Coluna ABDPRO
Ao Dr. Claudiovir Delfino,
Com carinho, respeito e admiração
I
Em textos anteriores, tenho demonstrado que, num ambiente republicano, para cada poder do Estado deve haver as respectivas garantias, que protejam os indivíduos e que, em consequência, limitem o poder (por todos, v. Processo, jurisdição e república... <https://cutt.ly/ofiYCCt>). Ou seja, onde há previsão de poder titularizado pelo Estado, ali deve haver previsão de contrapoder correlato em favor do cidadão. a) Ao poder de legislar correspondem as garantias constitucionais contralegislativas (as «limitações constitucionais ao poder de legislar», que formam a garantística contralegislativa) [ex.: controle de constitucionalidade, proporcionalidade, razoabilidade, mandado de injunção]. b) Ao poder de tributar - espécie do poder de legislar - correspondem as garantias constitucionais contraexacionais (as «limitações constitucionais ao poder de tributar», que formam a garantística contraexacional) [ex.: capacidade contributiva, anterioridade, vedação do confisco, imunidades de impostos]. c) Ao poder geral de administrar correspondem as garantias constitucionais contra-administrativas (as «limitações constitucionais ao poder de administrar», que formam a garantística contra-administrativa) [ex.: eficiência, moralidade, legalidade, licitação, concurso público]. d) Ao poder de desapropriar correspondem as garantias constitucionais contraexpropriatórias (as «limitações constitucionais ao poder de desapropriar», que formam a garantística contraexpropriatória) [ex.: justa e prévia indenização em dinheiro na desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social; imunidades contraexpropriatórias, para fins de reforma agrária, da propriedade produtiva e da pequena e média propriedade rural]. e) Ao poder de investigar correspondem as garantias constitucionais contrainvestigatórias (as «limitações constitucionais ao poder de investigar», que formam a garantística contrainvestigatória) [ex.: inviolabilidade domiciliar; sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas; inadmissibilidade da prova ilícita; proibição de tortura]. f) Ao poder de judicar correspondem as garantias constitucionais contrajurisdicionais (as «limitações constitucionais ao poder de judicar», que formam a garantística contrajurisdicional) [ex.: processo ou «devido processo legal», advocacia, contraditório, ampla defesa, juiz natural, imparcialidade, presunção de inocência, motivação, reclamação ao CNJ, reclamação às ouvidorias de justiça]. g) Ao poder de punir correspondem as garantias constitucionais contrapunitivas (as «limitações constitucionais ao poder de punir», que formam a garantística contrapunitiva) [ex.: irretroatividade in pejus da lei penal, retroatividade in mellius da lei penal, individualização da pena, vedação de penas cruéis, respeito à integridade física e moral]. h) Ao poder de controle migratório correspondem as garantias constitucionais contramigratórias (as «limitações constitucionais ao poder de controle migratório», que formam a garantística contramigratória) [ex.: asilo político, inextraditabilidade de estrangeiro por crime político ou de opinião]. i) Ao poder de reformar a Constituição - «poder constituinte derivado» - correspondem as garantias constitucionais contrarreformadoras (as «limitações constitucionais ao poder de reformar a Constituição», que formam a garantística contrarreformadora) [ex.: irreformabilidade na vigência de estado de sítio; reformabilidade só por proposta de, no mínimo, um terço dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal; vedação de proposta de emenda tendente a abolir a forma federativa de Estado]. j) Aos poderes específicos do Ministério Público correspondem as garantias constitucionais contraministeriais (as «limitações constitucionais aos poderes ministeriais», que formam a garantística contraministerial) [ex.: reclamação ao CNMP, mandado de segurança, habeas corpus]. E na Constituição se preveem vários outros poderes, a que correspondem invariavelmente as respectivas garantias contrapotestativas. Mesmo que não haja previsão constitucional expressa de garantia, garantia implícita ou atípica sempre há de haver. Só não pode haver poder implícito. Tampouco poder sem garantia e, desse modo, incontrastável (sobre a vedação de poder implícito e a permissão de garantia implícita, v. nosso Notas para uma garantística. <https://cutt.ly/Iff5w7H>). É o PRINCÍPIO DA UBIQUIDADE DAS GARANTIAS.
