Coluna ABDPRO
A mídia impressa já apresentava ao cidadão, a par de sua imprescindibilidade no que diz respeito à livre informação no viés da liberdade de expressão, certa insegurança nos casos em que determinada pessoa tivesse sido investigada, condenada ou mesmo passado por determinada situação que pudesse, no caso de veiculação ampla pelos veículos de imprensa, causar constrangimento e danos ao sujeito reportado.
Com o desenvolvimento da tecnologia, a mídia acabou por migrar para o âmbito digital, sendo que na atualidade a via materializada subsiste pela perseverança de pequena parcela da sociedade que continua a consumir o material impresso.
Diante da referida transposição, o alcance da informação chegou a lugares anteriormente inacessíveis, em uma velocidade sem precedentes. Notícias que antes demandavam dias para se propagar, hoje necessitam de segundos para chegar não mais a todos os Estados brasileiros, mas sim aos quatro cantos do globo, ainda mais com a contribuição das redes sociais.
Não obstante a velocidade adquirida pelos veículos de comunicação na utilização da mídia digital ser um ponto positivo quando o assunto é a difusão da informação, os efeitos colaterais dessa mesma agilidade se mostram ainda mais devastadores.
Isto se dá, muitas vezes, pela corrida na prestação da informação. É que, sendo o meio informático uma verdadeira “selva” para os veículos de imprensa, onde se dá melhor aquele que antes publica determinada matéria, não é crível que se aguarde, em algumas situações, a apuração de determinados fatos para uma melhor ambientação da edição a ser disponibilizada na rede mundial de computadores.
De fato, atualmente, as notícias ultrapassam fronteiras, e o acesso às informações, com a informatização, tornou-se instantânea em um mundo globalizado, conectado e digital.
Isso tudo leva a situações em que pessoas investigadas ou condenadas criminalmente, ou mesmo com outro tipo de envolvimento comprometedor, acabam sendo expostas, muitas vezes de forma puramente sensacionalista (com o único intuito de gerar visualizações), em poucos segundos perante toda a comunidade.
Em uma única oportunidade jornalística pode-se, sem qualquer pudor, devastar a vida pública e/ou privada de alguém, sem sequer lhe ofertar o direito à defesa prévia.
Ocorre que, apesar da contemporaneidade de determinadas afirmações já gerar a responsabilidade do veículo emissor, determinadas notícias passaram a ser repostadas ad eternum. E essa presença perene da notícia virtual, mesmo quando abusiva, não seria alcançada e nem teria seus efeitos mitigados, de forma prática e eficiente, por qualquer meio de responsabilização ao infrator. A constante visualização fácil da notícia renova, a cada visita que recebe por terceiros, o sofrimento daquele que lá está sendo exposto.
Por conta disso, elaborou-se a teoria do denominado direito ao esquecimento, que se apresenta como o direito inerente ao ser humano de não permitir (ou fazer cessar) que um fato, mesmo que verídico, que tenha ocorrido em determinada circunstância ao longo de sua vida, seja exposto ao público em geral, causando-lhe, por isso, sofrimento ou transtornos. [2]
Em outras palavras, tem-se, pela teoria em espeque, o direito do cidadão de não ser lembrado, contra sua vontade, sobre determinada situação pretérita. Ele possui o direito de ser esquecido pela sociedade e retomar a regular marcha de sua vida, de forma a minorar os reflexos de acontecimentos passados.
Por essa conceituação, a teoria do direito ao esquecimento também pode ser identificada como o “direito de ser deixado em paz” ou mesmo de o “direito de estar só”.[3]
Tem-se a ideia que tal desejo, seja no que diz respeito aos fatos criminais anteriores, ou sobre os fatos outros pretéritos, deveria ser acolhido por meio do direito ao esquecimento. Entretanto, a jurisprudência brasileira vem demonstrando certo dissenso na pacificação do referido entendimento, sobretudo após recente julgado do Supremo Tribunal Federal, como se passa a verificar.
1. Normas constitucionais e federais aplicáveis no embate entre o direito à informação e à honra e imagem da pessoa.
É certo que, quando se tem uma discussão acerca do direito à informação e à violação de direitos personalíssimos, tem-se, via de consequência, um embate entre dois valores constitucionalmente protegidos, quais sejam a liberdade de expressão do pensamento e o direito à honra e à imagem.
Nesse âmbito, sabe-se que a Constituição da República garante, em seu art. 5º, a liberdade de expressão, consagrando, expressamente, que “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”, e que “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”.
