ABDPRO #25 - E TUDO CONTINUA COMO DANTES NO QUARTEL DE ABRANTES¹

21/03/2018

Decidi na coluna de hoje não falar de processo civil “comum” e, muito menos, alongar-me. O texto será curto e o mais objetivo possível, com o propósito de instar os leitores a refletir.

Refiro-me ao processo civil “comum” (PCC) aquele voltado ao estudo dos procedimentos e da procedimentalidade; do tal “instrumento do direito material”. Posso estar enganado, mas o estudo dos tais institutos não mais me chama a atenção. Explico: todos, ou pelo menos, a imensa maioria dos manuais, instituições, cursos, compêndios, coleções, códigos comentados/anotados e etc., fazem esse trabalho e atingem os objetivos propostos pelos autores, qual seja: ensinar ao aluno ou ao profissional uma gama de matérias contidas no estatuto, na maioria das vezes, de forma acrítica e ainda sob o paradigma do publicismo processual[2].

Portanto, normas gerais, competência, negócios jurídicos processuais, calendarização, formas alternativas de resolução de conflitos, intervenção de terceiros, amicus curiae, prazos, respostas do réu, ônus da prova, execuções de títulos, embargos de declaração, rol taxativo ou não do agravo de instrumento e tantos outros temas, a meu ver, passa ao largo de enfrentar os problemas que o processo civil brasileiro passou e continua a passar, mesmo após a edição do diploma de 2015.

Nosso maior problema, creio, está em garantir que a compreensão-interpretação-aplicação do direito respeite a legalidade.

Na ciência processual civil (nem vou me referir à penal) há um abismo entre aquilo que a legalidade constitucional/infraconstitucional estabelece e o produto final (a decisão) que nossos Tribunais, notadamente, Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça “dizem” a respeito do Direito posto.

Há uma infinidade de casos, situações e julgados em que a legalidade é substituída por um juízo moral próprio de cada um dos membros de um órgão colegiado de um Tribunal ao arrepio da integralidade do ordenamento, até mesmo da legislação de regência sobre tal e qual matéria.

Mas poderiam me indagar: - Ora, a decisão não é um ato de interpretação do julgador?

Eu responderia: sim ... claro ... mas há limites e estes consistem em respeitar minimamente o texto democraticamente produzido. Não cabe ao Judiciário fazer a lei![3] E digo mais, não cabe ao Judiciário fazer “outra lei”; cabe, quando muito, deixar de aplicá-la, no caso concreto, ou em situações previamente estabelecidas e sobre as quais haja uma situação de inconstitucionalidade exaustivamente fundamentada, justificada, motivada, pois, afinal, a decisão judicial é um dos direitos fundamentais dos cidadãos, como já asseverou Lenio Streck de há muito tempo[4].

Um verdadeiro pós-positivista, como Friedrich Müller, já disse que a concretização da norma jurídica, dá-se a partir de uma estrutura[5] que contém o “programa da norma” (constituído de elementos linguísticos do processo concretizador; teor literal) e o “âmbito da norma” (caracterizado por elementos extraído da realidade social regulamentada pelo texto). Norma, portanto, é o resultado dessa applicatio. Não é qualquer coisa! Não é aquilo que o interprete acha que deveria ser aos seus olhos. Para isso existe a doutrina “de lege ferenda”. Não se pode fantasiar situações não encontradas a partir e no limite do texto normativo (produto da atuação democrática do Parlamento).

Evidentemente há maneiras de se extirpar do ordenamento textos normativos incompatíveis com a Constituição, como acima afirmarmos, entre eles a declaração de inconstitucionalidade, a interpretação conforme, a declaração de nulidade parcial com ou sem redução de texto[6].

O que não se permite, num Estado de Democrático de Direito, é o alijamento de textos normativos interpretados sem a devida fundamentação pelo órgão julgador, cingindo-se ao “deixar de aplicar” pura e simplesmente em razão da discordância com o seu teor.

Da mesma forma, como conceber que haja uma tese desgarrada de um caso? Como estabelecer a possibilidade de um corpo sem alma (artigo 998, parágrafo único do Código de Processo Civil de 2015)? Como recorrer de teses?

A norma só se dá no caso concreto, gostemos ou não!

Como de antemão podemos pensar em uma aplicação de um “precedente” de forma vinculante antes de analisar o caso concreto?

