Por uma predisposição natural, algumas formigas operárias estavam sempre em pé de guerra. As pixixicas, que se destacavam por suas asas e aterrorizantes picadas, reconheciam que o tamanho de sua espécie era motivo de riso entre todos do gênero.
Assim, a cada batalha, as formigas carnívoras gigantes sempre saíam vitoriosas. Eram de maior número e seus aproximadamente três centímetros colocavam medo em qualquer outra espécie. Venenosas, imobilizavam suas vítimas como nunca visto antes. Davam medo até nas formigas sentinelas, aquelas fadadas a cuidar a vida toda da segurança dos formigueiros.
Mas as pixixicas não aguentavam mais a injustiça de perderem para as gigantes porque eram minoria e tinham menos força. Afinal, era injusto viver num mundo em que somente a força prevalecia. Insatisfeitas, conversaram entre si e chegaram à conclusão de que o mais forte prevalecia porque não tinha quem os pacificasse, quem decidisse quem era o culpado e apontasse o erro a ser corrigido.
Faltava agora convencer as formigas gigantes, que, por sorte, estavam em um momento de fragilidade: sua rainha, que era muito amada por todos, acabara de partir dessa para melhor. Forjando uma suposta vontade da rainha, sugestionaram que a partir de então os conflitos entre Pixixicas e Gigantes fossem decididos não mais pelo duelo, mas por uma decisão de um conselho formado pelos mais excelentes operários de ambos os lados.
E não é que deu certo?! Aparentemente, as formigas gigantes só queriam curtir o luto de sua rainha amada. E se aquela fora a vontade dela, seria aceita.
Antes que formigas gigantes mudassem de ideia, as pixixicas promoveram a escolha dos integrantes do conselho dentre os melhores operários de ambos os formigueiros.
Os escolhidos, sentindo-se orgulhosos, agora tinham sua importância reconhecida publicamente. E como já vinham carregando o luto da morte da rainha, seus trajes negros acabaram por identificar os integrantes do “Olimpo”, aqueles portadores das mais bem vistas qualidades e do poder sobre os demais do formigueiro.
Então, o “Olimpo” após criar regras para os julgamentos dos conflitos, elegeram os benefícios merecidos por deterem uma função exclusiva dentro dos formigueiros.
Definidas estas questões, agora só restava curtir a paz que reinava entre as formigas. Existindo um conflito e não fazendo as pazes amigavelmente, a situação era levada ao Conselho. Tudo ia bem até que uma formiga gigante teve sua câmara de alimentos roubada. Ela havia perdido todo o estoque de comida que serviria para o próximo inverno.
As gigantes desconfiaram, naturalmente, das pixixicas, e perguntaram à sentinela do formigueiro gigante se havia visto algo estranho àquele dia. A sentinela relatou ter visto um movimento incomum de uma pixixica em especial que havia saído dos túneis sem asas. Em busca da tal pixixica sem asas, foi ela levada imediatamente ao “Olimpo” para julgamento.
Para surpresa de todos, naquele dia, o “Olimpo” estava reunido para debater sobre o aumento dos benefícios de seus integrantes decorrente do aumento da carga de trabalho. Ocupados, não puderam decidir sobre o roubo, e a pixixica sem asas foi mantida no “Olimpo” até o dia seguinte para julgamento.
No dia posterior, logo cedo, o “Olimpo” já se encontrava sob os holofotes de pixixicas e carnívoras gigantes. A notícia de que uma pixixica havia sido mantida sob a guarda do “Olimpo” acusada de roubo de alimentos havia se espalhado.
Os julgadores, dada a repercussão, chegaram cedo e vestiram logo suas togas, distintivo de seu prestígio. Finalmente, feitos os devidos cumprimentos, começou o Presidente:
- Aos vinte e seis dias do mês de Fevereiro de 2018, na sala de julgamento do “Olimpo”, na presença da Gigante Tício e do Pixixica Mévio, passo a palavra para o Reclamante Tício relatar o ocorrido.
- Excelência, ontem, ao voltar do meu vôo nupcial, encontrei minha câmara de alimentos vazia. Asseguro que antes de sair para o vôo ela estava completa, pois tenho trabalhado incansavelmente para a carência de comida que sempre nos atinge no inverno. Logo chamei a sentinela do formigueiro que relatou ter visto um movimento estranho de uma pixixica sem asas, a acusada.
- E no que disse ele ter consistido esse movimento estranho do Seu Pixixica Mévio?
- Excelência, o Seu Pixixica Mévio foi visto saindo do túnel que dá acesso ao ninho das Carnívoras Gigantes. Foi o único estranho visto pela sentinela ontem no nosso ninho. Perguntamos ao acusado o que lá havia ido fazer. Ele nos disse ter ido ver a nova rainha.
- Peçam à sentinela do Olimpo que vasculhem nos arredores do ninho das Carnívoras Gigantes em busca das asas perdidas da Pixixica, especialmente próximo do ninho real e da Câmara de alimentos roubada! Assim saberemos a verdade.
Algumas horas depois, volta a sentinela trazendo as respostas esperadas para o julgamento:
- Diga, sentinela Caio. Encontrou o objeto procurado? – perguntou o Presidente.
- Sim, Excelência, encontrei estas asas!
- E onde estavam sentinela. Diga logo!
- Excelência, elas estavam no túnel.
- Mas estavam mais próximas do ninho real ou da câmara roubada?
- Excelência...- gaguejou a sentinela
- Diga sentinela!
- Estavam mais próximas da câmara do que do ninho real.
- Excelência, posso tentar explicar? – tentou a acusada!
- Não, Seu Pixixica Mévio. O Sr. já nos ocupou tempo demais. Daremos início aos votos para o seu julgamento!
- Mas Excelência... – tentou mais uma vez se explicar à Corte.
- Nada mais a dizer. Quem comanda este julgamento sou eu. E eu voto no sentido de condená-lo à pena de servidão para a Reclamante por todo o inverno pelos próximos 10 anos, preenchendo sua câmara de comida, além de pagar pelo estoque que foi roubado! E os demais?
E todos os julgadores acompanharam o Presidente do Olimpo...
- Mãe, faz a voz da Pixixica. Termina a frase dela.
- (risos) Não tem voz da Pixixica, filho. Ela foi condenada e pronto.
- Mas será que a Pixixica realmente roubou a comida da Gigante?
- Porque não haveria de ter roubado se a asa dela foi encontrada próxima à cena do crime? O importante é você entender que não está certo mexer no que não é seu. E isso é só uma história. Saiba que só os culpados são condenados! (ao menos os adultos precisam iludir as crianças enquanto ainda são inocentes, certo?!) Nós, juízes, fazemos de tudo o que podemos para que isso aconteça.
- Mas você sempre diz que ninguém sabe de tudo e que os seres humanos erram. Será que o Olimpo não errou?
- Hummmm. Não eram seres humanos. Eram formigas.... as formigas não erram. – a mãe sorriu feliz por ter encontrado uma resposta rápida e não perder a razão. - Outro dia continuamos a conversa.
Apagou a luz e saiu, intrigada por estar sendo levada a cair no seu próprio engano depois de uma história infantil. Mas apesar de ser só uma história, pôs-se a pensar: não sabia bem se a Pixixica havia roubado o estoque de alimentos da Gigante ... Mas enfim, decidiu deixar tudo de lado. Era só uma fábula! Juízes legislando? Em que terras isso podia acontecer? Havia acabado de passar no concurso para a Magistratura e estava comprometida com sua profissão, com a verdade e o futuro da sociedade. Não ia cair em injustiças!
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Adulto é uma fábula que contam pras crianças. E o Judiciário é uma outra que contam para a sociedade. A verdade é que se as histórias para crianças fossem de leitura obrigatória para os adultos, nós, os adultos, seríamos capazes de aprender o que há tanto tempo tentamos ensinar. Essa micro fábula é uma tentativa simples, muito simples, de revelar àqueles que não são técnicos do direito, de que usualmente, nós, adultos, caímos no nosso próprio engano quando contrapomos a teoria e a prática.
Tenho familiares esclarecidos que rotineiramente elogiam profissionais do Direito notoriamente conhecidos porque aparentemente trilham um caminho de resgate da sociedade a valores morais perdidos.
Quero dizer com isto que a sociedade contempla aquele que, em tempos de um Brasil corrupto, luta para curá-lo incansavelmente e sem limites deste mal interminável, mas não se identifica com um “Olimpo” como o da fábula, apesar de viverem num país com um Judiciário similar.
Com efeito, é preciso estampar que a Constituição impõe a condição essencial de distanciamento do juiz em relação às partes do processo e que democratiza o processo possibilitando um amplo debate tanto dos fatos quanto das teses jurídicas envolvidas. Mas acreditando ter condições de conhecimento superiores aos outros envolvidos na situação e de prever a intenção dos acusados, impossibilita o debate necessário para amadurecimento dos pontos controversos e impede um julgamento imparcial.
Tomemos em consideração o caso amplamente divulgado do desembargador do Maranhão que determinou ao advogado estudar na Escola da Advocacia e sugeriu a cassação de seu registro[1]. É fato que muito advogados não detém a capacidade técnica suficiente para representar seus clientes. Mas há uma distorção na crença de que cabe aos juízes suprir a flagrante falta de técnica dos letrados. Você, leitor, que não é da área jurídica, saiba que se estiver auxiliado por um advogado sem a capacidade esperada, o juiz poderá sempre ordenar a substituição do seu advogado ou a nomeação de um assistente técnico ao advogado que desta necessitar. E saiba também que o Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil estabelece a inexistência de hierarquia ou subordinação entre advogados e magistrados.[2] Aliás, é direito do advogado exercer sua profissão com liberdade e não há competência do juiz sobre a Ordem dos Advogados do Brasil que lhe imponha inscrever qualquer profissional na Escola da Advocacia porque assim deseja. No caso, parece, o desembargador ultrapassou os limites de suas atribuições, como bem repudiou a OAB-MA por meio do Presidente da Seccional, Dr. Thiago Roberto Moraes Diaz, e também ultrapassou em 2008 quando o mesmo mandou um juiz estudar[3] determinando o encaminhamento de cópia dos autos à Corregedoria Geral de Justiça com a recomendação que o magistrado de base fosse inscrito, de ofício, na Escola da Magistratura, disciplina Direito Processual Civil, em especial no módulo de recursos (coisa julgada), devendo o digno Corregedor de Justiça comunicar à Câmara, após o término do curso de que se trata, se houve o aproveitamento por parte do juiz em causa.
Conta-se este fato para deixar claro que a situação ocorreu não apenas com membros da Ordem dos Advogados do Brasil, mas com servidores do próprio Judiciário, não sendo uma questão isolada desta categoria.
Mas não é só isso! Esse excesso de confiança resulta de distorções que chamamos de “vieses cognitivos”, que poderemos traduzir em “tendências de pensar de certo modo”.
Esses tais “vieses cognitivos” são tendências biológicas e construídas de raciocínio, ou enganos lógicos que absorvemos com o tempo e que mostram como nosso pensamento é dinâmico, orgânico e imperfeito. Cada um desses denominados “vieses cognitivos” é categorizado por uma razão, ou melhor explicando, eles servirão para fazer um atalho em nossos raciocínios. Então, se você os olhar pelos problemas que tentam resolver, se torna mais fácil entender por que existem, como são úteis e os erros mentais que causam.
Em sintonia com o contexto exposto, localizamos um problema na mente humana: para agir, precisamos estar confiantes em nossa habilidade de impactar e sentir que o que fazemos é importante, ou nos paralisamos.
Isto relaciona-se com o categorizado “viés egocêntrico”, que produz no ser humano uma auto-avaliação melhor do que a realidade mostra ser. Mais ainda: supervaloriza suas contribuições enquanto sub-avalia as contribuições dos demais, sem intenção consciente.
Então, quando você, leitor, leigo, aplaudiu decisões com a do caso acima, está concordando em tirar da função judicial limites legalmente impostos e, agora que já lhes contei dos vieses cognitivos, estão concordando que esta função ilimitada pode recair em erros sistemáticos por atalhos mentais que fazemos sem consciência alguma.
Recuso-me a acreditar que esta tenha sido uma escolha raciocinada por todos aqueles que elogiaram a decisão. Um dia é com o outro, mas amanhã não se sabe com quem será. E a verdade é que somos todos filhos da pátria!
Confiar nos juízes é tema que aliás segrega garantistas e ativistas, que são duas linhas de pensamentos opostas no âmbito do direito processual, sobretudo da América Latina.
Para o ativismo judicial o juiz é o administrador da Justiça, com lei, sem lei, ou contra a lei. Porque o valor Justiça prevalece a todo custo sobre a lei. E nesta corrente, o Judiciário possui um caráter moralizante, mais do que jurídico. Só que como “uma hierarquia de valores” não atinge um consenso universal (ou seja, os valores possuem pesos diferentes para cada pessoa), a percepção moralizante gera decisões pessoais, não jurídico-institucionais. Inegavelmente, o ativismo fragiliza a autonomia do direito.
Mas, para o garantismo processual, o juiz solidário não cumpre uma tarefa propriamente judicial, em razão de que com isso não se resolvem conflitos de interesses, que é a essência da tarefa de outorgar justiça comutativa. Está o juiz que assim atua praticando justiça distributiva sem ter os elementos para poder fazê-lo: em primeiro lugar, a legitimidade da escolha pelos votos do povo; logo, o conhecimento da realidade geral e do impacto que causará na sociedade ao dar a uns o que as circunstâncias da vida negam a outros, etc.
Além disso, ao se submeter à jurisdição, o jurisdicionado está assegurado pela Constituição de ter seu caso julgado por um juiz imparcial.
A tal da imparcialidade é um tema que divide muito os garantistas e os ativistas e que vou me atrever a explicar de forma fácil. Os estudiosos do direito (que chamamos de juristas ou doutrinadores), tanto garantistas quanto ativistas, partem de um ponto em comum, mas caminham para conclusões distintas. Inicialmente, em ambas as correntes a imparcialidade possui o mesmo conteúdo, mas quando se chega às conclusões do que é imparcial ou não na prática jurídica, começam as grandes e diversas diferenças.
Por exemplo, atualmente, tanto garantistas quanto ativistas usam a lição de Werner Goldshcmidt que distingue partialidade e parcialidade: partial é a qualidade de ser parte, enquanto parcial dá a entender que se julga com prejuízos. A corrente ativista em geral subdivide a imparcialidade em subjetiva (não ter interesse subjetivo – relacionado ao sujeito juiz - na solução do litígio) e objetiva (segundo se trata da ausência de interesse frente ao objeto do litígio em conflito). Já a corrente garantista, aproveitando a lição de Goldschmidt[4] e com ensinamentos de Alvarado Velloso, coloca três desdobramentos na imparcialidade: a impartialidade (o juiz não há de ser parte, sua condição de terceiro), a imparcialidade (o juiz deve carecer de todo interesse subjetivo na solução do litígio) e a independência (o juiz deve poder atuar sem subordinação hierárquica a respeito das partes).
E a partir destes desdobramentos, outros são encontrados: a corrente ativista caminha em direção à compreensão de que o processo civil do século XX não se contenta com um juiz indiferente, passivo, alheio, que assiste como mero espectador para resolver quem exerceu com mais habilidade suas armas e o confronto de ideias. Então, quanto o sistema outorga ao juiz supostas moderadas faculdades de direção ou instrução probatória, o ativismo entende não implicar na violação à imparcialidade.
Nesse sentido, os ativistas entendem, por exemplo, que não está afetada a imparcialidade quando tomam um direcionamento de ofício (é uma expressão que vem do latim ex officio, que significa por lei, oficialmente, em virtude do cargo ocupado), pois não sabe antecipadamente qual será o resultado da diligência, tampouco poderia antever quem dela se beneficiará, no que se apoia Michele Taruffo.
Contrariamente, para o garantismo, a imparcialidade é um conceito que se constrói no sentido de que existem sistemas processuais protetores da imparcialidade e outros destruidores dela, fazendo-a depender exclusivamente de virtudes morais das pessoas (no caso, dos juízes) e excluindo ou dificultando seu controle[5]. E muitas das opções dos sistemas processuais refletem este debate sobre a permissão das provas de ofício. Para o garantismo, é indiferente se o juiz sabia ou não qual seria o resultado da prova, porque é impossível, psicologicamente, que ele não possuísse hipóteses acerca do resultado da prova.
Então, no caso da fábula, o juiz, mesmo não sabendo se o sentinela ia achar a asa, nem quem se beneficiaria de tal busca, porque não sabia onde a asa ia ser encontrada, possuía uma ideia sobre a potencialidade do resultado útil da diligência do sentinela, apesar de já terem sido criadas regras para os julgamentos e que poderiam ter sido utilizadas sem a necessidade da produção da prova, qual seja, a busca da asa. No jurídico chamamos de regras de ônus da prova.
Há outro problema: a imparcialidade é a garantia de que o julgador não está pendendo para uma dos lados a julgar. Como seria possível controlar o móvel psíquico do juiz frente a influências estranhas ao direito provenientes do sistema social (como o poder) ou provenientes do próprio processo (como os sujeitos envolvidos)? Isto é, na fábula, o presidente do Olimpo disse querer saber a verdade e por isso ordenou a diligência ao sentinela, mas ainda que se justifique a conduta judicial pelo comprometimento do juiz com o “esclarecimento dos fatos” ou “com o escopo objetivo de obter conhecimentos relevantes e úteis para a apuração da verdade”, como se saberá qual foi o móvel deste comportamento judicial? Por isso, para muitos teóricos do processo, a garantia da imparcialidade está estreitamente vinculada à tese da separação de funções entre juiz e partes, razão pela qual Luigi Ferrajoli, o pai do garantismo, insiste na configuração do processo como uma relação triangular entre três sujeitos sem a confusão de funções para que a imparcialidade do juiz não se encontre comprometida nem sequer psicologicamente. Cabe nos perguntarmos se é razoável construir todo um sistema processual baseado numa indubitável probidade de quem será chamado a ser juiz e assim, se é razoável confiar ao julgador uma tarefa que constitucional e naturalmente cabe às partes.
Além disso, há a situação da propensão egocêntrica que demonstra que as pessoas se engajam em buscas mentais confirmatórias por uma teoria que elas querem acreditar e que tais lembram suas próprias ações mais do que as ações dos outros. O excesso de segurança é latente.
Há vezes que tal propensão egocêntrica acaba por encerrar uma parcialidade determinada ao informar a controvérsia desde um só ponto de vista, fazendo um monólogo do que deveria ser um diálogo, como foi na fábula. Se o processo tem por objeto uma controvérsia sobre determinado objeto, o dever de imparcialidade exige escutar a ambas as partes (audiatur et altera pars)[6]
No âmbito da premissa fática, ativistas e garantistas da envergadura de Luigi Ferrajoli[7], Michelle Taruffo[8], Ferrer Beltrán[9], e Andrés Ibánez[10], REAFIRMAM a importância do contraditório. É razoável contentar-nos com versões parciais de apenas um dos protagonistas do conflito? Nesta direção, importante contribuição tem Robert Alexy que ensina que uma das regras para garantir a racionalidade do discurso é precisamente a de permitir a participação de todos os interessados[11].
Mas e quanto à premissa jurídica? No paradigma do Estado Constitucional de Direito, a Constituição é um corpo operativo de garantias positivas e negativas exigíveis jurisdicionalmente e portando uma estrutura normativa aberta e indeterminada. Assim, como compreender o iura novit curia? É o direito um jogo dos juízes? A imparcialidade da decisão pressupõe também o mais amplo debate entre as partes a respeito da premissa normativa, também não cabendo surpresa por uma decisão que se apoie fundamentalmente numa visão jurídica que não tenham conhecimento.
Os iniciantes no debate poderiam perguntar: se se diz que um juiz probatoriamente oficioso é SEMPRE PARCIAL, o juiz que se mantém completamente alheio ao debate é SEMPRE IMPARCIAL no exercício da jurisdição? É preciso prestar atenção que essas frases transmitem ideias relativamente antagônicas, mas não são a negação uma da outra. Isto significa que “existe” ou que “algum” juiz que não determine a produção de prova de ofício ainda assim poderá ser parcial.
Agora bem: se dirigirmos nosso olhar para o comportamento do pensamento processual no passado imediatamente antes da erupção da corrente jusfilosófica garantista, não se havia instalado a inquietude de repensar a questão das incumbências probatórias dos sujeitos processuais e, em especial, no que corresponde ao órgão jurisdicional. Esta não era sequer uma hipótese que merecia ser repensada em torno a uma concepção publicística de processo civil (que dita que o processo não é somente das partes). Era um consenso da comunidade científica em todos os ordenamentos processuais da América Latina. A vigência do consenso continua até que apareça uma anomalia no paradigma e essa falha detectada provoca o dissenso com o paradigma instaurado.
Hoje o Brasil ainda vive exatamente uma crise, uma convulsão de dúvidas na comunidade jurídica presentes (i) os que ainda aceitam a total constitucionalidade das medidas probatórias oficiosas, (ii) os que dissentiram e abraçaram a tese da inconstitucionalidade, e (iii) aqueles que se negaram a seguir crendo na constitucionalidade mas por uma distorção da tradição não alcançam visualizar o oposto, defendendo um suposto meio termo, como por exemplo, os defensores de que é possível a instrução probatória de ofício somente em determinado tipo de prova, como ocorre com a prova pericial.
Talvez essa crise já fosse previsível desde o momento em que nasceu a ideia mãe que engendrou o publicismo, pois nunca o processo pôde cumprir com sua função de garantia se ao mesmo tempo se estimulava os juízes a investigar e provar juntamente com as partes.
[1] http://www.ma10.com.br/minard/2018/02/desembargador-manda-advogado-voltar-a-estudar-e-sugere-cassacao-de-registro/
[2] Art. 6º Não há hierarquia nem subordinação entre advogados, magistrados e membros do Ministério Público, devendo todos tratar-se com consideração e respeito recíprocos.
[3]http://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI71580,81042-No+MA+desembargador+manda+juiz+estudar
[4] Golschmidt, Werner. La imparcialidade como principio básico del processo (partialidad y parcialidade), en conducta u norma. Ed. Buenos Aires: Abeledo, 1955, pag. 133.
[5] MEROI, Andrea. La imparcialidade judicial. Activismo y garantismo procesal. Ediciones de la Academia Nacional de Derecho y Ciencias Sociales de Cordoba. Córdoba: 2009, sem pag.
[6]Golschmidt, Werner. La imparcialidade como principio básico del processo (partialidad y parcialidade), en conducta u norma. Ed. Buenos Aires: Abeledo, 1955, pag. 139.
[7] FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón, 3ª. Ed.. Madrid: Trotta, 1998, pag. 613 e seguintes.
[8] TARUFFO, Michelle. La prueba de los hechos. Madrid: Trotta, 2002, pag. 427 e seguintes.
[9] FERRI BELTRÁN, Jordi. Prueba y verdade em el derecho. Madrid: Marcial Pons, 2002, pag. 63 e seguintes.
[10] ANDRÉS IBAÑEZ, Perfecto. Acerca de la motivación de los hechos en la sentencia penal. Doxa, n. 12, 1992.
[11] ALEXY, Robert. Teoria de la argumentación jurídica. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1989.
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