Coluna ABDPRO
É notório que o Código de Processo Civil de 2015 trouxe mudanças no tratamento da jurisprudência dos tribunais, buscando conferir, principalmente, uma maior coerência, integridade e uniformidade, conforme mencionado no artigo 926, caput. Desta feita, uma parte da doutrina defende que o CPC/2015 inaugurou o chamado “sistema de precedentes”[i] em nosso ordenamento jurídico, criando, inclusive, os chamados “precedentes obrigatórios”, vinculando os tribunais estaduais e de instâncias inferiores às decisões proferidas pelos tribunais superiores.
Nesse sentido, faz-se necessário realizar uma análise crítica sobre o tratamento dos precedentes judiciais no Código de Processo Civil de 2015, observando as implicações da adoção de uma sistemática que impõe decisões judiciais que já “nascem” com status de precedente, o que é uma incongruência, tendo em vista que os genuínos precedentes, na tradição anglo-saxã, são decisões judiciais emanadas de Cortes superiores que possuem o potencial de se tornarem padrões decisórios mas, no entanto, só se tornarão na medida em que a análise dos tribunais inferiores concluir que a tese jurídica do julgado poderá ser utilizada para fundamentar a decisão de casos similares[ii].
Constata-se, portanto, que diferente do que se pretendeu implementar no Brasil, na tradição do common law uma decisão judicial não “nasce” como precedente, mas torna-se na medida em que os juízes dos tribunais inferiores decidirem pela aplicação ou não de tal decisão no caso concreto.
Nesse ínterim, mostra-se fundamental a distinção entre o que é a ratio decidendi da decisão judicial, ou seja, a essência da tese jurídica que é suficiente para decidir o caso concreto, e o obiter dictum, que são os argumentos utilizados pelo magistrado que são prescindíveis para a solução da lide[1]. Essa discussão sobre a distinção entre ratio decidendi e obiter dictum é sempre muito controversa e complexa no sistema common law, bem como é determinante para que uma decisão judicial possa se tornar um precedente.
A pretensão da adoção dos precedentes no Brasil é, por outro lado, muito simplista, afastando-se dessa discussão argumentativa essencial, devido ao fato de que o objetivo de implantação desse “sistema de precedentes” é a redução da alta taxa de litigância repetitiva no país, através da criação de padrões decisórios vinculantes, ou seja, precedentes à brasileira que nascem “obrigatórios”.
A interpretação superficial do artigo 927, bem como a noção incongruente de precedente judicial, que nada tem a ver com o precedente genuíno do sistema jurídico anglo-saxão, proporciona uma falsa solução para o problema de demandas repetitivas e da segurança jurídica no Brasil, pois cria um sistema de subsunção e não de integridade e coerência do direito, como pretende o artigo 926 do CPC/2015 e a teoria de Ronald Dworkin.
Cabe ressaltar, também, que mesmo no sistema common law os precedentes judiciais e os costumes estão subordinados à legislação. No caso concreto, portanto, a situação jurídica controversa é solucionada através da aplicação da lei à qual o precedente se reporta, ou seja, é a lei que fixa a norma de conduta às partes, não o precedente. Desta forma, mostra-se completamente desarrazoado o tratamento conferido às súmulas e decisões dos tribunais superiores no Brasil como de status superior ao da própria legislação[iii].
Tal problema se materializa em decisões judiciais como o acórdão proferido pelo STJ, no julgamento do REsp 1.704.520/MT[iv] – o qual estabeleceu que o rol das hipóteses de interposição de recurso de agravo de instrumento (art. 1.015 do CPC) admite interpretação extensiva e, portanto, possui a natureza de “taxatividade mitigada” – onde um flagrante violação do que está expressamente disposto em lei torna-se uma decisão jurídica que já nasce com o caráter de padrão decisório obrigatório a ser seguido pelos tribunais.
Sobre o tema, pudemos observar em outra oportunidade que a padronização decisória inaugurada pelo CPC/2015 ensejou a possibilidade de que haja a fixação de teses que rompem com a própria coerência e integridade do ordenamento jurídico pátrio – os chamados “gaps”[v]. No caso do REsp 1.704.520/MT, a discussão jurídica girava entorno da possibilidade de realizar uma interpretação extensiva do inciso III do art. 1.015 do CPC, o qual prevê que é cabível recurso de agravo de instrumento contra decisão interlocutória que versar sobre “rejeição da alegação de convenção de arbitragem”, de forma permitir o cabimento do supracitado recurso na hipótese em que a decisão interlocutória versar sobre “competência” para julgamento da causa.
Naquela oportunidade entendeu o Superior Tribunal de Justiça que o rol do art. 1.015 do CPC teria natureza de “taxatividade mitigada” pois, apesar de admitir interpretação extensiva, apenas admite-se na hipótese em que restar constatado urgência e risco de inutilidade do julgamento da questão a posteriori. Os principais argumentos utilizados pelo STJ na ocasião de fixação da tese foram o fato de que o rol do art. 1.015 do CPC se mostra insuficiente na prática forense e, também, no temor de que o remédio constitucional do mandado de segurança venha a ser utilizado de forma indiscriminada contra decisões interlocutórias, como alternativa à insuficiência do supracitado rol.