Hoje, no Brasil, por conta do “império da monocratização”[7] ou decisões unipessoais (como está em voga se referir a essa espécie de pronunciamento), de que forma podemos estabelecer construir de forma séria e responsável “precedentes” ou “padrões decisórios”?[8]

Vivemos o fetiche do “precedente”, sem termos a sua cultura genuína[9]. Esse recorde ano a ano das decisões monocráticas revela que o subjetivismo impera no Brasil. Não há a menor segurança jurídica e isonomia, binômio esse brandido aos quatro ventos como o mote da salvação pelo Código de Processo Civil de 2015.

Passados dois anos da vigência do Código, o que mudou efetiva e substancialmente? Não há mais atrasos nos julgamentos? Não há escolhas pessoais em pautar julgamentos de acordo com a conveniência do órgão jurisdicional? A tal tutela de evidencia e a estabilização da tutela de urgência são eficazes como esperavam ou abarrotaram ainda mais os Tribunais locais?

E os casos pilotos e os processos modelos mudaram algo nesses dois anos ou sua atuação foi pífia?

O tão inconstitucional como inadequado incidente de assunção de competência (IAC) previsto no artigo 947 do Código de Processo Civil de 2015, uma espécie de avocatória branca, repetiu aquilo que o revogado artigo 555, § 1° do CPC/73 já previa, ou seja, incidente de uniformização (art. 947, § 4° do atual Código)[10]; nem mais, nem menos!

O artigo 489, § 1° e o artigo 10 do Código de Processo estão entre os mais vilipendiados de toda a legislação processual, vide o que se afirmam o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça no que toca a não obrigatoriedade de “enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador”, mesmo com o texto normativo expresso no sentido da imprescindibilidade de assim o fazê-lo.

Há ainda quem sustente[11] que o órgão julgador somente está obrigado a fundamentar exaustivamente sua decisão nos casos em que a postulação também assim o fizer. Ledo engano, o artigo 489, § 1° é uma garantia fundamental do cidadão contra o arbítrio do Estado e não uma garantia do Estado contra o cidadão, simples não? Além disso referido dispositivo é um dever do julgador e não constitui ônus das partes. É um pressuposto de validade das decisões, sob pena de nulidade.

Em relação ao artigo 10 (conhecido como o princípio da não surpresa) houve já no Superior Tribunal de Justiça quem sustentasse que aos “fatos da causa devem ser submetidos ao contraditório, não o ordenamento jurídico, o qual é de conhecimento presumido não só do juiz (iura novit curia), mas de todos os sujeitos ao império da lei, conforme presunção jure et de jure (artigo 3º da LINDB)[12].

Nem vou tecer muitos comentários acerca das mágicas Súmulas 7 e 279/284 do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal, respectivamente, as quais fazem desaparecer processos com uma presteza de causar inveja a qualquer outro mecanismo criado pelo Novo Código de Processo Civil.

Basta, para constatar essa espécie de “poltergeist decisório”, uma navegada pelos sítios dos referidos Tribunais para constatar a multidiversidade de situações em que elas são sacadas como fundamento (muitas vezes único), para aniquilar uma enorme gama de casos, sejam eles simples ou dos mais complexos.

Os “precedentes” referenciados e o conjunto de julgados citados nas decisões e acórdãos, em sua maioria, parecem aleatórios, descontextualizados do caso analisado. Na justificação das decisões, ou seja, nos votos, não existe qualquer comparação analítica entre os tais julgados e o caso concreto, não se percebendo o exame de qualquer peculiaridade. Há, isso sim, referências a argumentos ou teses gerais, normalmente encontradas em fragmentos ou trechos dos tais “precedentes”, que, data venia, servem para o sim ou para o não, como mecanismo de provimento ou não provimento a depender do destino a que se queira conferir ao recurso. O modelo é o mesmo, seja para o caso de um “manequim 38”, seja para um plus size, estejamos nós no verão ou no inverno!

A monocratização está em pleno vapor ... a jurisprudência defensiva não foi enterrada ... o livre convencimento motivado é lembrado em inúmeros pronunciamentos ... a fundamentação é circunstancial ... os predadores do direito continuam com força total, como veículos transmissores da febre da discricionariedade judicial ... a solução para os escaninhos (e caixas eletrônicas de processos) continuam abarrotados.

