrentou a questão, pois o recurso não foi sequer conhecido. Ou seja, o STJ, embora tenha confirmado o entendimento do tribunal de segunda instância, não debateu o mérito do recurso, pois este não passou sequer pela fase da admissibilidade. Note-se que o recurso especial que deu ensejo ao acórdão lavrado pelo Ministro Ari Pargendler baseou-se em dois fundamentos: violação ao art. 43, §2º/CDC e divergência jurisprudencial.
Nenhum dos dois fundamentos foi enfrentado pelo STJ, que optou por manter o acórdão recorrido, deixando de conhecer o recurso.
Em razão disso, é evidente que se torna impossível admitir-se a decisão, dada a sua superficialidade, como precedente que pudesse indicar ter havido discussão profunda pelo tribunal superior e formulação de tese para servir de paradigma para casos futuros. A tese, se houve, foi construída pelo tribunal de onde partiu a decisão recorrida. A sua confirmação, em sede de recurso especial, não significou, neste caso, efetivo debate no tribunal superior.
O terceiro “precedente” mencionado abaixo do enunciado é o julgado no AgRg no REsp 1.081.404-RS, relatado pelo Ministro João Otávio de Noronha. Mais uma vez, o relator vota pela manutenção da sua decisão monocrática pelos seus próprios fundamentos, utilizando-se de texto idêntico àquele que utilizou no AgRg no REsp 1.046.881-RS, que já foi citado acima.
Na decisão monocrática que negou provimento ao recurso especial e que, neste caso, deu ensejo à interposição do agravo regimental a que se refere acima, o relator fundamentou sua decisão na citação dos “precedentes” dos julgados no REsp 1.002.985/RS e no AgRg no REsp n. 1.057.337/RS, já analisados acima.
Outro “precedente” do enunciado é o julgado no AgRg no REsp 1.081.845-RS, de relatoria do Ministro Massami Uyeda. No referido julgamento, em que se buscava a reforma de decisão monocrática tomada pelo relator e que negou o direito à indenização por danos morais por haver outras inscrições negativas em nome do devedor, o tribunal entendeu que a decisão monocrática deveria ser mantida pelos seus próprios fundamentos. Há um breve relatório, seguido de um voto em que o relator aduz não ter sido trazido pela parte recorrente nenhum motivo que justificasse a mudança da decisão e, logo depois, a transcrição de um trecho da decisão recorrida.
Na referida decisão, o relator admite que o entendimento do STJ é no sentido de que a inscrição negativa sem comunicação prévia é ilegal, mas ressalta o “precedente” formulado no julgamento do REsp 1.002.985/RS, relatado pelo Ministro Ari Pargendler, que já foi analisado acima e em que se constatou não ter havido discussão adequada do tema.
Mais um “precedente” do enunciado é o julgado no REsp 992.168-RS, cuja relatoria incumbiu ao Ministro Aldir Passarinho Junior. Consta do acórdão que o referido recurso não foi conhecido e a decisão foi proferida por unanimidade na Quarta Turma, muito embora o relator, no seu voto, tenha entendido estarem presentes os pressupostos de admissibilidade e tenha enfrentado o mérito do recurso. Ao final do voto, consta que o recurso não foi conhecido. Entretanto, parece ter sido, só não foi provido.
De acordo com o relatório, a discussão estava centrada na ausência de comunicação prévia de que seria realizada negativação do nome do consumidor e o consequente desrespeito ao art. 43, § 2º/CDC.
Ao longo de sua fundamentação, aqui sim com análise do caso concreto, o relator reconhece que “a orientação jurisprudencial do STJ é no sentido de que a falta de comunicação gera lesão indenizável, porquanto ainda que verdadeiras as informações sobre a inadimplência do devedor, tem ele o direito legal de ser cientificado a respeito, eis que o cadastramento negativo dá efeito superlativo ao fato, criando-lhe restrições que vão além do âmbito restrito das partes envolvidas – credor e devedor”.
Apesar disso, o relator ressalta que o recorrente não teria, quando da propositura da ação, questionado a existência da dívida e que o acórdão recorrido havia reconhecido a existência de outras inscrições negativas no nome do recorrente. Aduz ainda que o autor da ação não teria comprovado o pagamento da dívida e conclui que, diante de “tais excepcionais circunstâncias, não vejo como se possa indenizar o autor, por ofensa moral, apenas pela falta de notificação”.
Disso se pode concluir que, muito embora neste recurso especial o tribunal tenha analisado o caso concreto com mais atenção, o que não ocorreu nas decisões anteriormente indicadas, ainda assim a questão do descabimento de indenização por dano moral diante de outras inscrições em nome do devedor não foi o objeto principal de análise, não se podendo dizer que o fundamento determinante deste julgado tenha sido este.
O fundamento determinante foi outro. Neste caso, o STJ negou a indenização por danos morais, apesar de considerar ilegal a inscrição, dada a ausência de comunicação prévia, porque a parte autora não teria demonstrado ou sequer alegado a inexistência da dívida que deu causa à negativação.
O fato de haverem outras inscrições foi utilizado para fundamentar o voto, mas não na qualidade de fundamento determinante e, sim, como um argumento dito de passagem (obiter dictum). E trata-se de argumento dito de passagem porque o relator apenas copia e cola trecho do acórdão recorrido em que consta essa informação, sem que o STJ tenha de fato se pronunciado a respeito.
Mais um “precedente” é o do julgado no REsp 1.008.446-RS, da Quarta Turma, também relatado pelo Ministro Aldir Passarinho Junior. Neste caso, o relator proferiu voto quase idêntico àquele proferido no REsp 992.168-RS e que já foi analisado acima. A fundamentação é praticamente a mesma, havendo modificação de informações fáticas, relativas ao caso concreto analisado.
Neste voto, o relator ressalta a ausência de questionamento por parte da autora a respeito da existência das dívidas que deram ensejo à sua negativação e menciona, de passagem, a existência de outras anotações negativas no nome da parte. Em razão disso, entendeu não ser possível a indenização, apesar de reconhecer a ilegalidade das negativações dada a ausência de comunicação prévia. Para justificar este posicionamento, o relator cita ementa do julgado no REsp 752.135/RS, de sua própria relatoria.
No referido julgado, também de fundamentação quase idêntica a este que se analisa, não há enfrentamento profundo da questão da existência de inscrições negativas outras, além daquelas discutidas no processo, a ponto de inviabilizar a condenação ao pagamento de indenização por danos morais em favor de quem teve o seu nome negativado. Inclusive, na ementa, consta o fundamento determinante para a não condenação ao pagamento da indenização: “Hipótese excepcional em que o devedor confessa a dívida, o que exclui a ofensa moral, mas determina o cancelamento da inscrição, facultada ao credor a iniciativa do registro”.
Ou seja, não foi a existência de outras negativações que fundamentou a decisão de modo determinante.
Por fim, o último “precedente” do enunciado foi produzido no julgamento do REsp 1.062.336-RS, da Segunda Seção, de relatoria da Ministra Nancy Andrighi, no dia 10 de dezembro de 2008. Trata-se de recurso especial julgado pela sistemática dos recursos repetitivos. Nele, foram apreciadas duas questões de direito básicas: “1) o dever de indenizar os danos morais pela falta de comunicação prévia; e 2) a repercussão da pré-existência de outros registros negativos em nome do devedor no momento da fixação da indenização”.
Sobre o primeiro ponto, reconheceu-se que a Segunda Seção tem entendimento consolidado de que para haver direito à indenização por danos morais “é suficiente a ausência de prévia comunicação, mesmo quando existente a dívida que gerou a inscrição”.
Com relação ao segundo ponto, que é o que nos interessa para a análise do enunciado, a relatora admite que “(a)té recentemente, esta 2ª Seção costumava decidir que a existência de outros registros desabonadores em nome do devedor não afastava a caracterização do dano moral”, mas que houve mudança de entendimento a partir do REsp n. 1.002.985-RS, relatado pelo Ministro Ari Pargendler, que já foi analisado acima.
Diante desses dois posicionamentos dissonantes, a relatora posicionou-se no sentido de manter-se o entendimento mais antigo, “no sentido de que a existência de outras inscrições não afasta o direito à indenização por danos morais decorrentes da inscrição, sem prévia notificação, do nome do consumidor em cadastros de restrição ao crédito, repercutindo apenas como circunstância a ser analisada na fixação do quantum indenizatório”.
Não foi esta a posição que prevaleceu.
O primeiro a votar após a relatora foi o Ministro João Otávio Noronha e do seu voto pode ser extraída a seguinte passagem:
“No que se refere ao dano moral quando existentes registros anteriores, peço vênia à eminente Relatora, mas de S. Exa. discordo, e o faço até porque, embora tenha um voto meu em sentido contrário ao que estou proferindo agora, reconheço a minha culpa por ter votado contrariamente à orientação da Seção. Quando aqui cheguei, a matéria já estava sedimentada na Seção e não contribui para a fixação do entendimento, que já estava consolidado quando me transferi para esta Segunda Seção”.
Como se viu, o ministro rendeu-se ao entendimento que havia sido firmado naquele REsp de relatoria do Ministro Ari Pargendler, em que sequer houve o enfrentamento efetivo da questão.
No seu voto, o Ministro Luis Felipe Salomão divergiu da relatora e acompanhou o Ministro João Otávio Noronha, seguindo o que denominou de “jurisprudência da Corte”, numa clara alusão ao REsp relatado pelo Ministro Ari Pargendler. No mesmo sentido foi o voto do Ministro Fernando Gonçalves e também o no Ministro Aldir Passarinho Junior, que considerou ter havido evolução da jurisprudência do tribunal a partir do “precedente do eminente Ministro Ari Pargendler que uniformizou esse entendimento”.
Considerações finais
Como se viu, o texto do enunciado n. 385 da súmula do STJ baseou-se em uma série de decisões autorreferentes, com fundamentação deficiente sobre o ponto específico e que partiram de uma modificação do entendimento do tribunal a respeito do assunto, inaugurada a partir do julgamento do REsp 1.002.985/RS, de relatoria do Ministro Ari Pargendler, em que não houve discussão aprofundada, apenas manutenção da decisão recorrida, sem sequer ter havido conhecimento do recurso especial.
A oportunidade que o tribunal teve de promover discussão aprofundada a respeito do assunto foi no julgamento do REsp repetitivo relatado pela Ministra Nancy Andrighy, que trouxe substanciais argumentos para debate, mas que não foram respondidos pelos seus pares, que se limitaram a invocar a mudança de entendimento inaugurada pela decisão relatada pelo Ministro Pargendler.
Dessa análise, pode-se concluir que o enunciado n. 385 da súmula do STJ não possui fundamentos determinantes e que o STJ entendeu ser possível a modificação de um entendimento seu, já consolidado, a partir de um voto com uma lauda, em que não se conheceu do recurso especial e manteve-se o entendimento do tribunal inferior.
À luz disso e das disposições do CPC/2015 a respeito de fundamentação das decisões judiciais, embora até se possa concordar com o conteúdo do enunciado, fica inviável “aplicá-lo”, dada a ausência de lastro normativo.
Notas e Referências:
[1] CAMBI, Eduardo; HELLMAN, Renê Francisco. Precedentes e o dever de motivação das decisões judiciais no novo Código de Processo Civil. Revista de Processo, vol. 241, p. 413 – 438. Mar/2015.
[2] https://ww2.stj.jus.br/docs_internet/revista/eletronica/stj-revista-sumulas-2013_35_capSumula385.pdf
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