Coluna ABDPRO
Como amicus da Corte que sou, desde sempre, novamente chamo a atenção para um problema que tem acometido o Direito brasileiro, que é saber o que vincula em uma decisão judicial.[1] Em outras palavras, é juridicamente adequada a distinção precedente vinculante e persuasivo?[2]
Trago como exemplo, uma decisão do STF,[3] da lavra do Min. Celso de Mello, que reflete um conjunto de decisões no mesmo sentido, na qual se discutia o cabimento de reclamação (CPC, arts. 988-993) que tratava de desrespeito do Presidente do Colégio Recursal Cível e Criminal da comarca de São José dos Campos/SP à legislação infraconstitucional, bem assim a autoridade da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da RCL 2.453/MG,[4] Rel. Min. AYRES BRITTO, além de supostamente haver transgredido o enunciado constante da Súmula 640/STF”[5].
Em síntese, o Min. Celso de Mello afastou a hipótese de reclamação ao ratificar alguns pontos debatidos de há muito por mim em terra brasilis, a saber:
Ausência de efeito vinculante do Enunciado da Súmula 640 do STF impede que a parte o utilize “como fundamento juridicamente idôneo e processualmente apto a viabilizar a adequada utilização do instrumento constitucional da reclamação (Rcl 6.165-MC/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.).”.
Seguindo outras decisões do próprio STF, o Min. Celso de Mello ratificou o entendimento de que a referida Súmula enuncia “jurisprudência consolidada e predominante de uma Corte judiciária – constitui mera proposição jurídica, destituída de caráter prescritivo, que não vincula, por ausência de eficácia subordinante, a atuação jurisdicional dos magistrados e Tribunais inferiores”. Continua o Min. Celso de Mello: “A Súmula, em consequência, não se identifica com atos estatais revestidos de densidade normativa, não se revelando apta, por isso mesmo, a gerar o denominado ‘binding effect’, ao contrário do que se registra, no sistema da ‘Common Law’, por efeito do princípio do ‘stare decisis et non quieta movere’, que confere força vinculante ao precedente judicial”.
Esclarece-se que o enunciado de súmula aponta para o sentido a ser aplicado pelas demais instâncias, sendo que o precedente (CPC, art. 926, IV, §2º) se circunscreve aos casos concretos que possibilitaram a edição do enunciado de súmula. No Brasil, de acordo com o CPC, o precedente significa decisão de Tribunal Superior e não se confunde com o enunciado de súmula ou com a jurisprudência.[6]
Nessa linha, "no Direito, um precedente, instituto tradicional e típico dos países sob o common law, é uma decisão judicial pretérita que acaba por ter relevância em casos subsequentes, servindo de referência na decisão desses casos".[7]
A estrutura do precedente no common law, em regra, é dual, pois composta pela ratio decidendi ("enunciado jurídico a partir do qual é decidido o caso concreto") e pelo obiter dictum (apontamentos presentes na decisão judicial, "cujo conteúdo e presença não se apresentam como condição de possibilidade para a solução final da demanda").[8]
Por isso, o precedente espelha a história hermenêutica na qual uma determinada instituição (no caso Tribunal Superior) expressa ao longo do tempo o modo como o Tribunal Superior erigiu o fundamento que levou ao resultado decisório. Repita-se, um precedente se torna precedente e não já é precedente pelo simples fato de a decisão de um caso concreto ter sido proferida pelo Tribunal Superior.
A autoridade de um precedente enquanto precedente – a precedential significance –, ainda que seja prática e não só teórica – isto é, ainda que o precedente passa a ser ‘direito posto’ – é também engendrada pela atividade interpretativa dos tribunais subsequentes. Esse é o busílis ignorado por teses ‘precedentalistas’, que fazem um positivismo clássico, à la Hobbes, versão tribunalícias: auctorictas facit ‘precedente’.
Dito de outro modo: não é a autoridade do Tribunal Superior que torna uma decisão judicial um precedente, e sim a utilização para o futuro da ratio decidendi de uma decisão A que é replicada em casos concretos B, C, D, etc., desde que estes casos possuam idêntica faticidade jurídica que permite, em nome da coerência, estabilidade, integridade (CPC, art. 926, caput) e isonomia, receber a mesma decisão A. Definitivamente, o CPC brasileiro não instituiu o stare decisis em sentido forte em nosso país. Afinal, e sobretudo em se tratando de um sistema de civil law, o que é vinculante num precedente não é “o precedente”, mas é a lei a que se refere o precedente. O ‘precedente’ é um padrão, claro, que deverá ser ‘observado’ – e isso diz o código, e diz já por si mesma a exigência de isonomia, de coerência e integridade –, mas o que vincula é a lei. O precedentalismo forte não se sustenta nem no ordenamento, nem na ‘família’, nem na lógica própria do direito brasileiro.
Dessa maneira, o Min. Celso de Mello, na referida reclamação, não considera que o fato de vinculação das decisões judiciais é a ratio decidendi e não a jurisprudência, o enunciado de súmula e o precedente em si. Noutros termos, a ratio decidendi que se extrai do Enunciado 640 da Súmula do STF ou de qualquer decisão jurídica vincula qualquer Tribunal ou Colégio Recursal de Juizado Especial Cível, Criminal ou Federal.
Isso porque a vinculação de um julgado a outro advém do princípio "(elemento justificador, que evidencia a questão jurídica como um problema não de técnica ou de funcionalidade, mas de moralidade substantiva) (...) Vinculará — além de que é o novo caso que dirá o que do caso anterior é só obiter dictum e o que é ratio decidendi e, inclusive, o que este último significa para a solução atual do caso".[9] A “genuína ratio decidendi vai se estabelecendo e aclarando com o devir interpretativo em função dos futuros casos".[10]
A ratio decidendi, no common law ou em nosso sistema jurídico, não pode ser compreendida como a "ratio de um caso a uma tese generalizante, enunciada pelo tribunal previamente com esse fim".[11] "Um precedente — ou seja, o nome que se dê a um enunciado com pretensão generalizante — não nasce para vincular. Ele obriga contingencialmente (dimensão da integridade)".[12] Precedentes, o nome já diz, não são teses prospectivas. O passado importa, mas não antecipa o futuro. Não há respostas antes das perguntas, diz a boa hermenêutica. E a teoria do direito não escapa dela.
Nesse contexto que se afigura inadequado divisar decisões judiciais em descritivas (p.ex. Enunciado 640 da Súmula do STF) e prescritivas (p.ex: aquelas advindas de súmulas vinculantes, de decisões de recursos extraordinários com repercussão geral, de decisões em controle concentrado de constitucionalidade, de decisões de recurso especial repetitivo, etc.), como posto no julgado acima, até porque esta distinção descrição/prescrição não faz sentido em uma perspectiva de teoria do direito não positivista, como sustento de há muito, pois hermeneuticamente toda descrição já é, em si, uma prescrição. Não existe um grau zero de sentido e tampouco um ponto do qual se descreve o mundo (e o Direito).
Como afirmou Pablo Malheiros, ao decidir um caso concreto, o que vincula em uma decisão é a ratio decidendi que, por isonomia, deve ser aplicada em qualquer caso concreto no Brasil por qualquer tribunal”.[13]
Tem razão o Min. Celso de Mello ao afirmar no referido julgado que a Súmula não é, em si, norma jurídica, porém, assenta que ela é “decisão sobre normas, na medida em que exprime – no conteúdo de sua formulação – o resultado de pronunciamentos jurisdicionais reiterados sobre o sentido, o significado e a aplicabilidade das regras jurídicas editadas pelo Estado”.
Súmula é texto e a norma jurídica se extrai do caso concreto confrontado com o texto da Súmula ou de lei, etc., por isso, a pretensão generalizante do texto sumular de qualquer espécie jamais conseguirá abarcar a faticidade jurídica em sua completude, a tornar sempre necessária a compreensão do fenômeno que emerge do caso concreto, confrontá-lo com o texto para daí explicitar a norma jurídica daí resultante.
Percebe-se que temos muito a caminhar para superar os obstáculos epistemológicos de compreensão do fenômeno no qual se insere a decisão judicial, mormente quando falamos de precedentes no Brasil. Estou como sempre estive à disposição para dialogar e auxiliar na correta interpretação deste fenômeno tão relevante para o Direito.
Ademais, é urgente que falemos sobre “o que é isto – um precedente” e, “afinal, tese é precedente?” Se “tese” é precedente (vinculante), temos então um modo muito particular de “precedentalização”. O que se está fazendo é criar “precedentes” (ao modo de “teses”) para decidir casos no futuro. Isso, salvo engano, é legislar. E fere a divisão de poderes.[14] Fere coerência e integridade, fere a própria ideia de um precedente, já até em seu sentido semântico mesmo. O que é isto – um precedente? Definitivamente, não é uma tese pronta que nasce para vincular. Até porque sem um caso concreto, não há que se falar em precedente. Como fazer distinguishing sem... caso!? Como diferenciar o que não existe? A dogmática até pode fazer conceitos sem coisas, mas o direito só o é em sua facticidade.
Ainda: se “tese” é precedente, por que há tantas teses sobre assuntos similares ou por vezes sobre o mesmo assunto? Na verdade, a “precedentalização” tem nome: realismo jurídico (que é uma forma de positivismo) – o direito é aquilo que os Tribunais dizem que é. Como bem assinalou Mathias Jestaedt,[15] toda a vez que o tribunal constrói direito novo e se substitui ao próprio legislador, está-se diante de um “positivismo jurisprudencialista”. Bem, isso ele disse para a Alemanha. E o que diria sobre o Brasil? Esse 7 a 1 é nosso.
Notas e Referências
[1] Agradeço ao meu grupo de pesquisa Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos, que durante os últimos anos tem me apoiado no aprofundamento dessa questão “o que é isto – o precedente”: Gilberto Morbach, Giancarlo Coppeli, Isadora Ferreira, Ziel Ferreira Lopes, Igor Raatz, Willian Dietrich, Rafael Tomas de Oliveira, Luisa Giuliani, Gionana Dias, Frederico Pessoa, Felipe Phlip, Clarissa Tassinari, Emerson Lima Pinto, Maicon Crestani, Marcelo Lemos, Marco Antonio da Silva, Guilherme Zanchet Pietro Lorenzoni, Pablo Malheiros, além de associados do pós-doutorado.
[2] Recentemente Pablo Malheiros criticou esta distinção em texto que indico para reflexão. MALHEIROS DA CUNHA FROTA, Pablo. Diário de Classe. Precedente vinculativo e persuasivo e a ratio decidendi. Revista eletrônica (COJUR). Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-fev-13/diario-classe-precedente-vinculativo-persuasivo-ratio-decidendi Acesso em 04mar.21.
[3] STF - Rcl 42529. Rel. Min. Celso de Mello. DJ-e de 20.08.2020.
[4] “O Supremo Tribunal Federal sedimentou o entendimento de que os acórdãos proferidos pelas Turmas Recursais dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais, quando versantes sobre matéria constitucional, comportam impugnação por meio de apelo extremo - Súmula 640/STF. Exatamente por essa razão é que a jurisprudência desta colenda Corte também rechaça a obstância, na origem, de agravo de instrumento manejado contra decisão que inadmite recurso extraordinário. Precedentes. Reclamação julgada procedente para determinar a remessa do agravo de instrumento a esta egrégia Corte, uma vez que somente ao Supremo Tribunal Federal compete decidir se esse recurso é passível de conhecimento.
[Rcl 2.453, rel. min. Ayres Britto, P, j. 23-9-2004, DJ de 11-2-2005.]”
[5] Enunciado da Súmula 640 do STF: “É cabível recurso extraordinário contra decisão proferida por juiz de primeiro grau nas causas de alçada, ou por turma recursal de juizado especial cível e criminal”.
[6] STRECK, Lenio. Artigo 489. FREIRE, Alexandre (Coord. Exec.); NUNES, Dierle; CARNEIRO DA CUNHA, Leonardo; STRECK, Lenio (Coords). Comentários ao código de processo civil. São Paulo: Saraiva. Edição do Kindle, item 2.10.
[7] STRECK, Lenio. Precedentes. Dicionário de hermenêutica: 50 verbetes fundamentais de acordo com a crítica hermenêutica do direito. 2.ed. Belo Horizonte: Letramento, 2021, p. 360-367.
[8] STRECK, Lenio. Artigo 489., item 2.10.
[9] STRECK, Lenio. Precedentes judiciais e hermenêutica: o sentido da vinculação no CPC/2015. 3.ed. Salvador: Juspodivm, 2021, p. 36 e 77.
[10] STRECK, Lenio. Precedentes judiciais e hermenêutica: o sentido da vinculação no CPC/2015., p. 95.
[11] STRECK, Lenio. Precedentes., p. 360-367.
[12] STRECK, Lenio. Artigo 489., item 2.10.
[13] MALHEIROS DA CUNHA FROTA, Pablo. Diário de Classe. Precedente vinculativo e persuasivo e a ratio decidendi.
[14] Importante trazer aqui, nesse sentido, meu Precedentes judiciais e hermenêutica: O sentido da vinculação no CPC/2015 (Juspodivm, 2019).
[15] JESTAED, Mathias. Verfassungsgericht Positivismus. Die Ohnmacht des verfassung gesetzgebers im verfassungsgerichtlichen Jurisdiktionsstaat. Nomos und Ethos. Hommage an Josef Isensee zum 65. Geburtstag von seinen Schülern. Mit Frontispiz (Schriften zum Öffentlichen Recht; SÖR 886) Gebundene Ausgabe – 2002, Duncker & Humblott, Berlin, 2002. p. 183-228.
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