ABDPRO #29 - A lei não pertence ao julgador: a ausência de legitimidade democrática do ativismo judicial

18/04/2018

 Coluna ABDPRO

Em um sistema republicano, no qual o magistrado representa o estado, a sua atuação, para ser legítima, deve se curvar às garantias e liberdades individuais, contempladas na Constituição Federal e diluídas na legislação infraconstitucional.

Deste modo, ainda que seja para o bem comum, as condutas de um magistrado deverão se limitar as suas prerrogativas, respeitando a separação dos poderes, as garantias individuais de direito processual e, principalmente, a hierarquia dos tribunais. Parece óbvio, mas nos últimos tempos temos visto que tal premissa não é tão óbvia assim.

Diz-se isso, posto que a corrente ativista defende que a Constituição Federal e as garantias nelas inseridas estimulam os juízes a se rebelarem contra o sistema legal, no afã de distribuição justiça[1], por meio do processo.

Entende, ainda, que em nome de um valor maior, o magistrado, no exercício da atividade jurisdicional, poderá flexibilizar o Direito, na medida em que a administração da justiça não depende do sistema legal e sim da própria Justiça.

O processo é visto como um meio de exceção, onde o magistrado exerce seu poder sob a justificativa de estar administrando a justiça e promovendo a pacificação social, usando-o, inclusive como mecanismo de criação ou aceleração legislativa para impor um direito que entende ser justo e que não está contemplado no sistema, em razão da lentidão do Legislativo na atualização das leis. Trata-se da defesa da supremacia da vontade do julgador sobre a deliberação legislativa.

Georges Abboud e Guilherme Lunelli dissertam que “sob a ótica ativista, a determinação do Direito passa a depender da subjetividade daquele que decide, como se o sentido dos textos pertencessem ao intérprete”[2].

Destarte, pelo ideário ativista, se o juiz, ao decidir sobre algo, verificar que a aplicação da lei trará um resultado que entende ser injusto, tem o dever de fazer justiça mediante o afastamento de referida norma. Por vias transversas, o magistrado substitui o trabalho do legislador pela jurisprudência.

Partindo desta baliza, terá o mesmo tratamento a jurisprudência formada nos tribunais superiores, quando o juiz identificar sua dissonância com o seu ideal de justiça. Deste modo, o juiz está autorizado em não observar as regras do art. 927 do CPC de 2015.

Em outras palavras, a depender do sentimento de justiça de cada juiz, as decisões oriundas do STF em controle concentrado de inconstitucionalidade, os enunciados das súmulas vinculantes, os acórdãos do IAC e IRDR, os acórdãos dos recursos excepcionais repetitivos, além dos enunciados de súmulas do STF e STJ, podem ser desprezados por apresentar certo desencontro com a ideia de justiça do magistrado, já que em seu âmago tais “precedentes” soam como um ataque a sua função de administrador da justiça e pacificador social.

No plano epistemológico, quando o juiz é incentivado a fazer justiça pelo processo, estar-se-á aflorando a neutralidade (subjetivismo solipcista) em detrimento da imparcialidade (objetiva e dialeticidade).

Não se pode olvidar que a imparcialidade do magistrado estabelece um postulado de que, na sua atuação jurisdicional, ele jamais se porte como parte. Deste modo, qualquer coisa que estimule o juiz a agir como parte, o afasta do dever de imparcialidade.

Portanto, a corrente ativista constitui-se num ataque ao modelo constitucional brasileiro, estabelecido pela Constituição Federal de 1988, posto que a atividade jurisdicional é pautada num exercício de garantias das partes. A lei processual deve refletir fielmente os princípios, garantias e ideologias adotados pela Constituição Federal. Poderes e faculdades decorrentes da lei processual decorrem das bases constitucionais do Estado.

Perante o sistema normativo, a validez de um código de processo decorre da Constituição Federal[3].

Destarte, é no devido processo legal que estão inseridas todas as garantias mínimas do indivíduo, constitucionais e infraconstitucionais, quando o Estado exerce sua atividade jurisdicional.

 A legitimidade da função jurisdicional do Estado surge da possibilidade das partes atuarem, democraticamente, na construção do provimento definitivo que entregará a tutela jurisdicional a quem dela faz jus.

Assim, numa conclusão parcial, temos que a tutela jurisdicional é aquela obtida através da jurisdição estatal com plena participação das partes na sua formação e efetivação. Ou seja, na essência, a atividade jurisdicional do Estado-juiz não revela apenas a vontade do julgador, tem também a influência de todos os indivíduos que participaram do processo e que contribuíram efetivamente para a formação da decisão final, e que culminará com a entrega da tutela jurisdicional, pois assim quis o legislador infraconstitucional.

Essa participação democrática somente é possível pela observância da garantia do devido processo legal, que em conjunto com outras garantias constitucionais (contraditório, ampla defesa, isonomia, etc.) impõem limitações a práticas de condutas solipcistas do órgão julgador no exercício de sua atividade jurisdicional.

A imperatividade do provimento jurisdicional, como reflexo da soberania do Estado-juiz, é aceita pelas partes, desde que lhes seja assegurada ampla participação na formação do provimento jurisdicional definitivo e com respeito as suas liberdades individuais e direitos fundamentais; portanto, sem uma conduta proativa do juiz.

É dizer, o direito constitucional contido no devido processo legal legitima a entrega da tutela jurisdicional decorrente da jurisdição, a ponto de fundamentar a privação da liberdade e/ou patrimônio de alguém, na medida em que a decisão judicial final assegurou ampla possibilidade do prejudicado influir de maneira eficiente naquele resultado, em pé de igualdade com seu adversário.

Ou seja, na atividade jurisdicional, o Estado e as partes atuam num plano horizontal, tendo o juiz a última palavra para resolver o conflito. Esta prerrogativa é aceita pelas partes, graças ao sistema legal que, dentre outras limitações, impõe ao juiz o dever de imparcialidade.

Diferentemente daquilo que é apregoado pela corrente ativista, a eficácia da atividade jurisdicional do magistrado está vinculada a lei e ao Direito, jamais por sentimentos metajurídicos de Justiça. Em outras palavras, significa que a vontade pessoal do juiz não pode se sobrepor a lei, posto que seus comandos normativos põem restrições à liberdade de decidir e à imposição da vontade pessoal do julgador.

Toda ação jurisdicional do magistrado, notadamente a prolação de atos decisórios, defluem do sistema legal, sendo este o fundamento jurídico de todo seu labor jurisdicional.

Deste modo, ainda que num plano prático uma conduta ativista gere bons resultados, no plano deontológico, a decisão oriunda de práticas ativistas não tem eficácia por ter-se afastado de sua essência fundamental, o sistema legal.

O juiz ativista é avesso ao dever de fundamentação, posto que terá que expor as emoções que o levaram a contrariar a lei e que, de certo modo, colocará ao conhecimento de todos o comportamento inadequado com o sistema legal.

Esta aversão à fundamentação é oriunda do sentimento provocado pelo ativismo judicial e vem camuflada por sofisma, pseudo princípios e até mesmo princípios. O ativismo fomenta o juiz solipcista, como exaustivamente Lenio Streck vem denunciando ao longo dos tempos, justamente em razão do sentimento de justiça e questões metajurídicas que aquela corrente costuma pregar. Não raro, numa decisão ativista encontramos apenas a seguinte fundamentação: “Presentes os requisitos legais....” ou “Com base no princípio da dignidade humana julgo.....”. Tudo isso para fazer prevalecer suas inquietações ideológicas ao invés de se curvar ao modelo constitucional e infraconstitucional.

O princípio constitucional da legalidade impõe para o magistrado o dever de decidir de acordo com o sistema jurídico, que contempla o precedente e a jurisprudência. Posto assim, o dever de se orientar pela jurisprudência da instituição na qual o magistrado está vinculado decorre de várias decisões sobre o tema, surgida ao  longo dos anos.

Ou seja, o precedente e a jurisprudência surgem após vários debates sobre a interpretação de determinada lei no caso concreto e não de impressões pessoais de cada magistrado, eis a razão da fundamentaçao da decisão ter que ser racional. Não significa que a jurisprudência turba a independência do juiz, ela simplesmente inibe que questões pessoais se sobreponham à instituição Poder Judiciário e principalmente, ao sistema legal.

Institucionalmente, orientar-se pela jurisprudência dos tribunais superiores é estabelecer um padrão de julgamento em relação a casos semelhantes, a ponto de se tornarem previsíveis as soluções encontradas pelo Poder Judiciário. A uniformidade nas interpretações que o Estado-juiz realiza perante casos semelhantes gera ideia de segurança jurídica.

No plano horizontal, as partes devem ter maior liberdade para expor e demonstrar seus argumentos, assumindo os riscos inerentes a sua atuação.

Dentro deste mote, o CPC de 2015 buscou fazer com que a sentença proferida pelo juiz seja formada pelos argumentos fáticos e jurídicos trazidos pelas partes, que o auxiliam na formação de sua convicção, permitindo que a lei seja aplicada corretamente no caso concreto e se obtenha um pronunciamento decorrente da dialética que legitima o processo, afinal, o Estado brasileiro adotou o regime democrático.  

Quem julga é o Estado, seja por meio de sentença unipessoal ou pluripessoal. A sentença se desprende da pessoa que a produziu para pertencer ao Estado, sendo este o emissor do comando ali emitido, portanto, a carga ideológica da sentença deve ser àquela adotada pelo Estado.

A dialética fomentada pelo novo código, faz com que o provimento jurisdicional seja democrático e racional, a ponto de inibir o manejo de recursos impertinentes. Eis a opção de o legislador impor para o juiz o dever de, antes de decidir, especificar para as partes todos os pontos que julga relevantes, mesmo que a questão lhe autorize decidir de ofício (art. 10). Tal medida possibilita que as partes forneçam elementos que podem não ter sido observados pelo julgador. Ou seja, o diálogo do juiz com as partes qualifica o provimento jurisdicional, no sentido de extrair do conteúdo normativo aquilo que há de melhor na lei para resolver o caso prático.

Quanto maiores forem as oportunidades para o juiz dialogar com as partes, maiores serão os substratos fáticos e jurídicos para fundamentar sua decisão.

Andrea  A. Meroi explica que“si todo processo tiene por objeto uma controvérsia sobre determinado objeto, el deber de imparcialidade exige enterarse de ella, lo que a su turno presupone escuchar a ambas partes (audiatur et altera pars). De aqui deriva otra importante regla epistemológica o garantía de verdade que exige la oportunidade de um momento contradictorio em el proceso em el que poder refutar las hipótesis (requisito de la contradictoriedad)”[4].

O processo em contraditório, portanto, atua também para inibir impugnações protelatórias pois, embora a decisão tenha sido emitida pelo magistrado, ela foi construída também com os argumentos fornecidos pelas partes. O dispositivo da sentença será o resultado de pontos de vista, jamais poderá ser fruto do solipcismo do juiz.

A teor do art. 489, § 1º do CPC de 2015, a fundamentação das decisões judiciais impõe para o juiz o dever de enfrentar todos os argumentos fornecidos pelas partes, justificando de modo claro e específico as razões que o levou afastar ou acolher alguns deles

A insatisfação com o provimento poderá até persistir - afinal, ninguém se sente confortável com respostas negativas -, todavia, o enfrentamento dos argumentos cria um sentimento de “combati o bom combate”, ou seja, tudo o que foi aduzido teve a devida resposta. Inconscientemente, a parte vencida ficará inibida de se insurgir contra algo (decisão judicial) que ela contribuiu na sua formação.

Quando se constrói algo dentro de um diálogo, a culpa imaginária[5] é fator de inibição para que o construtor se volte contra sua obra. Assim, para fins jurídicos, possibilitar que a parte contribua significativamente na formação da decisão judicial, ainda que esta lhe seja desfavorável, mesmo assim, haverá uma barreira psíquica que rechaçara o recurso protelatório, na medida em que na formação do provimento, o vencido teve toda oportunidade de esgotar seu repertório, sendo que cada um deles foram analisados e rebatidos, seja pelo ex adverso, como também pelo magistrado.

Psicologicamente, o vencido sentir-se-á culpado por não ter sido perfeito, o que certamente o inibirá de recorrer por recorrer, temendo que o tribunal confirme a decisão singular, consequentemente, sua imperfeição.

Entretanto, como o questionamento é algo inerente à personalidade humana, pode acontecer que a parte vencida recorra. Nesse caso, o CPC de 2015 fomenta a culpa imaginária, por meio de uma regra moral - art. 5º, do CPC de 2015 – que o forçará a demonstrar que a subsunção dos fatos à norma pelo juiz foi equivocada, seja por erro na avaliação, seja também, por não estar de acordo com a jurisprudência uniforme do tribunal.

