ABDPRO #170 - O STF e a monocratização decisória: o episódio da ADI 6764[1]  

31/03/2021

Coluna ABDPRO

O ´olho da lei` – que promete a onipresença do direito, a igualdade perante a lei e o domínio da lei em vez do domínio dos homens – é o símbolo da objetividade do direito em face da dupla subjetividade do poder e da clemência.

Michael Stolleis.

Recentemente (23/3/2021), o Ministro Marco Aurélio, em decisão monocrática, extinguiu com fundamento no art. 4º da Lei 9868/99[2] (=inépcia) a ADI 6764 proposta pelo Chefe do Poder Executivo Federal na qual impugnava atos produzidos pelos Governadores de unidades da federação.

Independentemente do mérito da ação direta de inconstitucionalidade, o fato é que a decisão unipessoal do Ministro do STF contraria uníssona jurisprudência da Corte.

O fundamento jurídico para o rechaço preliminar da ação foi, em síntese, o de que embora o Presidente da República possua legitimidade ativa para a propositura de ação direta de inconstitucionalidade, seria impróprio confundi-la com a capacidade postulatória[3], exigindo-se a intermediação do Advogado-Geral da União.

Não cabe aqui tergiversar sobre “legitimidade processual” e “capacidade postulatória”. Evidentemente que são institutos diversos com pressupostos, características, incidências e consequências autônomas, notadamente no campo da procedimentalística civil.

Todavia, no âmbito da fiscalização em abstrato de constitucionalidade, o fato é que a legitimidade processual do Presidente da República advém da própria dicção do art. 103, I da CF/88[4]. Leva-se em conta não só a envergadura político-institucional que envolve a jurisdição constitucional, mas também a eventual atenção e responsabilidade diretamente externada pelo Chefe do Poder Executivo Federal na causa, o que dispensaria, inclusive, a intermediação postulatória do Advogado-Geral da União, o qual terá a oportunidade de manifestação nos termos do art. 10, §1º da Lei 9868/99[5].

É assente na jurisprudência do Tribunal que aos detentores dessa espécie de legitimidade ativa universal (=sequer necessitam demonstrar pertinência temática/interesse de agir) é garantida a postulação em nome próprio[6] (=para agir no interesse da Administração) questionando a higidez de texto normativo impugnado e sobre o qual sustenta-se a existência de vício de inconstitucionalidade.

Evidentemente que o STF não está obrigado a manter ad eternum seu posicionamento institucional (=insistir na manutenção da jurisprudência que não se mostra adequada ao caso concreto), mas, por certo, em sendo situação diversa ou mesmo hipótese de sinais de evolução ou cambiamento da compreensão em relação ao tema, deve, necessariamente, constituir o novo entendimento por meio da chancela de um quórum majoritário[7], no bojo da qual se produza uma decisão em que, necessariamente, enfrentam-se os fundamentos para a superação do entendimento até então vigente na Corte.

Não se mostra adequado e nem mesmo possui suporte legal (=sequer regimental) uma guinada de compreensão sobre uma mesma temática de forma monocrática e sem dialogar com a uníssona jurisprudência fixada sobre o tema, desde 1996, pelo órgão pleno do Tribunal.

Ademais, mesmo que admitamos – por hipótese – a necessidade de o legitimado ativo fazer-se representar por procurador, revela-se prematuro o decreto extintivo sem ao menos permitir a “regularização da capacidade postulatória”, fixando-se, para tanto, prazo. Isto se adequa perfeitamente às disposições do art. 3º, parágrafo único da Lei 9868/99[8] c.c. art. 76 do CPC[9]. A solução conferida à ADI pelo Ministro Relator é a um só tempo arbitrária e se qualifica como decisão-surpresa à medida que (i) nega ao legitimado ativo a possibilidade de supressão da irregularidade formal, quando o STF possui entendimento consolidado de se permitir correções através de emenda à inicial[10] e, (ii) a decisão se escorou em fundamento sobre o qual o autor não obteve oportunidade de se manifestar previamente (=ex ante).

Portanto, seja pela possibilidade de sanação do “vício”, seja pela impropriedade técnico-jurídica de se decidir monocraticamente sobre tema cuja resposta o Tribunal já firmou e reafirmou colegiadamente em sentido diametralmente oposto em mais de uma oportunidade, o ato proferido na ADI 6764 revela-se inadequado, violador do devido processo legal e do contraditório (CF, art. 5º, LIV e LV).

Decisões sobre matérias enfrentadas pelo órgão máximo do Tribunal, especialmente no bojo de ações de controle concentrado e abstrato de constitucionalidade não podem sofrer impactos desse jaez, não devem romper com a cadeia jurisprudencial sedimentada há anos, sem que, para tanto, sejam objeto de amplo debate com o indispensável enfrentamento das “nuances” típicas do caso vis-à-vis com o entendimento até então consolidado sobre a matéria.

Em tempos nos quais se busca a mera efetividade quantitativa da jurisdição, hipertrofiam-se decisões monocráticas e, por vezes, de alta carga subjetivista, revela-se imprescindível cuidar para que os perigos que rondam a insegurança e instabilidade jurídicas não sejam o efeito colateral deletério de tais posturas.

 

Notas e Referências

[1] Agradeço a Eduardo José da Fonseca Costa pelo diálogo, sugestões e observações críticas feitas na minuta preambular desta breve artigo.

[2] Art. 4o A petição inicial inepta, não fundamentada e a manifestamente improcedente serão liminarmente indeferidas pelo relator.

[3] Esse entendimento do Ministro já se encontrava expresso na ADI 2906, ao tratar da legitimidade do Governador de Estado: “Descabe confundir a legitimidade para a propositura da ação direta de inconstitucionalidade com a capacidade postulatória. Quanto ao Governador do Estado, cuja assinatura é dispensável na inicial, tem-na o Procurador-Geral do Estado” (DJe 01/6/2011).

[4] Não há na Constituição Federal e em nenhuma norma específica que rege o processo constitucional a exigência de que o Presidente da República seja representado por procurador para alçar a jurisdição constitucional com o intuito de promover a fiscalização de conformidade de lei ou ato normativo ao Texto Maior.

[5] Art. 10. Salvo no período de recesso, a medida cautelar na ação direta será concedida por decisão da maioria absoluta dos membros do Tribunal, observado o disposto no art. 22, após a audiência dos órgãos ou autoridades dos quais emanou a lei ou ato normativo impugnado, que deverão pronunciar-se no prazo de cinco dias. § 1o O relator, julgando indispensável, ouvirá o Advogado-Geral da União e o Procurador-Geral da República, no prazo de três dias.

[6] Destacamos, entre outros, os seguintes julgados: ADI 120, Rel. Min. Moreira Alves, Pleno, DJ 26/4/1996; ADI 127, Rel. Min. Celso de Mello, Pleno, DJ 04/12/1992, ADI 2098, Rel. Min. Ilmar Galvão, Pleno, DJ 19/4/2002, ADPF 33, Rel. Min. Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, DJ 27/10/2006, ADI 4409, Rel. Min. Alexandre de Moraes, Pleno, DJe 23/10/2018.

[7] É o que se espera em havendo o recurso na forma do art. 4º, parágrafo único, da Lei 9868/99 contra a decisão aqui comentada.

[8] Art. 3o A petição indicará: (...); Parágrafo único. A petição inicial, acompanhada de instrumento de procuração, quando subscrita por advogado, será apresentada em duas vias, devendo conter cópias da lei ou do ato normativo impugnado e dos documentos necessários para comprovar a impugnação

[9] Art. 76. Verificada a incapacidade processual ou a irregularidade da representação da parte, o juiz suspenderá o processo e designará prazo razoável para que seja sanado o vício.

[10] Entre outras, destaque-se: ADI 4298, Rel. Min. Cezar Peluso, Tribunal Pleno, DJ 27/11/2009. A mesma solução é encontrada no controle de fiscalização abstrata exercido pelo Tribunal Constitucional Português, conforme art. 51 da Lei 28/1982: “1 - O pedido de apreciação da constitucionalidade ou da legalidade das normas jurídicas referidas nos artigos 278.º e 281.º da Constituição é dirigido ao Presidente do Tribunal Constitucional e deve especificar, além das normas cuja apreciação se requer, as normas ou os princípios constitucionais violados.  (...). 3 - No caso de falta, insuficiência ou manifesta obscuridade das indicações a que se refere o n.º 1, o Presidente notifica o autor do pedido para suprir as deficiências, após o que os autos lhe serão novamente conclusos para o efeito do número anterior”.

 

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