O art. 220, da Carta Constitucional, ainda estabelece que “a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição”, sempre observando as normas constantes na própria declaração do povo.
De uma simples análise histórica e revolvimento literário do que consta da Constituição, é fácil perceber que o constituinte tinha como clara a intenção de assegurar o livre pronunciamento de ideias, de notícias, de pensamentos, extinguindo-se, em definitivo, toda a repressão e censura existente em demasia quando dos tristes anos de ditadura militar.
E não sem razão, diga-se de passagem, necessário se fez e se faz criar regras do mais alto gabarito capazes de inviabilizar o retrocesso social a capítulos tão degradantes de nossa história.
No entanto, é pacífico no cenário jurisprudencial dos tribunais superiores, que direito algum, ainda que constitucionalmente assegurado, é absoluto e incondicional.
O constitucionalista Pedro Lenza, ao tratar das características dos direitos fundamentais, enfatiza que não há se falar no absolutismo dos direitos fundamentais, eis que, muitas vezes, há, no caso concreto, embate direto de interesses, e que muitas vezes a própria Constituição oferta a solução, ou deixa tal tarefa ao interprete, para que este decida qual direito há de prevalecer diante da observância dos direitos fundamentais envolvidos diante de uma conjugação de uma mínima restrição:
“(...) os direitos fundamentais não são absolutos (relatividade) havendo, muitas vezes, no caso concreto, confronto, conflito de interesses (...) a solução ou vem discriminada na própria Constituição (ex.: direito de propriedade versus desapropriação), ou caberá ao intérprete, ou magistrado, no caso concreto, decidir qual direito deverá prevalecer, levando em consideração a regra da máxima observância dos direitos fundamentais envolvidos, conjugando-se com a sua mínima restrição”.[4]
Ou seja, diante de um confronto entre as garantias constitucionais que colidem no caso de publicações jornalísticas danosas à pessoa, tem-se que a liberdade de expressão não é ilimitada, afigurando-se imperioso sopesá-la com outros direitos constitucionalmente garantidos, dentre os quais se enquadra o indispensável e inviolável direito à honra e à imagem (privacidade/intimidade).
Com efeito, o inciso X, do art. 5º, da Carta Maior, estabelece a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas, assegurando o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.
Como já dito, em casos de violação da honra e imagem da pessoa por publicações jornalísticas, ter-se-á um claro conflito de normas constitucionais – o direito de liberdade de expressão (art. 5º, IX, da CF) em choque com o direito à honra e à imagem (art. 5º, X, da CF).
Em casos tais, a solução para o conflito repousa no princípio da ponderação. Em outras palavras, os princípios devem ser analisados dentro do contexto no qual se colidem, proferindo-se uma decisão de resultado satisfatório na qual prevaleça aquele que, caso tolhido, causaria maiores traumas e resultados mais penosos a serem suportados.
A propósito, o legislador contemporâneo fez incluir o critério da ponderação no caso de colisão de normas no Novo Código de Processo Civil, em seu art. 489, § 2º.[5]
Na visão do Ministro Alexandre de Morais, havendo conflito entre dois ou mais direitos fundamentais, deve-se utilizar o princípio da concordância prática ou da harmonização, de forma a coordenar ou combinar os bens conflituosos, evitando-se, assim, o sacrifício total de um em relação ao outro. A ideia do ilustre constitucionalista pretoriano é aplicar, em casos de conflito de normas fundamentais, justamente um juízo de proporcionalidade (redução proporcional do âmbito de alcance de cada garantia):
“(...) quando houver conflito entre dois ou mais direitos e garantias fundamentais, o intérprete deve utilizar-se do princípio da concordância prática ou da harmonização de forma a coordenar ou combinar os bens jurídicos em conflito, evitando o sacrifício total de uns em relação aos outros, realizando uma redução proporcional do âmbito de alcance de cada qual (contradição dos princípios) sempre em busca do verdadeiro significado da norma e da harmonia do texto constitucional com sua finalidade precípua.”[6]
Rui Stoco, precisamente sobre o choque de princípios constitucionais, defende que nem a pessoa tem o direito absoluto de não ter sua imagem divulgada por outrem, e nem a imprensa tem o direito inequívoco de violar a intimidade e a privacidade das pessoas, ou mesmo divulgar imagens e notícias sem assumir suas consequências:
“(...) nem a pessoa humana tem direito absoluto de não ter sua imagem divulgada, nem a imprensa tem o direito absoluto de invadir a intimidade e a privacidade das pessoas ou divulgar imagens e notícias sem perquirir suas consequências. (...) é a relatividade desses direitos que estabelece o ponto de equilíbrio e estabelece as balizas e limites além dos quais se ingressa no campo do abuso do poder, convertendo o ato legítimo no antecedente em ilegítimo no consequente pelo desbordamento do seu exercício (...)”.[7]
O Superior Tribunal de Justiça, ao enfrentar a mitigação da garantia da liberdade de expressão, fixou o entendimento, quando do julgamento do Recurso Especial nº 1.334.357/SP, de Relatoria do Ministro Ricardo Vilas Boas, que “a garantia constitucional de liberdade de manifestação do pensamento não é absoluto”. A Corte ainda foi além, dizendo que o exercício da liberdade de manifestação do pensamento “encontra limite no dever de respeito aos demais direitos e garantias fundamentais também protegidos”, dentre os quais fora destacada a inviolabilidade da honra das pessoas.[8]
Importante fixar, para o melhor desenvolvimento do trabalho, que essa exegese, mesmo após o julgamento da ADPF nº 130, que deu por não recepcionada a Lei de Imprensa, continuava a ser aplicada pelos tribunais em uma leitura de que, mesmo com a plena liberdade de expressão, ainda assim seria necessário ter ponderação e bom senso para analisar casos em que a veiculação da informação gera ofensa à honra e à imagem.
Exemplo de que tal premissa continuou a ser aplicada, foi o julgamento da Reclamação nº 9.428/DF, através da qual o STF confirmou que não ofende a autoridade do acórdão proferido na ADPF nº 130, a decisão que, proibindo a jornal a publicação de fatos relativos ao autor de ação inibitória, se fundou, de maneira expressa, na inviolabilidade constitucional de direitos da personalidade, notadamente o da privacidade, mediante proteção de sigilo legal de dados cobertos por segredo de justiça.[9]
Tem-se, na apreciação de tais normas, hipótese clara de eficácia horizontal das garantias fundamentais constitucionalmente asseguradas.
Para além da ampla regulamentação constitucional, o direito material trouxe, nos artigos 186 e 187, do Código Civil, regra segundo a qual comete ato ilícito, causando danos a outrem, o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social.
De forma a trazer para a hipótese em análise, comete ato ilícito quem veicula reportagem excessivamente danosa à honra e à imagem de determinada pessoa.
Diante da evolução social alcançada pela informatização das comunicações e ambientações virtualizadas, editou-se a recente Lei nº 12.965/15 (Marco Civil da Internet), tendo o legislador feito incluir, em seu art. 7º incisos I e X, o direito à inviolabilidade da intimidade e da vida privada daqueles que acessam a rede mundial de computadores.
Em uma intepretação textual e sistemática da legislação civil latu sensu, baseando-se no teor do que dispõe o art. 21, do Código Civil,[10] diante de situação de violação frontal à honra e à imagem no âmbito informático, tem-se o dever do Estado Juiz de tomar as providencias necessárias para fazer cessar o ato danoso, por meio de determinação da exclusão do conteúdo da rede mundial de computadores.
Em norma específica, o Marco Civil da Internet reforça, em seu art. 19, caput e § 1º, que deve ser determinada a indisponibilidade do conteúdo ofensivo da internet, desde que o postulante se desincumba do ônus de apresentar, perante o juízo, o URL (uniform resource locator) da respectiva publicação.
De acordo com a legislação pertinente e a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça,[11] para que seja determinada a indisponibilidade do conteúdo, claro, desde que comprovado o efeito danoso, basta que seja apresentado o respectivo URL.
Daí, a legislação pátria é capaz de justificar, por meio da ponderação de princípios e garantias constitucionais, e aplicação da regra civil positivada, o resguardo da honra e imagem contra publicações ofensivas e danosas já publicadas.
Nota-se, ainda, que não se busca, com a ponderação dos direitos em espeque, tolher o trabalho dos órgãos de imprensa, até mesmo porque não há censura prévia, eis que, por uma questão de lógica, só se verifica a existência de violação à honra e à imagem de alguém quando a notícia já tiver sido veiculada e estiver disponível para juízo de valor.
O que se perquire é, na verdade, coibir excessos, consubstanciados nas publicações de dados e fatos inverídicos ou danosos (ainda que verdadeiros), mas que possuem o condão de mobilizar a opinião pública contra a pessoa reportada.
Nesse âmbito, acerca da obrigação de fazer (retirada de reportagens danosas do ar), o entendimento do Superior Tribunal de Justiça repousa no sentido de que, se já houve a verificação da abusividade das publicações (se o dano já foi verificado), não constitui censura prévia a imposição da exclusão do conteúdo violador.[12]
O que o STF vedou, ao julgar a ADPF nº 130, foi a censura prévia, ao passo que afirmou que os direitos da personalidade incidem em momento posterior como forma de responsabilização por eventuais abusos cometidos pelo gozo do direito à liberdade de expressão.
Dessa forma, tem-se que o STF – de forma vinculante, nos termos do art. 927, I, do CPC – definiu que o Direito à Liberdade de Expressão garante a qualquer pessoa dizer aquilo que bem entender, sem qualquer censura.
Entretanto, também é claro que, aqueles que forem ofendidos pelo transbordamento do livre exercício do direito à liberdade de expressão, possuem o direito de fazer cessar o abuso, como forma de resguardar, a posteriori, a força normativa do também constitucionalmente assegurado direito à honra e à imagem.
2. Teoria do direito ao esquecimento.
O direito ao esquecimento como teoria tomou maior proporção, na atualidade, com o paradigmático julgamento, pelo Tribunal de Justiça Europeu, de um caso onde um cidadão espanhol (M. Costeja González) promoveu ação contra o Google In., com o intuito de impedir que pesquisas realizadas de seu nome o vinculasse a páginas de internet que contivessem reportagens que o ligassem a dívidas fiscais (situação por ele anteriormente vivenciada).
Diante do referido caso, a Corte Europeia declarou que a atividade dos mecanismos de busca na internet consiste em encontrar informações publicadas ou disponibilizadas online por terceiros, indexando-as automaticamente. Entendeu, ainda, que essa atividade é denominada processamento de danos e, quando tratar-se de informações de cunho pessoal, pode haver significativa afetação aos direitos fundamentais ligados à privacidade da pessoa.
Nessa linha, o Tribunal Europeu fixou o entendimento segundo o qual o operador de mecanismos de busca é obrigado a remover os links de páginas de internet e demais informações, publicadas por terceiros e contendo dados pessoais relativos a uma pessoa, resultante da pesquisa ligada ao seu nome.
Ou seja, segundo a Corte do velho continente, é possível que as informações sejam removidas ainda nas hipóteses de publicação lícita e precisa, eis que, com o decurso do tempo, estas mesmas informações podem vir a se tornar inadequadas e irrelevantes.[13]
Na França, a título comparativo, o droit à l’oubli garante a qualquer cidadão que tenha sido condenado por um crime e cumprido integralmente sua pena, o direito ao esquecimento correlacionado ao direito à reabilitação perante a sociedade. Não é permitido, portanto, a publicação eterna de notícias sobre o fato que o condenou.
Já no cenário jurídico brasileiro, por tratar-se de assunto da mais alta relevância na atualidade, sobretudo pelo impacto que os novos meios de comunicação podem causar sobre os indivíduos, a tese do direito ao esquecimento acabou por ser consolidada por meio do Enunciado nº 531, do CJF/STJ, segundo o qual, em uma interpretação do art. 11, do Código Civil, “a tutela da dignidade da pessoa humana na sociedade da informação inclui o direito ao esquecimento”.
Nota-se que a relevância da questão estava interligada à tutela da dignidade da pessoa humana, que, segundo Ingo Wolfgang Sarlet, é a qualidade intrínseca e distintiva de cada pessoa que o faz merecedor de isonômico respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade. Há, nesse contexto, a implicação de um complexo de direito e deveres fundamentais capazes de resguardar as pessoas contra atos de cunho degradante, desumano e vexatório. O escopo é garantir condições mínimas existenciais para uma vida digna e saudável.[14]
O Superior Tribunal de Justiça chegou ao ponto de conceituar o direito ao esquecimento como “o direito de não ser lembrado contra sua vontade, especificamente no tocante a fatos desabonadores, de natureza criminal, nos quais se envolveu”.[15]
A Corte Cidadã, ao julgar o Recurso Especial nº 1.334.097/RJ, afirmou que o direito ao esquecimento é essencial a sinalizar a evolução cultural da sociedade, conferindo concretude a um ordenamento jurídico que, entre a memória e a esperança, fez-se opção pela segunda, sendo por essa ótica que a referida teoria revela sua maior nobreza, pois se afirma, na verdade, como um direito à esperança em sintonia com a presunção legal e constitucional de regenerabilidade da pessoa humana.
Não obstante estar praticamente pacificado o entendimento no sentido de que não se pode compelir os provedores de internet diretamente a retirar do ar notícias danosas, eis que, teoricamente, eles apenas hospedam a ordem de terceiros as matérias (diferentemente do que entendeu a Corte Europeia),[16] segundo o Superior Tribunal de Justiça, pode-se determinar que o autor da informação a torne indisponível, eis que não pode o reportado ser obrigado a relembrar situação vergonhosa, vexatória ou danosa contra sua vontade, de forma a rebaixar sua honra e imagem perante a opinião pública.[17]
Zilda Mara Consalter[18] e René Ariel Dotti,[19] elevam a teoria em estudo ao nível de um direito fundamental, eis que decorre dos direitos constitucionais à intimidade e à privacidade, assim como da dignidade da pessoa humana, sendo que para os autores, o direito ao esquecimento está assegurado nos artigos 11 e 21, do Código Civil brasileiro. Tais normas, ao aduzirem que os direitos da personalidade são intransmissíveis, irrenunciáveis e insuscetíveis de limitação voluntária, além de que a vida privada é inviolável, trazem a ideia de que o Poder Judiciário, se provocado, deve adotar as providencias cabíveis a impedir ou fazer cessar os atos lesivos e danosos.
Por sua vez, o Supremo Tribunal Federal, por maioria, em uma “quase” reviravolta jurisprudencial, ao julgar recentemente o Recurso Extraordinário nº 1.010.606/RJ, fixou o entendimento de ser, a teoria do direito ao esquecimento, incompatível com a Constituição Federal, sendo que eventuais abusos no exercício da liberdade de expressão e de informação devem ser analisados caso a caso.
A razão de decidir do Tribunal Máximo veio no sentido de que a ideia de que um direito ao esquecimento possa impedir, em razão da passagem do tempo, a divulgação de fatos ou dados verídicos em meios de comunicação, seria incompatível com a norma constitucional. E, havendo excessos ou abusos no exercício da liberdade de expressão e de informação, estes devem ser analisados caso a caso, com base em parâmetros constitucionais e na legislação penal e civil.
O pleito recursal apreciado pela Corte de teto versava sobre a possibilidade de familiares de uma vítima de um crime de grande repercussão nos anos de 1950 buscarem reparação pela reconstituição do caso, em 2004, no programa televisivo “Linha Direta” da TV Globo.
Segundo o voto da Ministra Carmen Lúcia, não haveria como extrair do sistema jurídico brasileiro, de forma genérica e plena, o esquecimento como um direito fundamental capaz de limitar a garantia de liberdade de expressão, “e, portanto, como formar de coatar outros direitos à memória coletiva”.
A referida julgadora, ao analisar a questão posta, fez referência ao direito à verdade histórica no âmbito do princípio da solidariedade entre gerações, o que a fez considerar não ser juridicamente possível que uma geração negue a próxima o direito de saber a sua história.
Por sua vez, o Ministro Dias Toffoli, ao proferir seu voto, defendeu a ideia de ponderação entre as garantias constitucionais, afirmando, em outras palavras, que a liberdade de expressão é um direito de relevância ímpar, “ligado ao exercício de franquias democráticas”. Segundo o Ministro, “enquanto categoria, o direito ao esquecimento só pode ser apurado caso a caso, em uma ponderação de valores, de maneira a sopesar qual dos direitos fundamentais (a liberdade de expressão ou os direitos de personalidade) deve ter prevalência”.
O Ministro Gilmar Mendes, ao votar pelo parcial provimento do Recurso Extraordinário, acompanhando a divergência instaurada pelo Ministro Nunes Marques, ao fundamentar suas razões nas garantias à intimidade e à vida privada, entendeu que a exposição humilhante ou vexatória de dados, da imagem ou do nome é indenizável, mesmo que exista interesse público, histórico e/ou social na informação.
Segundo Gilmar Mendes, em hipóteses tais, em que há embate entre normas constitucionais de igual hierarquia, faz-se necessário examinar pontualmente qual delas deve prevalecer. Não haveria, assim, como criar uma regra geral.
Ponderando a questão então sub judice, o Ministro Luiz Fux salientou que o direito ao esquecimento decorre do princípio da dignidade da pessoa humana, e, quando há confronto entre valores constitucionalmente assegurados, é preciso eleger a prevalência de um deles. Segundo a sua ótica, o direito ao esquecimento pode ser aplicado. Porém, sendo os fatos noticiados notórios e de domínio público, não há se falar no esquecimento.
Dessa forma, o Supremo Tribunal Federal fixou a seguinte tese:
“É incompatível com a Constituição Federal a ideia de um direito ao esquecimento, assim entendido como o poder de obstar, em razão da passagem do tempo, a divulgação de fatos ou dados verídicos e licitamente obtidos e publicados em meios de comunicação social – analógicos ou digitais. Eventuais excessos ou abusos no exercício da liberdade de expressão e de informação devem ser analisados caso a caso, a partir dos parâmetros constitucionais, especialmente os relativos à proteção da honra, da imagem, da privacidade e da personalidade em geral, e as expressas e específicas previsões legais nos âmbitos penal e cível”.
Assim, segundo o entendimento superior ora vigente, tem-se que não é compatível com a Constituição um direito ao esquecimento vinculado unicamente ao decurso do tempo. Porém, é possível que a referida teoria seja aplicada de acordo com o caso concreto, na hipótese em que a violação aos direitos e garantias fundamentais restar patente, e os fatos reportados não sejam notórios e/ou tenham caído no domínio público.
3. Um adequado posicionamento?
Na ponderação[20] entre as garantias constitucionalmente asseguradas do direito à livre expressão e à honra e à imagem, como visto no presente estudo, a prática tem mostrado que estas tendem a prevalecer em detrimento daquelas, ainda que direitos de igual valor.
Por sua vez, a teoria do direito ao esquecimento surgiu como uma ferramenta específica a reger situações em que não há interesse na divulgação de certos fatos capazes de danificar a honra e a imagem da pessoa.
Porém, a regra geral recentemente traçada pelo Supremo Tribunal Federal segundo a qual o direito ao esquecimento não pode se adequar ao fator tempo, data vênia, não parece a mais adequada, principalmente pelo ideal social de superação e readequação das pessoas à sociedade após a quitação de suas obrigações penais.
Inviabilizar o direito ao esquecimento pelo transcurso do tempo seria o mesmo que perpetuar os efeitos de uma condenação, eis que o condenado jamais se verá livre e capaz de se reinserir, efetivamente, na sociedade com a consciência de que está, de fato, quite com seu débito.
Por tal razão, temos que o entendimento do Superior Tribunal de Justiça se mostra o mais adequado em casos tais, sendo que o direito ao esquecimento não demanda regra geral, como fixou o STF, mas sim uma análise pontual caso a caso, de forma a evitar o afastamento da garantia à honra e imagem pelo fato de ser, o direito à livre expressão, teoricamente insuperável.
Viabilizar o direito ao esquecimento é imprescindível na atualidade, principalmente porque, como bem pontua Zilda Mara Consalter, vivemos em um mundo que suscita e provoca o resgate da memória a todo o momento. Nele, as pessoas são submetidas a permanente exposição de fatos e atos pretéritos, dando-se a impressão de que é até pecaminoso esquecer algo.[21]
Não se defende que seja o direito ao esquecimento absoluto. Pelo contrário, é necessário que seja feito um juízo de ponderação no caso concreto, entre a liberdade de expressão e os direitos à imagem e à honra, tendo-se sempre em vista a dignidade da pessoa humana.
Contudo, há situações em que a pessoa tem o direito de ser esquecida até mesmo como um instrumento à sua reinserção na sociedade, como no caso do cidadão que foi absolvido no processo penal ou teve a pena atingida pela prescrição.
A propósito, no caso criminal o art. 202, da Lei de Execuções Penais[22] é o fundamento para o esquecimento do condenado ou absolvido, eis que dispõe ser sigilosa qualquer informação que diga respeito ao processo ou à condenação do apenado.
Por tais motivos, de forma a dar mais dinâmica à teoria, filiando-nos, apenas em parte, ao posicionamento do Min. Luiz Fux, temos que, caso a informação noticiada tenha relevância história, como no caso dos crimes nazistas, prevalecerá o direito à informação, eis que, caso esqueçamos tais atrocidades, assumimos o risco de repeti-las.
Entretanto, tratando-se de crimes de caráter particular e pontual, deve prevalecer o direito à honra e à imagem (privacidade/intimidade), como no caso de um crime passional pelo qual o condenado já tenha cumprido a pena, até mesmo porque, segundo o próprio Supremo Tribunal Federal, o bom nome, a reputação, a imagem, o decoro, a autoestima e a dignidade de qualquer pessoa merecem a proteção da lei e da Constituição.[23]
O próprio Ministro Gilmar Mendes, defende em sua obra constitucional que, se a pessoa e o fato deixaram de atrair notoriedade, desaparecendo, dessa forma, o interesse público, há de se deixar de lado. Esse entendimento deve ser aplicado, por exemplo, nos casos de quem já cumpriu pena criminal e necessita reajustar-se à sociedade. Teria esse sujeito o direito de não ver repassados ao público em geral os fatos que o levaram ao cárcere.[24]
Enfim, parece-nos que a tese fixada pelo STF foi inoportuna, na medida em que tenta generalizar num campo onde esse critério não cabe. Demais disso, a própria tese, tal como redigida – e se interpretada à luz dos fundamentos usados para sua construção (art. 489 § 3º CPC[25] – teoria dos motivos determinantes[26]) – leva à percepção de que o direito ao esquecimento subsiste, desde que não seja vinculado, única e exclusivamente, ao fator “passagem do tempo”. Isso significa que diversas situações, como a exposição permanente de quem não tem papel relevante na história, podem atrair o direito ao esquecimento. Não se trataria aí apenas do fator tempo, mas também de considerar a irrelevância da perpetuação da notícia, ante uma ponderação entre o direito à intimidade e o (des) interesse da sociedade.
4. Conclusão.
O impulsionado desenvolvimento das mídias informatizadas, interligado à facilidade e disponibilidade no acesso à informação, trouxe consigo significativa apreensão jurídica no que diz respeito a possíveis afrontas às garantidas à privacidade, à imagem e à honra.
Surgiu, nesse cenário, um conflito entre o direito de livre expressão dos órgãos de imprensa, e as garantias à honra e imagem da pessoa reportada.
O direito ao esquecimento nasce para apaziguar e fazer cessar a exposição de situações vexatórias, humilhantes e degradantes à pessoa, por ter sido obrigada a reviver, de tempos em tempos, passagens de sua vida contra a sua vontade.
Em outros termos, o direito ao esquecimento seria aquele que o sujeito possui de não permitir que um fato, ainda que verídico ocorrido no passado seja exposto intempestivamente ao público, por lhe causar sofrimento, e por inflamar a opinião pública contra si.
A doutrina e jurisprudência vêm se debruçando sobre a teoria em estudo, sendo certo que ainda não há um entendimento pacífico e abrangente acerca do tema.
O recente posicionamento do Supremo Tribunal Federal, por pretender criar um regramento geral, não nos parece o mais adequado diante de princípios do mais alto gabarito como a dignidade da pessoa humana.
Temos que se faz necessário um estudo pontual caso a caso, de forma a evoluir a teoria sem a criação de resultados petrificados, mas sim elásticos e funcionais (deve-se buscar uma adequação moldável do direito ao esquecimento ao caso concreto sub judice).
O tempo servirá a dizer, com mais clareza, o real alcance da teoria do direito ao esquecimento, bem como se o fator tempo deve, por si só, afastar sua aplicabilidade, ou se este é apenas um dos elementos a ser apreciado no julgamento caso a caso.
Notas e Referências
CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Principais julgados do STF e STJ comentados. Manaus: Dizer o Direito, 2014.
DOTTI, René Ariel. O direito ao esquecimento e a proteção do habeas data. In: WANBIER, Teresa Arruda Alvim (Coord.). Habeas data.
LENZA, Pedro. Direito Constitucional esquematizado. 14ª edição. 2010.
MENDES, Gilmar. Direito Constitucional. 1ª ed., São Paulo: Saraiva, 2007.
MORAIS, Alexandre de. Curso de Direito Constitucional. 14 ed. São Paulo: Atlas, 2003.
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2020.
STOCO, Rui. Tratado de Responsabilidade Civil - 5ª Edição – 2001 – fls. 245/246.
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA E A RECONSTRUÇÃO DO DIREITO PRIVADO – Coordenação Ana Frazão, Gustavo Tepedino. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais.
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. HC nº 256.210/SP, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, 6ª Turma, 13/12/2013.
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. REsp 1629255/MG, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, 3ªT, DJe 25/08/2017.
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Recurso Especial nº 1.334.357/SP, Rel. Min. Ricardo Vilas Boas Cueva, 06/10/2014.
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Recurso Extraordinário nº 356.756/RJ, Decisão monocrática, Rel. Min. Britto, 18/12/2009.
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Reclamação nº 9.428/DF.
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Recurso Extraordinário nº 1.010.606/RJ.
[1] NOGUEIRA, Luiz Fernando Valladão. Advogado. Procurador do Município de Belo Horizonte. Professor Universitário. Coordenador de Pós-Graduação em Direito Processual Civil. Autor de obras jurídicas, dentre elas “Recurso Especial” (5ª Ed., ed. Del Rey) e “Recursos e Procedimentos nos Tribunais no CPC (6ª ed., ed. D’Plácido).
DAMASCENO, Israel Felipe Martins. Advogado. Mestre em História do Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa – PT. Pós-graduado em Processo Civil pela PUC – MG. Pós-Graduado em História do Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa – PT. Pós-Graduado em Direito Privado Romano pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa – PT. Professor universitário.
[2] CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Principais julgados do STF e STJ comentados. Manaus: Dizer o Direito, 2014.
[3] No Direito norte-americano, a teoria recebeu o nome de “the right to be alone” e em países de língua espanhola, de “derecho al alvido”.
[4] LENZA, Pedro. Direito Constitucional esquematizado. 14ª edição. 2010. Página 742.
[5] Art. 489. § 2º No caso de colisão entre normas, o juiz deve justificar o objeto e os critérios gerais da ponderação efetuada, enunciando as razões que autorizam a interferência na norma afastada e as premissas fáticas que fundamentam a conclusão.
[6] MORAIS, Alexandre de. Curso de Direito Constitucional. 14 ed. São Paulo: Atlas, 2003.
[7] STOCO, Rui. Tratado de Responsabilidade Civil - 5ª Edição – 2001 – fls. 245/246.
[8] Resp. 1.334.357/SP, Rel. Min. Ricardo Vilas Boas Cueva, 06/10/2014.
[9] STF – Reclamação nº 9.428/DF.
[10] Art. 21. A vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma.
[11] REsp 1629255/MG, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, 3ªT, DJe 25/08/2017.
[12] SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA E A RECONSTRUÇÃO DO DIREITO PRIVADO – Coordenação Ana Frazão, Gustavo Tepedino. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. p. 29.
[13]http://curia.europa.eu/juris/document/document.jsf;jsessionid=9ea7d0f130dc1b1e25843231441691a0d06b54e75bc4.e34KaxiLc3eQc40LaxqMbN4Pb3yLe0?text=&docid=152065&pageIndex=0&doclang=ES&mode=lst&dir=&occ=first&part=1&cid=688379
[14] SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2020. p. 60.
[15] STJ – HC nº 256.210/SP, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, 6ª Turma, 13/12/2013.
[16] STJ – Recurso Especial nº 1.316.921/RJ, Rel. Ministra Nancy Andrighi, 26/06/2012.
[17] STJ – Recurso Especial nº 1.334.097/RJ, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, 28/05/2013.
[18] CONSALTER, Zilda Mara. Direito ao esquecimento: proteção da intimidade e ambiente virtual. p. 275.
[19] DOTTI, René Ariel. O direito ao esquecimento e a proteção do habeas data. In: WANBIER, Teresa Arruda Alvim (Coord.). Habeas data. p. 372.
[20] Art. 489, § 2º, do CPC.
[21] CONSALTER, Zilda Mara. Direito ao esquecimento: proteção da intimidade e ambiente virtual. p. 170.
[22] Art. 202. Cumprida ou extinta a pena, não constarão da folha corrida, atestados ou certidões fornecidas por autoridade policial ou por auxiliares da Justiça, qualquer notícia ou referência à condenação, salvo para instruir processo pela prática de nova infração penal ou outros casos expressos em lei.
[23] STF: Recurso Extraordinário nº 356.756/RJ, Decisão monocrática, Rel. Min. Britto, 18/12/2009.
[24] MENDES, Gilmar. Direito Constitucional. 1ª ed., São Paulo: Saraiva, 2007. p. 347.
[25] Art. 489 3º A decisão judicial deve ser interpretada a partir da conjugação de todos os seus elementos e em conformidade com o princípio da boa-fé.
[26] Informativo nº 886/STF – ADI’s 3.406 e 3.470 (reconhecimento da teoria da Transcendência dos Motivos Determinantes pelo Supremo Tribunal Federal).
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