ABDPRO #183 - O TERMO INICIAL DO PRAZO PARA DEFESA EM INCIDENTE DE DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA    

30/06/2021

Coluna ABDPRO

Segundo o art. 135, do Código de Processo Civil, uma vez instaurado o incidente de desconsideração da personalidade jurídica, o sócio ou a pessoa jurídica, conforme o caso, será citado para se manifestar no prazo de 15 dias.

O dispositivo legal em questão, contudo, não especifica o termo inicial de tal prazo, quando tal incidente for suscitado em face de duas ou mais pessoas, isto é, quando houver litisconsórcio passivo.

Na resumida reflexão que ora se apresenta, partir-se-á de uma breve alusão a características da desconsideração da personalidade jurídica, como espécie de intervenção de terceiros regulada pelo Código de Processo Civil vigente, exclusivamente para os fins de melhor compreensão do objeto de estudo ora proposto.

Em seguida, analisar-se-á a questão em si, utilizando-se o método dedutivo e tomando como sistema de referência o garantismo processual.

Conquanto seja tema previsto, materialmente, no ordenamento jurídico brasileiro já há algum tempo – vide, por exemplo, o art. 28, do Código de Defesa do Consumidor, já em sua redação original; e também o art. 50, do Código Civil – até a vigência do Código de Processo Civil de 2015, não havia ainda a previsão de um procedimento ao qual a pretensão de desconsideração da personalidade jurídica deveria se submeter.

Assim, o comum é que a doutrina que se debruçava sobre o tema, a partir da perspectiva procedimental, na absoluta falta de regramento mais específico, tivesse como norte a “aplicação de princípios derivados do devido processo legal”.[1]

Como a consequência prática da desconsideração da personalidade jurídica consistia, já, na possibilidade de se atingir o patrimônio dos sócios por responsabilidades que recaíam originariamente sobre a pessoa jurídica – ou o contrário, no caso da desconsideração inversa – a falta de um procedimento regulado com clareza implicava, em princípio, ofensa à garantia fundamental de primeira dimensão[2] de respeito ao devido processo legal, e também dava margem, na rotina forense, a uma série de arbitrariedades.

Ainda que o tratamento dado pelo Código de Processo Civil de 2015 ao procedimento que deve ser adotado pelo Poder Judiciário como método legítimo de trabalho para a desconsideração da personalidade jurídica possa merecer críticas e comporte aprimoramento, é de se registrar que a simples existência dos art. 133 a 137 significa avanço nada desprezível em relação ao panorama legislativo até então existente.

Vale registrar, antes de prosseguir mais especificamente para a análise da questão inicialmente colocada, que, segundo o art. 134, § 2º, do Código de Processo Civil, fica dispensada a instauração do incidente naqueles casos em que, já na petição inicial, for pleiteada a desconsideração da personalidade jurídica – hipótese em que o sócio ou pessoa jurídica será incluído no polo passivo da demanda, para todos os fins, podendo exercer amplamente o contraditório.

Nos demais casos, a pretensão de desconsideração da personalidade jurídica dependerá da suscitação do incidente, por iniciativa da parte interessada ou do Ministério Público, naqueles casos que demandam sua intervenção.

Segundo a exata redação do art. 135, do Código de Processo Civil vigente, “instaurado o incidente, o sócio ou a pessoa jurídica será citado para manifestar-se e requerer as provas cabíveis no prazo de 15 (quinze) dias”.

Diante da aparência de absoluta clareza do texto normativo, a doutrina, em geral, ao abordar o tema, tem apenas referido o prazo de quinze dias para apresentação de manifestação, por parte dos suscitados, sem traçar quaisquer lucubrações a respeito do termo inicial de fluência de tal prazo.[3]

Isso talvez se deva ao fato de que, em geral, toma-se em conta a orientação do § 2º, do art. 231, do Código de Processo Civil, segundo a qual, “havendo mais de um intimado, o prazo para cada um é contado individualmente”.

Ocorre, contudo, que o dispositivo legal em questão trata especificamente de “intimações”, sendo inadequada a sua aplicação, portanto, salvo melhor juízo, para a hipótese de “citação”, como expressamente previsto no art. 135, do Código de Processo Civil, sobre a comunicação inicial dos suscitados no incidente de desconsideração da personalidade jurídica.

Neste sentido, aliás, a lição de Alexandre Freitas Câmara:

A intimação, evidentemente, não é suficiente para assegurar-se ao sócio (ou à sociedade), cujo patrimônio se pretende alcançar, o pleno contraditório. É que só pela citação se adquire a posição de parte no processo (deixadas de lado, aqui, a aquisição da posição de parte pelo ajuizamento da demanda, pela sucessão processual e pela intervenção voluntária, irrelevantes para o quanto neste ponto se examina), não sendo a intimação ato capaz de tornar alguém – independentemente de sua vontade – sujeito do processo.

Impõe-se, pois, a citação daquele cujo patrimônio se pretende, com a desconsideração, alcançar, de forma a viabilizar sua efetiva participação, em contraditório, no procedimento de produção da decisão acerca da desconsideração da personalidade jurídica. É que sem esse pleno contraditório a decisão que se venha a produzir será ilegítima se examinada à luz do modelo constitucional de processo civil, o que implica dizer que a mesma será absolutamente nula.[4]

Restando o claro que a hipótese é, indubitavelmente, de citação dos suscitados, havendo litisconsórcio passivo no incidente de desconsideração da personalidade jurídica, é evidente que não se pode lançar mão, analogicamente, dos dispositivos legais que tratam de mera intimação como referência para definição do termo inicial de contagem do prazo para apresentação da manifestação prevista no art. 135, do Código de Processo Civil.

É bem possível, de toda forma, que se argumente que no § 1º, do art. 915, do próprio Código de Processo Civil, encontra-se a previsão de que, em regra, “quando houver mais de um executado, o prazo para cada um deles embargar conta-se a partir da juntada do respectivo comprovante da citação”.[5]

De toda forma, em que pese a circunstância de o próprio § 1º, do art. 915, do Código de Processo Civil, poder eventualmente merecer críticas, é necessário levar em conta que consiste em disposição normativa que trata da possibilidade de, especificamente no contexto da tutela jurisdicional executiva, os executados defenderem-se, por meio da propositura de uma outra ação judicial, isto é, da oposição dos embargos à execução.

Ocorre, todavia, que, mesmo quando instaurado no contexto de uma execução de título extrajudicial ou de um cumprimento de sentença, o incidente de desconsideração da personalidade jurídica, internamente, comporta o exercício de tutela jurisdicional de caráter cognitivo[6] – atraindo, portanto, a aplicação do art. 231, § 1º, do Código de Processo Civil, segundo o qual “quando houver mais de um réu, o dia do começo do prazo para contestar corresponderá à última das datas a que se referem os incisos I a VI do caput” daquele mesmo artigo.

É bem possível que se objete que o art. 135, do Código de Processo Civil vigente, não trata exatamente de “réus” nem tampouco de “contestação” – mas também parece possível concluir, com segurança, que, à falta de previsão legal mais específica, dada a natureza do incidente de desconsideração da personalidade jurídica e o objeto da “manifestação” prevista naquele mesmo dispositivo legal, a aplicação analógica da previsão do art. 231, § 1º, do próprio Código de Processo Civil, no que diz respeito ao termo inicial da contagem do prazo em questão, é medida que se impõe.

Em síntese apertada, dadas as considerações anteriormente traçadas, conquanto seja lacônico o art. 135, do Código de Processo Civil vigente, a respeito do termo inicial de contagem do prazo para apresentação da manifestação nele prevista, parece possível concluir, com segurança, que, em se tratando de hipótese de citação para apresentação de defesa em um incidente de natureza cognitiva, deve ser respeitada a previsão do art. 231, § 1º, do Código de Processo Civil.

 

Notas e Referências

ANTUNES, Thiago Caversan. O Respeito ao devido processo legal como direito fundamental de primeira dimensão. In: PIEROBON, Flávio; ANTUNES, Thiago Caversan. Direitos humanos e contemporaneidade: estudos em homenagem aos 60 danos da comissão interamericana de direitos humanos. Londrina, PR: Thoth, 2020, p. 269 a 281.

BUENO, Cassio Scarpinella. Manual de direito processual civil: volume único [e-book]. 5 ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019.

CÂMARA, Alexandre Freitas. O Novo processo civil brasileiro. 3 ed. São Paulo: Atlas, 2017.

DIDIER Jr., Fredie. Curso de direito processual civil, vol. 1: introdução ao direito processual civil, parte geral e processo de conhecimento. 19 ed. Salvador: Jus Podivm, 2017.

DONIZETTI, Elpídio. Curso didático de direito processual civil. 20 ed. São Paulo: Atlas, 2017.

GONÇALVES, Marcus Vinicius Rios. Direito processual civil [e-book]. 11 ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020.

RODRIGUES, Daniel Colnago. Intervenção de terceiros. São Paulo: RT, 2017.

SILVA, Osmar Vieira. Desconsideração da personalidade jurídica: aspectos processuais. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.

THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil, vol. I: teoria geral do direito processual civil, processo de conhecimento e procedimento comum. 58 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017.

[1] SILVA, Osmar Vieira. Desconsideração da personalidade jurídica: aspectos processuais. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.

[2] ANTUNES, Thiago Caversan. O Respeito ao devido processo legal como direito fundamental de primeira dimensão. In: PIEROBON, Flávio; ANTUNES, Thiago Caversan. Direitos humanos e contemporaneidade: estudos em homenagem aos 60 danos da comissão interamericana de direitos humanos. Londrina, PR: Thoth, 2020, p. 269 a 281.

[3] Neste sentido, por exemplo: BUENO, Cassio Scarpinella. Manual de direito processual civil: volume único [e-book]. 5 ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019, p. 323 e 324. CÂMARA, Alexandre Freitas. O Novo processo civil brasileiro. 3 ed. São Paulo: Atlas, 2017, p. 102 e 103; DIDIER Jr., Fredie. Curso de direito processual civil, vol. 1: introdução ao direito processual civil, parte geral e processo de conhecimento. 19 ed. Salvador: Jus Podivm, 2017, p. 587; DONIZETTI, Elpídio. Curso didático de direito processual civil. 20 ed. São Paulo: Atlas, 2017, p. 307; GONÇALVES, Marcus Vinicius Rios. Direito processual civil [e-book]. 11 ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020, p. 430; RODRIGUES, Daniel Colnago. Intervenção de terceiros. São Paulo: RT, 2017, p. 105 e 106; THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil, vol. I: teoria geral do direito processual civil, processo de conhecimento e procedimento comum. 58 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 406.

[4] CÂMARA. Op. cit., p. 103.

[5] Com a ressalva de que, segundo a parte final do próprio § 1º, do art. 915, no caso de cônjuges ou de companheiros, o prazo para oposição de embargos à execução “será contado a partir da juntada do último”.

[6] Em suma, afinal, o objeto do incidente em questão é a construção de certeza jurídica sobre a presença ou não dos requisitos autorizadores da desconsideração da personalidade jurídica em cada caso.

 

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