O número de RE com repercussão geral disparou, mas a qualidade dos julgamentos nem tanto, basta para tanto observarmos que temas aparentemente solucionados frequentemente voltam à pauta com mais um ou outro fundamento não enfrentado ou mal enfrentado pelo Supremo Tribunal Federal[13]. Isso porque não existem fundamentos gerais a priori capazes de impedir novas demandas recursais, quer em razão da impossibilidade de se prever todas as hipóteses possíveis relacionadas a uma “tese”, quer simplesmente em razão do fato de que esses tribunais não possuem “precedentes” como critério seguro, diante da pulverização de “julgados” díspares sobre os mesmos temas oriundos muitas vezes do mesmo órgão monocrático ou colegiado. Não existem, data venia, “decisões passadas” que sirvam de norte seguro ao próprio tribunal.

Nessa perspectiva, ouso dizer que há um paradoxo insuperável: quanto mais teses tiradas em recursos repetitivos ou com repercussão geral reconhecida se estabelecem, menos eficazes se mostram as soluções dadas, legitimando a utilização de uma gama (constitucional e legal) de meios de impugnação, forçando o tribunal a rever seu “posicionamento”, circunstância que, ao final reflete a ideia de que nunca temos um “precedente” sobre nada, mas um punhado de decisões ou votos que formam um acórdão com múltiplas fundamentações genéricas, por vezes, contraditórias entre si, repercutindo um dissenso máximo no órgão julgador, sem, contudo, demonstrar qualquer parâmetro decisório seguro que espelhe uma opinion of the court[14].

Da imensa maioria das promessas efetivadas pelo Código de Processo Civil de 2015, nenhuma delas foi capaz de mudar esse panorama; ao revés disso, criaram mecanismos cujos efeitos são deletérios à democracia e potencializaram o ativismo judicial (forma de pronunciamento pela qual os julgadores substituem a legislação democraticamente constituída por decisões que espelham a vontade e a moral pessoal do interprete), muito mais que insegurança jurídica; trouxe, isso sim, perplexidade com o modo pelo qual buscaram solucionar a ausência de uma teoria da decisão, apostando no arbítrio e nas idiossincrasias típicas de um protagonismo judicial.

Nessa quadra da história, gostos pessoais, meras paixões, apelos à fé e a esperança não bastam para mudar esse estado de coisas; é preciso mais!

Reflitamos!

 

[1] A inspiração surge de um acontecimento histórico. Em apertada síntese, a frase remonta ao século XIX. Com a invasão de Napoleão à Península Ibérica, Portugal foi tomado pelas forças francesas, porque havia resistido em obedecer ao Bloqueio Continental imposto por Bonaparte, como o objetivo de fechar os portos a qualquer navio inglês.

Em 1807, a cidade de Abrantes, nas proximidades de Lisboa, foi invadida pelo general Jean Androche Junot. Em Abrantes, Junot instalou seu quartel-general e, meses depois, se fez nomear duque d’Abrantes.

Na ocasião, o general encontrou o país sem governo, já que o príncipe-regente dom João VI e toda a corte portuguesa haviam fugido para o Brasil. Durante a invasão, ninguém em Portugal ousou se opor ao duque. A tranquilidade com que ele se mantinha no poder provocou o dito irônico. Aos que questionavam como estavam as coisas, a resposta era: “Esta tudo como dantes no quartel d’Abrantes” (breve escorço histórico inspirado em texto de José Cândido Póvoa colhido no endereço eletrônico: https://www.dm.com.br/opiniao/2017/05/esta-tudo-como-dantes-no-quartel-de-abrantes.html. Acesso 07.03.2018)

[2] Traços marcantes do publicismo são a instrumentalidade e, como o advento do Código de Processo Civil de 2015, precisamente inserida no artigo 6º, a cooperação processual.

[3] Nem mesmo nas omissões constitucionais a Ação Direita de Inconstitucionalidade por omissão e o mandado de injunção autorizam, de pronto e em regra, tal prática.

[4] Esse direito fundamental já foi reconhecido em democracias mais maduras. Nesse sentido Streck indica: TEDH, sentenças: de 09.12.1994; TEDH 1994, 4, Ruiz Torija e Hiro Balanies, parágrafos 27 e 29; de 19.02.1998; TEDH 1998, 3, Higgs e outros. Fr, parágrafo 42; e 21.01.1999 – TEDH 1999, 1, Garcia Ruiz. O Tribunal Constitucional da Espanha, no mesmo sentido, reconheceu esse direito fundamental, como na sentença n. 20/2003, de 10 de fevereiro. (Verdade e Consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 6 Ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 665).

[5] MÜLLER, Friedrich. O novo paradigma do direito: introdução à teoria e metódica estruturantes. 2.ed. São Paulo: RT, 2009, p.11.

[6] STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 6 Ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 669

[7] “Pesquisa divulgada pelo site Consultor Jurídico, com base em dados do Conselho Nacional de Justiça, revela que, dos 26,5 mil julgamentos de mérito realizados pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2017, 13,6 mil – o que corresponde a 51,3% do total – foram realizados por um único ministro, sem a participação dos demais membros da Corte. No ano passado, o Supremo recebeu 103,6 mil processos, ante 90,3 mil em 2016. No cômputo geral, com a inclusão dos diferentes tipos de recurso judicial, as decisões monocráticas corresponderam a 89,8% das 113,6 mil proferidas em 2017”. Texto completo: https://www.conjur.com.br/2018-fev-17/supremo-tribunal-federal-decisoes-monocraticas. Acesso: 06.03.2018.

[8] Desse modo, é muito pouco defender que basta um contraditório substancial para que se possa estabelecer padrões decisórios a serem seguidos se, ao final, a futura intepretação se dará de forma mecânica e automática, sem qualquer relação com o caso posterior. O padrão decisório, como sustentam, deve se dar no exame profundo de todos os argumentos postos pelas, cotejando-os, vis a vis, com o caso a ser solucionado. Aliás, isso é apenas a concretização da Constituição Federal (que esse ano de 2018 fará 30 anos de vigência). Difícil estabelecer isso se o “precedente” ou é monocrático ou o é antecipadamente vinculante pronto, acabado, genérico e abarcando “tudo” sobre a “tese” nele consagrada.

[9] Embora parcela de nossa doutrina, a qual designo de “transcendentalistas” ou “neo-precedentalistas”, acredite que estejamos inseridos nela.

[10] Um exemplo disto é o IAC no RMS 53.720 suscitado no STJ em 2017.

[11] http://www.frediedidier.com.br/editorial/editorial-191. Acesso: 06.03.2018.

[12]http://www.stj.jus.br/sites/STJ/default/pt_BR/Comunica%C3%A7%C3%A3o/noticias/Not%C3%ADcias/Aplicar-lei-n%C3%A3o-invocada-pelas-partes-n%C3%A3o-ofende-princ%C3%ADpio-da-n%C3%A3o-surpresa (REsp 1.280.825).

[13] Prefiro denominar de Supremo Tribunal Federal ao invés de Corte Constitucional. Isso porque, em que pese a competência estabelecida pelo legislador constituinte reconhecendo ao STF o papel de uma Corte Constitucional, seu perfil institucional difere de verdadeiras Cortes Constitucionais. Com Nelson Nery Junior, podemos enfatizar que “em países que possuem tribunais constitucionais, como, por exemplo, a Alemanha, esse tribunal é órgão constitucional de todos os poderes, situando-se no organograma do Estado ao lado do Executivo, Legislativo e Judiciário, não sendo, portão, órgão do Poder Judiciário nem se situando acima dos Poderes Executivo e Legislativo. É formado por pessoas indicadas pelos três poderes, com mandato certo e transitório, vedada a continua ou posterior recondução. O tribunal constitucional é, pois, suprapartidário”. (Princípios do processo na constituição. 10 Ed. São Paulo: RT, p. 44-45).

[14] Não se está aqui a tecer críticas ao modelo de votação seriado (seriatim) em favor da deliberação única e cerrada do colegiado (per curiam), até porque Cortes Constitucionais como a Portuguesa e a Alemã recepcionaram o modelo seriado. O que se coloca é que mesmo no modelo seriado a personificação do voto fica em segundo plano, sendo curial, a clareza dos argumentos favoráveis e desfavoráveis que o caso exigiu. No Brasil, a personificação é a própria essência do voto, nele consta-se fundamentação extrajurídicas, pessoais, de juízos de valor e morais, por vezes, completamente dissociados no texto normativo que quer aplicação. Portanto, não se desconhece que a divergência nos pronunciamentos judiciais representa consequência natural própria de julgamentos colegiados e, como tal, devem ser valorizadas, até porque, nos votos vencidos, muitas vezes, reside, a semente das grandes transformações. Todavia, nem por isso, o resultado do julgamento pode ser incompreensível ou genéricos, do ponto de vista dos argumentos favoráveis e desfavoráveis que levam à conclusão do caso. Exige-se, pois, responsabilidade de cada julgador, cujo raciocínio deve ficar sujeito a controle de coerência, integridade e consistência com o ordenamento jurídico como um todo.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Processos // Foto de: Conselho Nacional de Justiça - CNJ // Sem alterações

Disponível em: https://flic.kr/p/pveFVZ

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura