Coluna ABDPRO
O Garantismo Processual é capaz de arrefecer o ativismo judicial, por isso é preciso compreendê-lo e concretizá-lo.
CARTA DE JUNDIAÍ
Desde a implementação dos direitos sociais nos textos constitucionais, atribuiu-se maior densidade às constituições, de forma a influir diretamente na política governamental; pois, se de um lado, ampliou o catálogo de direitos aos cidadãos com objetivo de criar uma política de bem-estar, de outro, estabeleceu-se o dever do Estado em cumprir, de modo imediato, o programa constitucional.
De acordo com Norberto Bobbio, se no Estado liberal cabia ao Estado apenas proteger as liberdades negativas individuais, dada a neutralização do Judiciário, com o Estado social, passou-se a exigir do poder público condutas positivas no sentido de realizar prestações materiais destinadas à efetivação dos direitos fundamentais.[1]
Daí que, não é incomum, a crendice de que na falta de respostas dos Poderes Políticos, do Poder Judiciário emanará a solução para todos e quaisquer problemas que se apresente no cotidiano social, como uma espécie de salvador dos mais necessitados e oprimidos, um realizador da justiça social.
Partindo dessa concepção simplista e da ideia equivocada de que o processo seria tão somente um instrumento da “prestação jurisdicional adequada e efetiva”, em oportunidade passada, quando desenvolvi minha dissertação do mestrado[2] advoguei contra a demonização do ativismo judicial acreditando, na época, ser viável para a concretização dos direitos fundamentais e defesa da dignidade humana.
Acontece que na época, o pensamento garantista do processo não era estudado na academia e a doutrina era pouco difundida, o que limitou o estudo do processo a concepções instrumentalistas pré-estabelecidas e a conclusões firmadas em premissas equivocadas que posteriormente, em contato com grandes juristas como Lúcio Delfino, Eduardo José da Fonseca Costa e Glauco Gumerato Ramos, foi possível confrontar as ideias já concebidas levando a uma nova compreensão da ciência do processo. É o que se busca demonstrar neste ensaio.
Acerca do tema, segundo Luís Roberto Barroso, na judicialização o Judiciário decide porque é o que lhe cabe fazer, sem alternativa, uma vez que a norma constitucional permite que dela se deduza uma pretensão, subjetiva ou objetiva, cumprindo ao juiz decidir a matéria. Sobre o ativismo judicial, entende se tratar de escolha de um modo específico e proativo de interpretar a Constituição, expandindo o seu sentido e alcance que normalmente se instala em situações de retração do Poder Legislativo, de um certo descolamento entre a classe política e a sociedade civil, impedindo que as demandas sociais sejam atendidas de maneira efetiva”.[3]
Ao justificar o ativismo no atendimento mais efetivo das demandas sociais, a primeira conclusão que se imprime é que juízes para atender aos anseios e necessidades do povo, estariam legitimados a expandir ou até mesmo criar leis para decidir sobre o que é ou não, apropriado e de interesse da sociedade.
Em outras palavras, o fortalecimento e protagonismo do Poder Judiciário e ampliação de sua interferência nos assuntos, tradicionalmente, de competência dos Poderes Legislativos e Executivo, haja vista que diante da omissão do poder público em agir no plano administrativo, estaria autorizado o juiz proativo e criativo. Será?
Pois bem. Não há como falar de judicialização da política e ativismo judicial sem antes afastar a ideia reducionista do processo, que ao fim e ao cabo, se resume na máxima de ser um instrumento a serviço do juiz para a realização do direito material, bem como fazer a necessária distinção entre jurisdição e processo.
Esse arcaico pensamento é superado pela doutrina de Eduardo José da Fonseca Costa ao esclarecer, com propriedade, que jurisdição é a aplicação imparcial do direito, não-criatividade, sob pena do juiz desvirtua-se num legislador sem legitimidade democrática; enquanto o processo, uma garantia do jurisdicionado, uma garantia fundamental de liberdade contrajurisdicional, cujo devido processo legal deve se impor como contenção ao Estado-jurisdição. [4]
Vale ressaltar que o processo não é um instrumento da jurisdição, mas uma instituição de garantia fundamental do cidadão contra os arbítrios decorrentes do poder estatal jurisdicional.[5] Afinal, como poderia o cidadão se opor a ameaças ou violação de direitos legalmente previstos, inclusive quando praticados pelo próprio Estado cujo juiz é agente?
É preciso reconhecer que se de um lado, a Constituição Federal de 1988 trouxe extraordinárias inovações, de outro, promoveu a expansão do Poder Judiciário que pode resultar em perigosa distorção da jurisdição e consequente alteração do Estado de Direito, caso não seja acompanhada de um reforço das garantias constitucionais.[6]
Admitir julgamentos afastados da legalidade, por ato de vontade e subjetivismo do aplicador da lei, significa suprimir todo e qualquer limite da atuação do poder jurisdicional imposto pela cláusula da separação de poderes eliminando a garantia contrajursidicional das liberdades do cidadão.[7]
Por isso, defender a ideia de um ativismo judicial “do bem”, autorizando maior criatividade e discricionariedade das decisões judiciais com participação mais larga e intensa do Judiciário não é, em absoluto, segurança de concretização dos valores e fins constitucionais; do contrário, é adjudicar poder desmedido para adentrar na esfera privada dos cidadãos, inclusive para restringir o exercício de suas liberdades conforme conveniência e oportunidade, o que é completamente inaceitável em uma democracia.