Nada obstante, constata-se, inclusive através da leitura do supracitado acórdão, que fora uma intenção do Poder Legislativo a limitação das hipóteses de interposição do recurso de agravo de instrumento e, dessa forma, apenas seria possível a mudança no art. 1.015 através de iniciativa legislativa. Ademais, observa-se que a tese fixada se fundamenta em conceitos totalmente abstratos, quais sejam, a “urgência” e a “inutilidade do julgamento da questão no recurso de apelação”, de forma a ensejar a abertura de um gap, isto é, uma lacuna (quebra de continuidade) na interpretação o art. 1.015 do CPC.
Desta feita, ao fundar-se em conceitos abstratos, a tese fixada promove, também, insegurança jurídica, uma vez que não fica determinado de pronto quais questões são realmente “urgentes” e que, caso não venham a ser recorridas em sede de decisão interlocutória, poderão vir a precluir.
Com efeito, verifica-se também que a interpretação extensiva, da forma como fora feita pelo STJ, ocorrera de forma equivocada, uma vez que interpretação extensiva deve se limitar a incluir no conteúdo da norma um sentido que já a pertencia, mas não fora constado de forma expressa pelo legislador[vi]. Esta técnica não é observada no caso em tela, visto que existe uma distinção crucial entre os conceitos de “arbitragem” e “competência”, razão pela qual não se mostra razoável equipará-los. Nesse sentido, observa-se que a jurisdição possui natureza jurídica de “poder-dever”, ao passo em que a competência delimita o exercício deste poder[vii], motivo pelo qual é impossível admitir a interpretação extensiva do inciso III do art. 1.015 do CPC da forma como configurada pelo STJ.
Como se não bastasse o acórdão do REsp 1.704.520/MT, o STJ decidiu, em julgado recente referente ao Tema 1022 (REsp 1.717.213/MT[viii] ), pela mitigação ainda maior do rol do artigo 1.015 do CPC, de forma a fixar a tese de que é cabível agravo de instrumento contra todas as decisões interlocutórias proferidas nos processos de recuperação judicial e nos processos de falência, por força do parágrafo único do supracitado dispositivo.
O principal fundamento desta tese é o de que há um regime recursal diferenciado, a ser aplicado às decisões interlocutórias proferidas nas fases de liquidação e cumprimento de sentença, no processo de execução e nas ações de inventário (parágrafo único do art. 1.015), tendo em vista que nestes procedimentos e fases processuais nem sempre haverá interposição de recurso de apelação, o que ensejaria na impossibilidade de rediscussão a posteriori da questão objeto de interlocutória. Ademais, aduziu-se, também, que as decisões proferidas nestas fases procedimentais e processos costumeiramente possuem altíssima invasividade e gravidade, tendo em vista que podem vir a ser praticados atos judiciais de índole satisfativa como, por exemplo, penhora ou expropriação de bens, dentre outros, o que torna relevante a possibilidade de recurso destas interlocutórias.
Nada obstante, é factível constar, ao analisar as teses fixadas pelo STJ, a usurpação de um poder criativo que não pertence ao Poder Judiciário, mas, sim, ao Poder Legislativo, sendo manifesta a existência de ativismo judicial na medida em que o judiciário procura “solucionar” um problema que não conta com uma solução adequada por parte do legislativo[ix]. Desta forma, é visível a afronta ao devido processo constitucional legislativo.
Nesse sentido, é imperioso destacar que, conforme Marcelo Cattoni:
O processo legislativo situa-se em um nível discursivo em que argumentos de grande generalidade e abertura são acolhidos, e, na verdade, funcionam como pontos de partida para a construção do discurso jurídico, inclusive do doutrinário, do jurisprudencial e do administrativo. Assim, a “participação em simétrica paridade”, dos possíveis afetados pelo provimento legislativo, no procedimento que o prepara, garantido pelo princípio constitucional do contraditório, é possibilidade de participação na discussão política, mediada processualmente e não necessariamente atual e concreta. (CATTONI DE OLIVEIRA, 2006, p. 142)[x]
Sendo assim, não há uma solução imediata para possíveis problemas no texto legislativo que poderão vir a ser legitimamente solucionadas através de decisões judiciais que fixam teses gerais e abstratas, muitas vezes contrárias ao próprio sentido da lei, sob pena de ser constatar um claro ativismo judicial que afronta diretamente a ordem constitucional do Estado Democrático de Direito.
Portanto, o respeito ao devido processo constitucional, sobretudo o legislativo, é a única forma de se promover a integridade e coerência do ordenamento jurídico pátrio. Destarte, todo e qualquer detentor de poder político só pode vir a exercê-lo na medida da sua competência, devendo se sujeitar à responsabilização social na hipótese de se faltar com este dever, pois, nas palavras de Calmon de Passos:
(...) só é o Estado de Direito Democrático aquele em que as entidades e órgãos responsáveis pelo exercício do poder político, nos limites de sua competência, submetem-se a recíprocos controles, com vistas à atuação tanto quanto possível harmônica, sem prejuízo de sua autonomia (ausência de vínculos hierárquicos) nunca independência (ausência de responsabilidade), o que também vale para o Judiciário, não apenas para o Legislativo e para o Executivo. Donde ser negação do Estado de Direito Democrático toda organização da função jurisdicional que se mostre em desacordo com essas exigências fundamentais. (PASSOS, 1920, p. 92)[xi]
Ademais, em que pese a presença do contraditório diferenciado[xii] na sistemática de julgamento dos recursos repetitivos, esta não substitui, de longe, o devido processo legislativo de forma a ensejar a alteração de um dispositivo normativo, tal qual o art. 1.015 do CPC.
Sendo assim, é imperioso concluir que, no Estado Democrático de Direito, considerando as conquistas processuais garantistas, inclusive através da Constituição de 1988, é de interesse de toda a sociedade que seja a lei um produto de um procedimento realizado em contraditório, ampla defesa e em simétrica paridade, de forma a oportunizar que qualquer do povo possa fiscalizar o processo constitucional legislativo[xiii].
Logo, tendo em vista que o contraditório diferenciado não permite de forma plena este controle, uma vez que a participação é restrita àqueles com capacidade postulatória, bem como observando que os provimentos jurisdicionais não se dão com a mesma publicidade que o processo legislativo realizado pelo Congresso Nacional, é factível constatar que a fixação de teses que provocam alterações legislativas, tal qual a da “taxatividade mitigada”, são um flagrante desrespeito ao devido processo constitucional legislativo.
Notas e Referências
[i] Sobre o tema recomenda-se a leitura de ROSSI, Júlio César. Precedente à brasileira. São Paulo: Atlas, 2015.
[ii] STRECK, Lenio. ABBOUD, Georges. O que é isto – o precedente judicial e as súmulas vinculantes? 3ª edição. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2015. p. 46.
[iii] Lenio Luiz; RAATZ, Igor; MORBACH, Gilberto. Da complexidade à simplificação na identificação da ratio decidendi: será mesmo que estamos a falar de precedentes no Brasil? Revista Jurídica Unicuritiba. Curitiba, v. 01, nº 54, 2019
[iv] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.704.520 – MT (2017/0271924-6). Min Rel. Nancy Andrighi. DJe: 19/12/2018. Disponível em:<https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1731786&num_registro=201702719246&data=20181219&formato=PDF>. Acesso em 11. mai. 2021.
[v] FERREIRA, Débora Fernanda. BORGES, Fernanda Gomes e Souza. Precedentes judiciais e padrões decisórios: da integridade e coerência ao “gap” da taxatividade mitigada do rol do artigo 1.015 do Código de Processo Civil. Revista Eletrônica de Direito Processual – REDP. Rio de Janeiro, a. 15, v. 22, n. 1, jan./abr., 2021.
[vi] FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 8ª ed. São Paulo: Atlas, 2015. p. 260
[vii] 8 STRECK, Lenio Luiz; SOUSA, Diego Crevelin. No STJ, taxatividade não é taxatividade? Qual é o limite da linguagem? In: Revista Consultor Jurídico. São Paulo: 07. ago. 2018. Disponível em: < https://www.conjur.com.br/2018-ago-07/stj-taxatividade-nao-taxativa-qual-limite-linguagem#_ftn4> Acesso em 11. mai. 2021.
[viii] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.717.213 – MT (2018/0000155-6). Min. Rel. Nancy Andrighi. DJe: 10/12/2020. Disponível em: < https://processo.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=201800001556&dt_publicacao=10/12/2020>. Acesso em 11. mai. 2021.
[ix] RAMOS, Glauco Gumerato. Ativismo e garantismo no processo civil: apresentação do debate. Revista MPMG Jurídico. Belo Horizonte, nº 18, out./nov./dez. de 2009. p. 9.
[x] CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Devido processo legislativo. Belo Horizonte: Mandamentos, 2006.
[xi] PASSOS, José Joaquim Calmon de. Direito, poder, justiça e processo: julgando os que nos julgam. Rio de Janeiro: Forense, 2000.
[xii] Sobre o tema, recomendamos a leitura de CÂMARA, Alexandre Freitas. Levando os padrões decisórios a sério. 1. Ed. São Paulo: Atlas, 2018.
[xiii] DEL NEGRI, André. Controle de Constitucionalidade no Processo Legislativo – Teoria da legitimidade democrática, p. 148.
Imagem Ilustrativa do Post: Albert V Bryan Federal District Courthouse – Alexandria Va – 0011 – 2012-03-10 / // Foto de: Tim Evanson // Sem alterações
Disponível em: https://www.flickr.com/photos/timevanson/6830726558
Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode