I
Preocupada em blindar-se epistemologicamente, parcela significativa dos «processualistas penais» [rectius: procedimentalistas penais] costuma dizer que as peculiaridades do «processo civil» [rectius: procedimento civil] não devem impactar o «processo penal» [rectius: procedimento penal]. Tudo se passaria como se as ciências dos procedimentos penal e civil tivessem objetos e estatutos teóricos completamente distintos entre si. Como se entre elas vigesse uma lei natural de imiscibilidade ou imisturabilidade conceitual e metodológica. De todo modo, há certa razão nessa cautela: muitas das categorias fundamentais da dogmática procedimental civil geram grave inadequação descritiva quando transplantadas sic et simpliciter ao procedimento penal.
Exemplo paradigmático dessa inadequação é a exótica noção de «pretensão punitiva». No ambiente procedimental civil, a petição inicial afirma a existência de uma pretensão de direito material resistida ou insatisfeita. Já no ambiente procedimental penal, a denúncia apenas deflagra a fase judicial da persecução penal – desde que haja «justa causa», isto é, «prova da materialidade do crime» + «indícios de autoria» –, sem afirmar a existência de qualquer «pretensão de direito material à punição». Ao longo da instrução o Ministério Público desempenha o seu trabalho acusatório sob a suposição metodológica provisória de culpabilidade do acusado; só nas alegações finais toma uma posição institucional definitiva pela culpabilidade (pedindo a condenação) ou pela inocência (pedindo a absolvição). Nesse pedido há uma mera pretensão de direito procedimental, não de direito material. Nasce de regra de direito procedimental penal, não de direito material penal. Em consequência, desfazem-se no ar, por arrastamento, outras noções exóticas como «lide penal», «contenda penal» e «condições da ação penal».
Nesse sentido, os juristas-do-procedimento-penal (os «processualistas penais») não estão preocupados com os afazeres quotidianos dos juristas-do-procedimento-civil (os «processualistas civis»). Tampouco pretendem imiscuir-se no procedimento civil e migrar para ele as categorias fundamentais da dogmática procedimental penal. Querem unicamente isolar-se em suas análises e meditações. Querem evitar a intromissão no procedimento penal pelos procedimentalistas civis. Querem purificar a sua ciência das cargas impertinentes do «civilismo», que tantas avarias metodológico-conceituais a ela já causou. Só desejam levantar uma muralha-de-Adriano entre as duas ciências e firmar entre elas um pacto de não agressão. Enfim, almejam «apenas» a dignidade de uma solidão epistêmica.
Para livrarem a sua circunscrição das intrusões procedimentais civis, os procedimentalistas penais têm declarado guerra à chamada Teoria Geral do Procedimento (impropriamente chamada, pelos seus próprios defensores, de «Teoria Geral do Processo»). Trata-se de um ousado exercício intelectual de procedimentalistas civis, capitaneado pelo Professor CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO, que jamais cativou os procedimentalistas penais. Aliás, impressiona a pouquidade de procedimentalistas penais dedicados à «TGP». O objetivo dela é desvelar por generalização indutiva as categorias dogmáticas comuns aos âmbitos procedimentais civil e penal. Todavia, a tarefa é ontologicamente irrealizável, pois não existe entre os procedimentos civil e penal uma «região comum interjacente», da qual se possam extrair as aludidas categorias. Um ou outro conceito, secundário e periférico, pode coincidir. Na verdade, existe apenas uma instância fundante sobrejacente, que é a Constituição. Daí por que só se pode falar numa Teoria Unitária do Processo (de cariz constitucional), não numa «teoria generalizante do procedimento» (limitada ao plano infraconstitucional). Só uma TUP pode cunhar os conceitos primários, centrais e unificantes – porque dogmático-constitucionais – dos procedimentos civil e penal. Não por outro motivo, ante a inexequibilidade da empreitada, a «TGP» só fez reduzir, como não poderia ser diferente, o procedimento penal ao procedimento civil (talvez mais «divertido» seria ver o procedimento civil reduzido ao procedimento penal). Com isso, o «penal» se desfez em «civil» e o «civil» se arvorou em «geral».
Dessa maneira, a «TGP» se tornou «a» arquirrival do sonho auto-segregativo da dogmática procedimental penal; a trava de contenção ao grão-projeto procedimental penal. É como se a extirpação da «TGP» tivesse se tornado a condição primeira de possibilidade de uma ciência procedimental penal autossuficiente. De fato, há alguma razão nisso, porquanto essa teoria não passa de uma tentativa malograda de generalização conceitual, que insufla ainda mais a injusta – para não dizer a lógica e ontologicamente insustentável – primazia do procedimento civil. Como se não bastasse, os ganhos líquidos da «TGP» são mínimos: nunca logrou qualquer conceito ou método inovador que haja aditivado a compreensão do fenômeno processual; tampouco elevou a desenvoltura metodológica da «processualística» [rectius: procedimentalística] aos cumes prometidos.
II
Todavia, ater-se à «TGP» tem sido o erro dos procedimentalistas penais. É bem verdade que, em boa parte, as ondas de abalo à integridade científica do procedimento penal ainda vêm da ciência procedimental civil. Porém, não vêm mais estritamente da «TGP». Na realidade, vem da ressignificação degenerescente que os procedimentalistas civis têm feito das garantias constitucionais do processo. Portanto, dá-se frontalmente e à luz do dia.
Debilitadas em prol de uma judiciocracia no âmbito procedimental civil, perdem essas garantias a força necessária para barrarem a judiciocracia no âmbito procedimental penal. Ou seja, a degradação delas pelo instrumentalismo procedimental civil torna o procedimento penal presa fácil do punitivismo estatal. Por isso, hoje, esse tipo de ciência procedimental civil danifica a ciência procedimental penal por ricochete: não a captura – de modo direto e doloso – pelos tentáculos da «TGP», mas a vulnera – de modo indireto e culposo – mutilando as garantias constitucionais do processo.
JUAN MONTERO AROCA diz que «la paradoja procesal del siglo XXI» é o procedimento penal como instituição de garantia (i.e., «garantia do jurisdicionado») e o procedimento civil como instituição de poder (i.e., «instrumento da jurisdição»); ou seja, um juiz penal anémico (liberdade) e um juiz civil superpoderoso (dinheiro). No entanto, é possível que logo esse paradoxo não faça mais sentido algum: se a escalada instrumentalista não for freada, dentro em pouco o procedimento penal também se desnaturará – ao menos no Brasil – em um instrumento da jurisdição. É o passo primeiro para o juiz criminal converter-se de garantidor-imparcial em agente-de-repressão-ao-crime.
Uma ala significativa (talvez majoritária) da doutrina procedimental civil tem sustentado, por exemplo, que:
i) a dinamização do ônus probatório em desfavor do demandado não fere a presunção de inocência civil (aliás, não haveria uma dimensão civil da presunção de inocência, não obstante a jurisprudência da Corte Inter-Americana de Direitos Humanos diga o contrário há mais de vinte anos);
ii) a iniciativa oficial probatória não fere a imparcialidade judicial (não obstante o juiz, cujo eventual dolo de privilegiamento é indetectável, sempre possa antever o beneficiário da prova de ofício);
iii) a flexibilização procedimental per officium iudicis, como forma de gestão processual, não fere o devido processo legal (não obstante o devido processo seja legal, ou seja, da lei, não do juiz);
iv) a escolha negocial post factumdo juízo da causa, ainda que absolutamente incompetente, não fere o juiz natural (não obstante a essência do juiz natural seja justamente a fixação ante causamdo juízo competente);
iv)o dever de cooperação com a verdade implica a possibilidade de a parte produzir prova contra si própria, o que, aliás, é reconhecido no Enunciado 51 do FPPC (não obstante o artigo 379 do CPC resguarde expressamente à parte «o direito de não produzir prova contra si própria»).
Boa parte dessas posições doutrinárias tem sido largamente aceita pela jurisprudência cível no Brasil. Não se olvide, porém, que essas garantias constitucionais são do processo (que é majus), não do procedimento civil (que é minus). Há uma correspondência biunívoca entre as imparcialidades do juiz civil e do juiz penal. Da mesma forma, não existe um «juiz natural civil», que se distinga de um «juiz natural penal». Por conseguinte, se no ambiente procedimental civil institutos como «cargas probatórias dinâmicas», «poderes instrutórios do juiz», «flexibilização procedimental», «cooperação processual» e «negócio processual post factum sobre competência absoluta» não ferem qualquer garantia constitucional do processo, por que haveriam de ferir no ambiente procedimental penal? Na seleção darwinista das ideias, é como se, interpretando as garantias constitucionais, a visão dos procedimentalistas civis vencesse a visão dos procedimentalistas penais.
Daí a necessidade de os procedimentalistas civis serem menos inconsequentes: quando os seus raciocínios dogmáticos tangenciam a ordem constitucional, eles impactam – por via reflexa, mesmo sem intenção – o sistema de direito procedimental penal. Afinal de contas, o sistema constitucional de garantias processuais é vaso comunicante entre os sistemas procedimentais civil e penal. Enfraquecidas deliberadamente no âmbito procedimental civil, enfraquecem-se automaticamente no âmbito procedimental penal. Assim, é inadmissível que ainda hoje juristas-do-procedimento-civil somente entendam de procedimento civil, como se o todo da processualidade lhes gravitasse ao redor dos umbigos (da mesma forma, nada justifica a rotunda ignorância sobre procedimento civil que sói grassar entre juristas-do-procedimento-penal). No fundo, não se trata apenas de abraçar uma multi-disciplinaridade procedimental, mas – também e principalmente – uma uni-disciplinaridade processual. Enfim, somente é poliperito procedimental quem antes é perito processual: o domínio do hipocentro (i.e., o processo) implica o domínio das franjas do fenômeno (i.e., os procedimentos).
Infelizmente, aqui e ali, já se veem julgados admitindo no procedimento penal, por exemplo: a inversão do ônus da prova quando se apreende objeto furtado na posse do acusado, cabendo à defesa provar a origem lícita do bem (cf., v. g., STJ, 6ª Turma, HC 348.374/SC, rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 10.03.2016, DJe 16.03.2016); a possibilidade de o juiz penal ordenar prova de ofício, ainda que num sistema acusatório (cf., e.g., STJ, 6ª Turma, RHC 58.186/RJ, rel. Min. Rogério Schietti Cruz, j. 06.08.2015, DJe 15.09.2015). Ademais, já há respeitável produção doutrinária que, inspirada em cânones de eficiência, propugna uma «teoria geral da flexibilização do processo penal», da qual a flexibilização procedimental é tão só um diminuto capítulo (v., v. g., DEZEM, Guilherme Madeira. A flexibilização do processo penal. São Paulo: USP [tese de doutorado], 2013). Logo, nesse «clima ardente», em breve os tribunais admitirão acordos de delação premiada com cláusula eletiva do juiz homologador – embora incompetente – da preferência do Ministério Público.
Como se não bastasse, o chamado «princípio da cooperação» avança para o procedimento penal. Embora dela ainda não derive consequências mais duras, o STJ já sustenta que no ambiente procedimental penal «a lealdade processual é um dever das partes, a quem se impõe conduta proba e reta em todas as suas intervenções no processo, pautando-se na boa-fé durante a prática de atos, vedada, por isso mesmo, a utilização de mentiras ou omissões relevantes para proveito próprio ou alheio» (6ª Turma, AgRg no RMS 39.859/PE, rel. Min. Rogério Schietti Cruz, j. 09.03.2017, DJe 16/03/2017) (d. n.). Falando ainda de cooperação no procedimento penal, v., ainda: STJ, 5ª Turma, HC 379.686/RJ, rel. Min. Ribeiro Dantas, j. 07.12.2017, DJe 14.12.2017; STJ, 5ª Turma, RHC 83.296/CE, rel. Min. Felix Fischer, j. 28.11.2017, DJe 06.12.2017; STJ, 6ª Turma, HC 307.255/GO, rel. Min. Antonio Saldanha Palheiro, j. 28.06.2016, DJe 01.09.2016. No entanto, se «todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva» (CPC, art. 6º), e se esse dever se estende ao procedimento penal (CPP, art. 3º), em que hipóteses, por exemplo, o acusado deve colaborar com a acusação [problema de hipótese-de-incidência, fattispecie, Tatbestand]? Qual a sanção imponível ao acusado não colaborativo [problema de consequência-jurídica, statuizione, Rechtsfolge]? Se mesmo no procedimento civil o terreno movediço e babelino da cooperação é sloganizado por cláusulas gerais e conceitos vagos, como se pode cogitar da sua aplicação direta e segura ao procedimento penal, sem qualquer concreção legislativa?
Para MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, difusor da cooperação em Portugal, o princípio não se aplica per saltum no procedimento civil; logo, dele se irradiam exclusivamente situações jurídicas previstas em regras legais expressas que o concretizem – cf. Estudos sobre o novo processo civil. 2. ed. Lisboa: Lex, 1997, p. 65; no Brasil, porém, prevalece a teoria da aplicação direta, cunhada por FREDIE DIDIER JR. – cf. Fundamentos del principio de cooperación en el derecho procesal civil portugués. trad. Christian Delgado Suárez. Lima: Comunitas, 2010, p. 57 e ss.). Na recente jurisprudência procedimental penal do STJ, as duas teorias parecem conviver contraditoriamente. No já mencionado julgamento do AgRg no RMS 39.859/PE, a Corte reconheceu que o «dever geral de cooperação» alcança o procedimento penal; contudo, não admitiu aí a «aplicação de multa por litigância de má-fé, dada a falta de previsão legal». Em contrapartida, mesmo sem regra legal expressa, a Corte se apoia no «princípio da cooperação» para preconizar «que a atuação das partes integrantes da relação processual deve ser balizada pela ética e pela lealdade, onde todos devem buscar a justa aplicação do ordenamento jurídico ao caso concreto, sendo repudiada a utilização do processo como um instrumento difusor de estratégias, como ocorre na chamada nulidade de algibeira ou de bolso» (Ag 1.394.588/DF, rel. Min. Marco Buzzi, j. 24.05.2016).
Lembre-se que todo texto normativo é um feixe (obviamente limitado) de possibilidades semânticas. O artigo 6º do CPC não é diferente. Portanto, quando se prescreve que «todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si», essa expressão constitui um vasto círculo de latência cuja uma de suas tantas possibilidades é (a) o dever jurídico de cooperação sob a titularidade do acusado e (b) a auto-incriminação como conteúdo desse dever. É bem verdade que o nemo tenetur se detegere tem sido – por enquanto – ressalvado pelos cooperativistas no procedimento penal (v., e.g., FISCHER, Douglas. Sobre a compatibilização da ampla defesa, do nemo tenetur se detegere, da boa-fé objetiva, do devido processo legal (penal) em prazo razoável e da cooperação - influências principiológica da Constituição da República e do Novo CPC no processo penal. Processo penal. Coord. Antonio do Passo Cabral et al. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 49-65). Todavia, basta um «pulinho hermenêutico» – amaciado numa fofura pamprincipiológica – para se punir por deslealdade processual o condenado que alegou negativa de autoria (tendo em vista que ele não foi probo e reto em suas intervenções no processo, porquanto se utilizou de mentira relevante para proveito próprio). Não sem motivo já se assiste a juízes e promotores bradando contra réu «pouco colaborativo», que se recusa a responder às perguntas no interrogatório (v., p. ex., <https://www.conjur.com.br/2018-jan-31/juiza-reclama-silencio-seletivo-reus-acao-penal>). E com isso, em doses homeopáticas, a curtição cooperativista vai pervertendo o sistema-por-acusação num sistema-para-a-acusação.
III
Entretanto, não é só. Não contentes com uma relativização – quase sempre bem intencionada, conquanto trágica – das garantias fundamentais do processo, nomes importantíssimos do instrumentalismo procedimental civil têm se imiscuído na dogmática procedimental penal. Aliás, acusam-na, não raro, de «analiticamente fraca». Mais: prescrevem-lhe os «sãos influxos» das mais hodiernas «conquistas» do procedimento civil (pan-negocialismo, modelo epistêmico de processo, cooperativismo inter partes, eficiência processual, dinamização ope iudicis de ônus probatório etc.).
Como se vê, é o desmantelamento da muralha epistêmica, tão temido pelos procedimentalistas penais. Assim, resta-lhes uma lição (a qual, ao que tudo indica, ainda não enxergaram): a velha e revelha «TGP», cada vez menos ameaçadora, não é propriamente a matriz disfuncional da dogmática procedimental penal, mas um mero produto dessa matriz. A real fonte originária-originante é o expansionismo caledônio de um procedimentalismo civil movido pela ideia (inconstitucional) de processo como instrumento de poder.
Há uma única maneira de se salvar o procedimento penal do autoritarismo que o ronda, pois: salvar, antes, o procedimento civil. Erradicar do procedimento civil os seus fatores despóticos. Ora, não se protege a própria lavoura se a praga continua vindo do vizinho. Daí por que não basta aos procedimentalistas penais defenderem que o procedimento penal é uma garantia de liberdade contrajurisdicional; devem defender, sob uma base teórica unitária e unificante, que o procedimento civil também o é. Ou seja, a partir da Constituição Federal de 1988, devem demonstrar que, no Brasil, há entre os procedimentos penal e civil uma unidade garantística. Que os procedimentos penal, civil, trabalhista, eleitoral e administrativo (institutos de direito infraconstitucional) são uma corporificação redutora do processo (instituto de direito constitucional). Que a Constituição trata de processo, sem que o adjetive de penal ou civil. Que o CPP e o CPC são códigos de procedimentos e que o genuíno código de processo é a Constituição Federal de 1988. Que a função do processo não é aplicar o direito material, mas impedir que o juiz o aplique de modo arbitrário. Para tanto, os procedimentalistas penais devem exceder as fronteiras da ciência procedimental penal, transitar ex professo pela ciência procedimental civil e refundá-las a partir de uma autêntica ciência processual (que outra coisa não é senão uma constitucionalística especializada na garantia individual do devido processo legal).
Afinal, ou se salva tudo, ou nada está a salvo...
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