ABDPro #18 - “Carta ao Pai” – Homenagem a Federico Domínguez - Por Glauco Gumerato Ramos

31/01/2018

“Carta ao Pai” (=Brief na den Vater) é o título em português do livro representativo de uma carta, manuscrita entre 10 e 19 de novembro de 1919, na qual Kafka destila sua insatisfação diante da indiferença de seu pai quando lhe fora anunciado pelo filho, então com 36 anos, que estava noivo e que pretendia se casar. Hermann Kafka, o pai, jamais recebeu a carta, que posteriormente foi convertida em livro, publicado postumamente. Na Carta se vê os dilemas por vezes tão comuns nos relacionamentos entre pais e filhos, que não raro nos impõem um amargo angustiante, estejamos no papel de pai, estejamos do no filho.

A “Carta ao Pai” de Franz Kafka é uma chaga aberta pela autoanálise que ela revela. Porém, nada tem a ver com a Carta a que farei menção, a não ser pela homonímia.

Quero me referir a “Carta ao Pai” (=Carta a Papa) lida por Cristiana Domínguez, e escrita a quatro mãos com seu irmão Federico Domínguez Jr., no ensejo do XXVIII Encontro Pan-americano de Direito Processual, no dia 06 de setembro de 2017, em Assunção do Paraguai. O Encontro foi em homenagem a FEDERICO GUILLERMO DOMÍNGUEZ e por lá foram debatidos os mais diversos aspectos do “Proyecto del Código Procesal General para la justicia no penal de Latinoamerica”, o código modelo do Instituto Pan-Americano de Direito Processual (IPDP).

FEDERICO DOMINGUEZ morreu em 30 de janeiro de 2017 às vésperas de comemorar 73 anos, o que ocorreria em março, dia 18. Era uma segunda-feira. Tão logo anunciado o seu falecimento em Buenos Aires recebi uma chamada da Argentina de meu venerável mestre ADOLFO ALVARADO VELLOSO, comunicando-me o ocorrido e pedindo-me para fazer chegar a triste notícia aos processualistas brasileiros ligados ao IPDP e à Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro). Redigi uma breve nota de pesar que, de imediato, foi aprovada pela diretoria e publicada na página web da ABDPro no Facebook,  

FEDERICO DOMÍNGUEZ exercia vitaliciamente o cargo de Presidente do Tribunal de Cassação Penal da Província de Buenos Aires. A ele coube o voto de desempate, de inegável perfil garantista, que gerou a coletânea de debates encartados no já clássico livro Proceso Civil e Ideología – Un prefácio, una sentencia, dos cartas y quince ensayos, cuja organização coube a Juan Montero Aroca[1], que como o passar do tempo tornou-se amigo próximo de FEDERICO e sempre o visitava quando estava na Argentina.

Na casa de FEDERICO DOMÍNGUEZ em Lomas de Zamora, na grande Buenos Aires, tive a chance de estar um par de vezes. A última foi num sábado. Voltava do Congresso Garantista de Azul. Estava acompanhado dos amigos Aníbal Gerardo Acosta, Defensor Público Geral da Província de Terra do Fogo, no gelado extremo sul da Argentina, além de Eduardo Costa, atual presidente da ABDPro. Nos cerca de 300 km entre Azul e Buenos Aires, Eduardo veio dormindo no banco de trás do carro por quase todo o trajeto. Segundo ele, vinha “rezando” reconditamente, receoso comigo no volante. Aníbal vinha ao meu lado no banco de passageiro.

Ao chegar em Buenos Aires deixamos Eduardo Costa no Aeroparque. Seu voo de regresso ao Brasil partiria em pouco mais de uma hora. Aníbal e eu fomos almoçar num restaurante italiano bem em frente à praça de San Telmo. Meu voo partiria por volta das 22h, também do aeroporto que margeia o exuberante Rio de la Plata. No curso do almoço e sob a companhia dos vinhos que nos escoltavam, Aníbal – amigo íntimo de FEDERICO e de seus filhos Cristiana e Federico Jr – convenceu-me de esticarmos até Lomas de Zamora para irmos à casa dos Domínguez. Lá ficamos, conversamos e, como de regra, fomos carinhosamente recebidos por FEDERICO. Saímos de lá com atraso, imersos num tráfego intenso, apurados para chegar ao Aeroparque para devolver o carro alugado e embarcar a tempo. Dessa vez quem “rezava” ao meu lado era Aníbal, pai de seis filhos – isso mesmo: seis! –, que ao chegar no aeroporto, após uma hora sem quase nada falar, me disse: brasileño hijo de una “santa madre”! Tu suerte es que no soy del Ministerio Público Fiscal. Si lo fuera quedarías detenido acá en Argentina... Por lá o MP divide-se em “fiscal” (=promotores de justiça) e de “defesa” (=defensores públicos).

FEDERICO DOMÍNGUEZ estudou na França, era fluente em francês e obcecado pela história da II Guerra Mundial, fato que lhe gerou o título de membro honorário da Associação dos ex-combatentes da Segunda Divisão Blindada Francesa (Marechal Leclerc) desde 1990. Formou-se pela Faculdade de Direito da UBA em 1970. Exerceu a advocacia por vários anos e foi funcionário público provincial. Nos últimos dezenove anos presidiu o Tribunal de Cassação Penal da Província de Buenos Aires. Era membro da Associação Internacional de Direito Penal, do Instituto Pan-americano de Direito Processual, Professor Titular de processo penal e criminologia na Universidade Nacional de Lomas de Zamora, graduação e pós-graduação. Também era professor convidado da Escola Nacional da Magistratura da França e da Universidade de Toulouse, dentre outras. Trabalhou na comissão de reforma do CPP da Província de Buenos Aires. Tinha livros escritos sobre direito processual penal. Foi conferencistas em seu país e fora dali.

Fui destinatário da amizade e de carinho pessoal, quase que paternal, de FEDERICO DOMÍNGUEZ. Lembro-me de certo dia no Congresso Garantista de Azul, em 2008, quando o evento ainda acontecia no belíssimo Teatro Español de Azul, que hoje conta com mais de 120 anos. Foi a minha primeira vez dissertando naquele importante evento nacional. Ao encerrar minha fala, eu que era o único luso-parlante entre eles, resolvi finalizar declamando um trecho de Mensagem, de Fernando Pessoa, o mesmo trecho que eu havia falado em dezembro de 1997 quando da Oração de formatura na Faculdade de Direito Padre Anchieta, minha querida FADIPA, em Jundiaí.  O trecho é um clássico da língua portuguesa: O Monstrengo. E, claro, caprichei no português e na entonação. Tão logo desci do púlpito, FEDERICO levantou-se de plateia e veio ao meu encontro com os olhos marejados, me abraçou e me beijou a testa, dizendo-me que adorava “el sonido” projetado pelo idioma português. Nesse dia nos tornamos amigos.

A “Carta ao Pai” que traduzi abaixo é uma homenagem póstuma de amor, carinho e respeito com a qual, diferentemente da Carta de Kafka, Cristiana e Federico Jr. saudaram a memória de seu falecido pai, Dom FEDERICO GUILLERMO DOMÍNGUEZ.

Ei-la:

Querido Pai: 

Nós, teus filhos, estamos hoje aqui reunidos ao lado de teus amigos e colegas, nesta primeira homenagem póstuma a tua pessoa. Com você bem dizia em muitos dos teus discursos, o agradecimento é o sentimento mais difícil de expressar, ainda mais quando neste ato cabe a nós fazê-lo em teu nome... 

A vida te foi dura, mas você soube ser o melhor dos pais. Foi sempre nosso guia, exemplo de homem a ser seguido, justo, humilde e generoso. Até os teus últimos dias sempre pensava no outro, antes mesmo do que em ti. 

Você foi profissional do Direito por quase 30 anos, mas tua alma seguiu sendo militar. Você soube se destacar pelos teus conhecimentos históricos de tantas batalhas e guerras. As praias da Normandia eram as tuas preferidas, assim como os aniversários do ataque em Pearl Harbor, onde, aliás, você teve a honra de ser convidado especial e de se iluminar vestindo uma camisa havaiana. Mas, convenhamos, te ver sem gravata era algo inusual... 

Você também soube transmitir teus conhecimentos a muitos militares durante estes últimos anos na Colômbia, para onde você era convidado a ministrar cursos de formação às suas forças de elite, ocasião na qual, inclusive, você pôs tua vida em risco devido à proximidade com as zonas de operação das FARC. 

Recordamos também daquele 50º aniversário da libertação de Paris, onde você, também como convidado especial, no afã de cruzar o Arco do Triunfo, acabou por se misturar ao grupo formado pelos veteranos da II Guerra, a ponto de te perguntarem: Monsieur, quel régiment avez-vous cambattu?[2] 

E como esquecer a tua colaboração para evitar o atentado à vida da viúva de Oskar Schindler, a Sra. Emille, à época em que você fazia parte da Secretaria de Segurança da Província de Buenos Aires. 

Em tua mais alta função pública, exercida de maneira vitalícia e durante dezenove indefectíveis anos, representou a máxima instituição jurisdicional penal da Província de Buenos Aires, como Presidente do Tribunal de Cassação Penal.   

Para muitos, você era e seguirá sendo carinhosamente lembrado como o “Presi”. 

Pioneiro da oralidade à época em que exerceu a advocacia, conseguiu alcançar o teu grande sonho: ver implementada a lei de Juicio por Jurados[3] em nossa Província. 

Tampouco esqueceremos quando a Província de Buenos Aires te nomeou “Cidadão Ilustre”, título com o qual contam escassas pessoas em toda a nossa história provincial. 

Ironias desta Argentina ingrata, sua justiça, pela qual você sempre lutou, te fez vítima, pois nos últimos anos você foi perseguindo injustamente. Processado, te privaram arbitrariamente – nem mais, nem menos – do direito de defesa em juízo. Absolvido em três oportunidades, inclusive mediante pedido do Ministério Público, o Estado Argentino te seguiu perseguindo mesmo quando a ação penal já havia fenecido pela prescrição. Mas nela você nunca se refugiou, pois a covardia não existia em teu dicionário

Muitos te viraram as costas, mas com isso você não deve se preocupar. Hoje estamos aqui, ao lado dos teus amigos! 

Teu último adeus esteve floreado com a bandeira de tua pátria de coração, a República da França, que te honrou com a condecoração da Ordem Nacional ao Mérito Civil[4]

E não é por acaso que esta homenagem esteja sendo prestada em Assunção. Foi aqui que na juventude você empreendeu os primeiros passos que te permitiram se tonar advogado. Tampouco é por acaso que a primeira publicação em tua homenagem provenha da Costa Rica, país que alberga a máxima expressão das garantias judiciais. 

As palavras não são suficientes para expressar o orgulho que sentimos por teu exemplo de vida. 

Sentimos tua falta de maneira incomensurável e todos os dias são dias para te aplaudir, mas hoje o é em especial. 

Obrigado por ser nosso PAI. 

E como dizem os ticos[5]: “Pura vida”![6] 

 

Notas e Referências:

[1] Sobre o tema cf. o meu “Ativismo e garantismo no processo civil: apresentação do debate”. Publicado originalmente na Revista MPMG Jurídico, nº 18, out/nov/dez de 2009, pp. 8-15,  publicação oficial do Centro de Estudos do Ministério Público de Minas Gerais. Posteriormente tb na RBDPro 70/83, abr-jun/2010, na Revista da AGU 24/79, e na Revista Jurídica UNUJUS (UNIUBE – Universidade de Uberaba) 13/19, mai/2010. Publicado, ainda, nas coletâneas Ativismo judicial e garantismo processual, coords. DIDER Jr, Fredie, NALINI, José Renato, RAMOS, Glauco Gumerato e LEVY, Wilson, Salvador: Ed. JusPodium, 2013, pp. 273-286, e Processo Civil – Nas tradições brasileira e iberoamericana, coords. FREIRE, Alexandre, DELFINO, Lúcio, OLIVEIRA, Pedro Miranda de, RIBEIRO, Sérgio Luiz de Almeida. Florianópolis : Conceito Editorial, 2014, pp. 222-230. 

[2] Senhor, em qual regimento combateu?

[3] N.T.: Procedimento de “tribunal do júri”, incluído no Código de Processo Penal da Província de Buenos Aires pela Lei provincial nº 14.543, publicada em 27/set/2013. Destaque-se que um dos grandes líderes do movimento em prol da adoção do procedimento de Juicio por Jurados na Argentina é o professor titular de processo penal da Universidad Nacional de La Plata HÉCTOR GRANILLO FERNÁNDEZ, atual presidente do Instituto Pan-americano de Direito Processual (IPDP), além de presidente a Asociación Argentina de Juicio por Jurados.

[4] N.T.: Federico Domínguez foi agraciado com a comenda “Cavalheiro da Ordem Nacional do Mérito”, outorgada pelo Presidente da República da França. Em 06 de outubro de 2005 foi condecorado pelo Embaixador da França na Argentina, Francis Lott.

[5] N.T.: Assim são apelidados os costa-riquenhos. Seria como se referir a um brasileiro com “brasuca”.

[6] N.T.: “Pura Vida” é uma interjeição idiomática da Costa Rica, denotando um sentimento positivo em relação a certas situações, uma saudação ao “bem viver”.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Let the fantasy play with your heart // Foto de: Theo Crazzolara // Sem alterações

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