Caso isso ocorra, a impugnação do vencido não é protelatória, mas sim, sua contribuição para formação da jurisprudência.

Conclusão

Quando no caso concreto o julgador desvia da finalidade da lei por sentimentos metajurídicos de Justiça etc., há falta de sintonia com o seu escopo teleológico e afasta-se do propósito do Estado Democrático de Direito, razão pela qual a norma jurídica oriunda daquela decisão judicial é, respectivamente, política e juridicamente reprovável e inválida.

No âmbito político a decisão judicial que não atende as regras legais, tampouco respeita a jurisprudência dos tribunais superiores, enfraquece e contraria a base ideológica do Estado de Direito, por se afastar das garantias constitucionais de limitação do poder estatal. Já no plano jurídico, a decisão judicial que contrasta com a lei é inválida.

Destarte, fazer atuar o Direito no caso concreto é satisfazer seus propósitos democráticos e atender o fim legal por ele implementado. O magistrado não está autorizado a desviar de tais premissas, mesmo que os fins sejam nobres.

No caso concreto, o magistrado tem que encontrar a solução que melhor se adequa com as finalidades da norma jurídica surgida da lei, sem disso se desviar. Não se quer retornar aos tempos em que o juiz é a boca da lei, quer-se tão somente lembrar que a liberdade hermenêutica e a subsunção dos fatos a norma hão de ir ao encontro com os limites da lei, na qual o juiz está inserido.

Quando se diz que o juiz tem liberdade para decidir, esta se consolidando sua independência perante as partes, terceiros e ao próprio objeto do processo. A liberdade em decidir é o desdobramento legal do dever de imparcialidade.

Em outras palavras, quando a lei autoriza o juiz decidir com liberdade não significa agir com insensatez, de maneira ilógica, como se estivesse na posse de um cheque assinado em branco, que a Constituição entrega para o juiz fazer justiça do modo que bem entender.

Decidir com liberdade compatibiliza-se com a boa hermenêutica, ou seja, o ordenamento jurídico dá certa margem de liberdade para o magistrado encontrar o verdadeiro sentido da lei no caso concreto, mas também estabelece limites, por não permite intelecções dominadas por emoções que transborda o escopo legal.

Dentre os limites que o sistema legal adotou para inibir que o magistrado extrapole a finalidade da lei está o dever de fundamentar suas decisões. É pela fundamentação que o órgão jurisdicional, na pessoa do juiz, expõe as razões de direito identificadas nos fatos trazidos para análise, e de acordo com os quais foi exercida a jurisdição.

Portanto, decisões pautadas na discricionariedade do julgador implodem qualquer chance do resultado da atividade jurisdicional irradiar isonomia, segurança jurídica e previsibilidade, pelo contrário, estremecem toda a carga democrática decorrente da Constituição Federal. Daí porque a lei não pertence ao julgador.

Notas e Referências:

[1]Para el activismo judicial la lectura de la Constitución Nacional no constituye um obstáculo para distribuir el pan de la Justicia sino más bien um estimulo. (...) los princípios constitucionales encierran um mandato tácito que, llegado el caso, pueden determinar que deba dejarse de lado la aplicación de una ley cuando de ella derivaria la solución injusta de un litígio”(.PEYRANO, Jorge W. Sobre el activismo judicial. Activismo y garantismo procesal. Academia Nacional de Derecho y Ciencias Sociales de Córdoba, 2009, p. 11-20.)

[2] ABBOUD, Georges; LUNELLI, Guilherme. Ativismo judicial e instrumentalidade do processo: diálogos entre discricionariedade e democracia. Revista de Processo. Vol. 242/2015, p. 21 - 47 | Abr / 2015. DTR\2015\3679.

[3] Embora  Couture defende as ideias ativista, sua frase se adequa a assertiva acima:“las garantias constitucionales realtivas a la justicia, constituyen el fundamento de validez del derecho procesal civil (Ob. Cit. p. 24).

[4] MEROI, ANDREA A. La imparcialidade judicial. . Activismo y garantismo procesal. Academia Nacional de Derecho y Ciencias Sociales de Córdoba, 2009, p. 41-56.

[5] Sobre culpa imaginária recomenda-se: http://www2.uol.com.br/vyaestelar/eu_culpa.htm Consultado em 27 de julho de 2015.

 

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