É inconcebível num Estado Democrático de Direito, que juízes e tribunais passem a decidir e agir discrionariamente para dar soluções fora do ordenamento jurídico vigente, pois, como bem leciona o Professor Ronaldo Brêtas de Carvalho Dias, falta-lhes democraticidade constitutiva, uma vez que a legitimidade democrática dos atos praticados pelos órgãos competentes ao exercício da função jurisdicional prestada pelo Estado exige assentamento rigoroso nas normas emanadas da vontade popular, debatidas, votadas e aprovadas pelos representantes das pessoas do povo no parlamento, as quais devem fiscalizá-lo, normas tais que compõem o ordenamento jurídico vigente, após sancionadas pelos governantes eleitos.[8]
Nesta perspectiva, referindo-se à Constituição Federal como “Senhor”, José Joaquim Calmon de Passos leciona que o Juiz está a ele submisso de modo que seus poderes somente podem ser admitidos se compatíveis com o que por ele fora instituído. Se violentar a vontade do Senhor deve ser punido severamente e deslegitimado para julgar.[9]
Nesta linha, esclarecem juristas que o garantismo se contrapõe ao ativismo judicial – protagonizado pela pessoa física exercente do poder jurisdicional – cujas soluções dos problemas que lhes são submetidos emanam de pautas utilitaristas voltadas a saciar o “senso pessoal de justiça” do julgador ou – o que é tão grave quanto – a dar uma espécie de “resposta” ao clamor popular por “justiça” diante de certas situações.[10]
Diante dos problemas envolvendo os poderes políticos, especialmente por não se revelarem suficientemente capazes de proporcionar efetivação dos direitos fundamentais previstos na Constituição, poder-se-ia até afirmar que o Poder Judiciário assumiu a nobre missão de corrigir todos os males que assolam a nação. Inocente conclusão, tal afirmação embora compreensível, é seguramente equivocada.
Como afirmado no início, já se defendeu com vistas a máxima efetividade aos direitos fundamentais, mormente àqueles indispensáveis a dignidade da pessoa humana, a tese de intervenção ativa do Judiciário acreditando ser a forma de remover todos os tipos de barreiras sociais e econômicas.
O problema é que se enveredar por este caminho, é concordar com a desconfiguração das características da Constituição Federal, donde irradia toda legitimidade, ponto de partida para a interpretação de todas as normas do ordenamento jurídico brasileiro. E mais, seria compactuar com decisionismos e arbitrariedades judiciais que nas palavras de Eduardo José da Fonseca Costa, dá surgimento a “bestidades circunjacentes: delegados de polícia fantasiados com toga; assistentes sociais travestidos de juízes; justiceiros e moralistas ditando vereditos.”[11]
Ainda, seria admitir que pessoas não eleitas administrassem o país e determinassem a forma que cada cidadão deva viver, ainda que para tanto, tenham solapadas suas liberdades, realidade inconveniente e inconsequente atualmente vivida.
A partir destas breves reflexões, não há outra conclusão que não seja a urgente necessidade do resgate da ideia de República, cujo único soberano é o povo, o qual deve ser governando por um ente estatal formado de representantes por ele eleitos, investidos nas funções independentes com poderes distintos, assegurando ao cidadão a garantia de se contrapor a todo poder tirânico que atue contra suas liberdades.
Se as falhas e omissões dos poderes políticos acarretam prejuízos sociais, abandonar a segurança jurídica para flertar com o ativismo judicial num momento de desesperança, de modo a conceder poderes ilimitados a agentes do Poder Judiciário, é colocar em risco a democracia e viver em constante perigo, em constante ameaça às liberdades e direito de decidir sobre os rumos da própria vida. Não se pode enganar, ativismo judicial do bem inexiste, trata-se de um projeto de hegemonia dissociado de todo sistema jurídico regido por uma Constituição Federal.
Notas e Referências
[1] Cf. BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campos, 1992, p. 194.
[2] Processo Civil Democrático: humanização do acesso à justiça, São Paulo: Boreal, 2015.
[3] Cf. BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. Disponível em: http://www.plataformademocratica.org/Publicacoes/12685_Cached.pdf: Acesso em: 15 maio 2014.
[4] https://www.eduardojfcosta.com.br/artigos/A-GARANTICIDADE-DOS-PROCESSOS-JURISDICIONAL-ADMINISTRATIVO-E-LEGISLATIVO/
[5] https://www.eduardojfcosta.com.br/artigos/PROCESSO-GARANTIA-DE-LIBERDADE-FREEDOM-E-GARANTIA-DE-LIBERDADE-LIBERTY-/
[6] Cf. Ibidem, p. 232.
[7] Pegini. Adriana Regina Barcellos; Delfino, Lúcio. Processo e liberdade: Estudos em homenagem a Eduardo José da Fonseca Costa. Londrina: Thoth, 2019, p.82-83.
[8] cf. DIAS, Ronaldo Brêtas de Carvalho. Legitimidade dos atos jurisdicionais no Estado Democrático de Direito. VirtuaJus. Belo Horizonte. v. 13. n. 1. 1º sem.-2017, p. 17.
[9] Cf. PASSOS, José Joaquim Calmon de. O magistrado, protagonista do processo jurisdicional? In: MEDINA, José Miguel Garcia; et alii (coord.). Os poderes do juiz e o controle das decisões judiciais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 220.
[10] Em defesa do garantismo, juristas fazem manifesto contra ativismo judicial <https://www.conjur.com.br/2017-ago-29/defesa-garantismo-juristas-fazem-carta-ativismo-judicial>
[11] COSTA, Eduardo José da Fonseca. O processo como instituição de garantia. Revista Consultor Jurídico, 16 de novembro de 2016, 6h52. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2016-nov-16/eduardo-jose-costa-processo-instituicao-garantia>.
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