II
No entanto, é sempre necessário pormenorizar as garantias no plano infraconstitucional. Afinal de contas, as minudências estrutural e funcional de uma garantia de liberdade não cabem na extrema concisão constitucional. Não cabem, enfim, nos sucintos dispositivos sobre direitos fundamentais de primeira dimensão ou geração (as chamadas «liberdades civis e políticas»). Por conseguinte, resta à lei stricto sensu explicá-las, destrinçá-las, desdobrá-las e complementá-las. Com outras palavras, resta a ela regular, regrar, instituir regras expressas de detalhamento, cada qual com hipótese de incidência [al.: Tatbestand; it.: fattispecie] e consequência jurídica [al.: Rechtsfolge; it.: statuizione] bem definidas. O importante é que, a pretexto de regular, a lei não despotencie a garantia, seja talhando-lhe o conteúdo mínimo fixado pela Constituição, seja violando-lhe o âmbito de proteção. Essas regulações infraconstitucionais das garantias de liberdade se estudam geralmente de dois maneiras: 1) pode-se estudar a regulação de cada garantia de liberdade individualmente considerada [ex.: regras legais sobre controle de constitucionalidade; regras legais sobre mandado de segurança; regras legais sobre licitação], ou 2) a regulação de todas as garantias de liberdade contra um determinado poder do Estado [ex.: regras legais sobre as garantias contraexacionais; regras legais sobre as garantias contraministeriais; regras legais sobre as garantias contrapunitivas; regrais legais sobre as garantias contraexpropriatórias]. Pois a esse conjunto das regras legais, que regulam as garantias de liberdade contra um determinado poder do Estado, se dá o nome de ESTATUTO DE PROTEÇÃO, ESTATUTO DE DEFESA, ESTATUTO DE PROTEÇÃO E DEFESA, ESTATUTO DE GARANTIA ou simplesmente ESTATUTO. É bem verdade que, na terminologia jurídica tradicional, a palavra estatuto não está circunscrita a um sentido tão específico. Os melhores dicionários da língua portuguesa definem estatuto como «constituição, regulamento, decreto, canon, que determina ou estabelece a norma; a regra do que se deve fazer. [Usa-se mais no plural.]». Ou como «lei organica ou regulamento especial de um estado, associação, confraria, companhia, irmandade, ou de qualquer corpo collectivo em geral: o Estatuto Sardo. Os estatutos da confraria. Os estatutos da universidade de Coimbra. Os estatutos da academia» (AULETE, Francisco Júlio de Caldas. Diccionario contemporaneo da lingua portugueza. 2. ed. v. 1. Lisboa: Parceria Antonio Maria Pereira, 1925, p. 949). Nada obstante, o corte semântico permite que se isole um fenômeno jurídico ainda pouco observado, dissecado e sistematizado. Enfim, a teoria garantística se apropria da palavra, submete-a a uma definição estipulativa e emprega-a para designar um fenômeno que lhe é caro. Não raro se identificam, nos diversos sistemas nacionais de direito positivo vigentes, estatutos de proteção e defesa de cidadãos submetidos a determinados poderes do Estado. Em relação ao poder de legislar, constata-se o Estatuto do Legislado; ao poder de tributar, o Estatuto do Contribuinte; ao poder geral de administrar, o Estatuto do Administrado; ao poder de polícia, o Estatuto do Policiado; ao poder de desapropriar, o Estatuto do Desapropriado; ao poder regulatório, o Estatuto dos Entes Regulados; ao poder de prestar serviço público, o Estatuto do Usuário de Serviço Público; ao poder de investigar, o Estatuto do Investigado; ao poder de judicar, o Estatuto do Jurisdicionado; ao poder de punir, o Estatuto do Apenado; ao poder de controle migratório, o Estatuto do Estrangeiro. Como se percebe, é colocada na expressão a qualificação do titular do estado de sujeição, que é protegido e defendido pelo estatuto. É preciso ressalvar, contudo, que estatuto e diploma legislativo não são conceitos necessariamente coincidentes. É possível que: i) um estatuto esteja abarcado em dois ou mais diplomas legislativos [ex.: o Estatuto do Desapropriado, que se espraia pelo Decreto-lei 3.365/1941, pela Lei 8.629/1993, pela LC 76/1993 etc.]; ii) um estatuto esteja abarcado em um único diploma legislativo [ex.: o Estatuto do Estrangeiro, que está contido na Lei 13.445/2017]; iii) vários estatutos estejam abarcados em um único diploma legislativo [ex.: o Código de Processo Penal, que abarca o Estatuto do Investigado e o Estatuto do Acusado, embora nem um nem outro estejam abarcados por inteiro no referido código]. Nem poderia ser de outra maneira: estatuto é dado do plano normativo; diploma legislativo, do plano textual.
III
Merecem destaque os ESTATUTOS DE GARANTIA DOS JURISDICIONADOS. Perceba-se: estatuto no plural. Porque, em verdade, existe mais de um. São múltiplos. No plano constitucional, a jurisdição é una; logo, uno é o processo, que a limita e controla. O processo é uma unidade constitucional de garantia, pois. Daí por que não deve ele receber adjetivos como «civil», «penal comum», «penal militar», «trabalhista», «eleitoral», «administrativo», «tributário», senão apenas os adjetivos devido e legal, que lhe são dados pela CF/1988. Na realidade, o processo se desdobra em múltiplos procedimentos no plano infraconstitucional, que variam em função dos variados ramos do direito material aplicáveis (procedimentos civil, penal comum, penal militar, trabalhista, eleitoral, administrativo, tributário etc.). Como se vê, adjetiváveis são os procedimentos, não o processo. Por sua vez, os diferentes ramos do direito material aplicáveis também determinam os diferentes ramos temáticos em que o poder jurisdicional se especializa (ramos civil, penal comum, penal militar, trabalhista, eleitoral, administrativa, tributária etc.). Ressalte-se: justamente porque a jurisdição é una, a rigor não se pode falar em «jurisdição ou justiça civil», «jurisdição ou justiça penal», «jurisdição ou justiça trabalhista», «jurisdição ou justiça eleitoral», mas respectivamente em ramo civil da justiça, ramo penal da justiça, ramo trabalhista da justiça, ramo eleitoral da justiça (conquanto expressões como «justiça civil», «justiça penal», «justiça trabalhista» e «justiça eleitoral» já estejam consagradas pelo uso, havendo licença pragmática para que se empreguem). Sendo assim, o ramo civil da justiça é limitado e controlado pelo procedimento civil; o ramo penal comum, pelo procedimento penal comum; o ramo penal militar, pelo procedimento penal militar; o ramo trabalhista, pelo procedimento trabalhista; o ramo eleitoral, pelo procedimento eleitoral; o ramo administrativo, pelo procedimento administrativo; o ramo tributário, pelo procedimento tributário etc. Isso significa, por exemplo, que: a) as leis sobre procedimento civil integram o Estatuto do Jurisdicionado Civil; b) as leis sobre procedimento penal comum, o Estatuto do Jurisdicionado Penal Comum; c) as leis sobre procedimento penal militar, o Estatuto do Jurisdicionado Penal Militar; d) as leis sobre procedimento penal eleitoral, o Estatuto do Jurisdicionado Penal Eleitoral; e) as leis sobre procedimento trabalhista, o Estatuto do Jurisdicionado Trabalhista. Em essência, o CPC deveria ser um «código de proteção e defesa do cidadão perante a justiça civil»; o CPP, um «código e proteção de defesa do cidadão perante a justiça penal comum»; o CPPM, um «código de proteção e defesa do cidadão perante a justiça penal militar»; a parte procedimental penal do Código Eleitoral, um «código de proteção e defesa do cidadão perante a justiça penal eleitoral»; a parte procedimental da CLT, um «código de proteção e defesa do cidadão perante a justiça trabalhista». É interessante lembrar que um dos ramos do poder jurisdicional é a justiça senatorial, que julga os crimes de responsabilidade imputados a determinados agentes públicos federais [CF, art. 52, I e II]. Ela é limitada e controlada pelo procedimento de impeachment de que trata a Lei 1.079/1950, a qual integra o Estatuto do Jurisdicionado Senatorial, devendo ser, portanto, um «código de proteção e defesa do cidadão perante a justiça senatorial». Vale menção, outrossim, o poder decisório do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), que é poder administrativo com elevado adensamento de jurisdicionalidade, constituindo uma quase-justiça punitivo-concorrencial, controlada e limitada pelo procedimento instituído na Lei 12.529/2011. Não por outro motivo a mencionada lei integra o Estatuto do Quase-jurisdicionado Punitivo-Concorrencial, devendo ser, por isso, um «código de proteção e defesa do cidadão perante a quase-justiça punitivo-concorrencial». Todavia, todas essas leis infraconstitucionais procedimentais, embora integrem os Estatutos dos Jurisdicionados, não são elas em si mesmas esses estatutos. Eles não se reduzem a elas. Isso porque o processo - em qualquer dos desdobramentos procedimentais em que se manifesta - não é a única garantia de liberdade dos cidadãos em juízo. As «limitações constitucionais ao poder de judicar» não se reduzem à unidade do processo (ao «devido processo legal») e, portanto, não se reduzem à multiplicidade dos procedimentos. Como já visto, há garantias constitucionais contrajurisdicionais, no plural, das quais o processo é um exemplo, não obstante seja «o» exemplo.
IV
Em prol dos jurisdicionados, ao processo somente se iguala em importância a advocacia. Também a advocacia é uma garantia constitucional de liberdade [CF/1988, art. 5º, § 2º, c. c. art. 133]. Processo e advocacia são o crème de la crème da garantística contrajurisdicional. No final das contas, o advogado é o fiscal técnico número um do desempenho judicial e, por conseguinte, um anteparo antiarbitrário em favor da parte representada (para um aprofundamento do tema, v. nosso A advocacia como garantia de liberdade dos jurisdicionados. <https://cutt.ly/Hhtt4lo>). Nesse sentido, a pormenorização legal da garantia da advocacia integra os Estatutos dos Jurisdicionados, atravessando-os transversalmente. É elemento comum a todos eles. Entretanto, é preciso frisar que o advogado, ao mesmo tempo em que enfrenta tecnicamente o eventual arbítrio judicial, pode também ser vítima dele. Nem poderia ser diferente: advogar = ad + vocare = «para si» + «chamar» = chamar para si com o propósito de socorrer, ajudar, interceder em favor de outrem; logo, quem advoga, opondo-se ao arbítrio, atrai naturalmente o arbítrio para si. Não raro, infligir arbítrio ao jurisdicionado pressupõe infligir arbítrio ao seu representante letrado. Muitas vezes, o arbítrio judicial destinado à parte é «mero» desdobramento do arbítrio judicial destinado ao seu advogado: os efeitos nocivos do arbítrio percutem na esfera do advogado e re-percutem na esfera da parte. Nesse caso, a vítima imediata, direta ou primária é o advogado; a vítima mediata, indireta ou secundária é a parte que ele representa. Por isso, se o advogado per se é uma garantia contrajurisdicional dos jurisdicionados, é necessário que ele também tenha as suas próprias garantias contrajurisdicionais, que lhe resguardem o exercício profissional de eventuais perturbações autoritárias. Em outro dizer: posto que escude, necessita o advogado igualmente de um escudo para si. Enfim, é indispensável que o advogado tenha as suas PRERROGATIVAS PROFISSIONAIS. Daí por que o advogado é garantia de primeiro grau; as prerrogativas do advogado, garantias de segundo grau ou garantias ao quadrado, uma vez que garantem o garantidor. Tutelando-se as prerrogativas, tutela-se o advogado; tutelando-se o advogado, tutela-se o cidadão em juízo; em consequência, tutelando-se as prerrogativas, tutela-se o cidadão em juízo (cf. CIPRIANI, Franco. La professione di avvocato. Avvocatura e diritto alla difesa: saggi. Napoli: Edizioni Scientifique Italiane, 1999, p. 24: «[...] tutte le limitazioni che si pongono all’opera processuale degli avvocati si ritorcono contro i cittadini»). Com razão IZIO MASETTI ao dizer que «advogado sem prerrogativas é a mesma coisa que um soldado sem o fuzil». Desmuniciada de prerrogativas, não existe advocacia, mas uma pseudo-advocacia, uma semi-advocacia, uma advocacia entre aspas, um modo privativo de advocacia; portanto, há apenas o resto de uma ex-garantia, uma sombra de garantia, o detrito de uma garantia esfacelada. Assim sendo, a violação judicial das prerrogativas advocatícias é praticamente tão grave quanto a afronta judicial ao contraditório, à ampla defesa, ao juiz natural, à imparcialidade, à proporcionalidade, à presunção de inocência (nas suas dimensões penal e extrapenal), ao duplo grau de jurisdição, ao dever de fundamentação das decisões, à obrigatoriedade do processo, à legalidade estrita do procedimento, à duração razoável do processo. Como não poderia deixar de ser, a disciplina infraconstitucional das prerrogativas profissionais constitui - em sentido garantístico - o ESTATUTO DOS ADVOGADOS por excelência. É bem verdade que no País se conhece como «Estatuto dos Advogados» a Lei 8.906/1994, a qual trata não apenas das prerrogativas da profissão [artigos 6º e 7º], mas também de temas como a sociedade de advogados, o advogado empregado, as infrações e sanções disciplinares, o processo disciplinar, os honorários advocatícios, a ética do advogado, e a própria Ordem dos Advogados do Brasil na sua organização, no seu funcionamento e nos seus objetivos institucionais. Nesse sentido, a Lei 8.906/1994 é, ao mesmo tempo, um texto estatutário e extraestatutário, um diploma garantístico e extragarantístico. Ela é um estatuto e um «estatuto». No entanto, o regime legal das prerrogativas profissionais constitui a essência estatutário-advocatícia. O núcleo fundamental da Lei 8.906/1994 são os artigos 6º e 7º. Eles compõem a substância que, reflexamente, acaba por integrar os Estatutos de Garantia dos Jurisdicionados.
V
Para a garantística, garantia significa a tutela do indivíduo contra o exercício arbitrário dos poderes públicos; estatuto, o regime legal dessa tutela. Todavia, nada impede que doutrinas paragarantísticas redefinam o termo garantia e, por conseguinte, o termo estatuto (para um aprofundamento sobre a definição de garantia, v. nosso Garantia: dois sentidos, duas teorias. <https://cutt.ly/1hoAkGq>). a) É possível que se refiram a estatuto como o regime legal da tutela do indivíduo vulnerável contra o exercício arbitrário de poderes privados. Afinal, aos poderes privados também ocorre o arbítrio. Pudera: «tout homme qui a du pouvoir est porté à en abuser» [MONTESQUIEU] (tradução: «todo homem investido de poder é tentado a dele abusar»). A propensão ao abuso do poder é lei impessoal e infalível da física social. Pior: tende a reificar as pessoas assujeitadas; coisificando-as, fá-las perder a dignidade. Daí ser inaceitável deixar os poderes privados à míngua de controle. Parte significativa da textura social se apoia em relações de poder; logo, abandoná-las a arbitrariedades omissivas e comissivas significa referendar uma sociedade opressora. Daí se verem aqui e ali estatutos de prevenção e repressão a arbítrios privados, especialmente nas modalidades de abuso, deficiência e negligência (para uma classificação das formas de arbítrio, v. nosso Um breve teoria jurídica do arbítrio. <https://cutt.ly/ihoDgut>). Exemplo: estatuto do consumidor (que o protege do poder dos fornecedores), estatuto do trabalhador (que o protege do poder dos empregadores), estatuto do investidor dos mercados financeiro e de capitais (que o protege do poder das instituições de intermediação financeira), estatuto do acionista minoritário (que o protege do poder do acionista controlador), estatuto do tutelado (que o protege do poder dos tutores), estatuto do curatelado (que o protege do poder dos curadores), estatuto dos filhos (que os protege do poder dos pais). b) Outrossim, é possível que se refiram a estatuto como o regime legal da tutela do indivíduo vulnerável contra o exercício arbitrário - por abuso, deficiência e negligência - de poderes tanto públicos quanto privados. Exemplo: estatuto do idoso, estatuto da criança e do adolescente, estatuto da pessoa com deficiência, estatuto da mulher, estatuto do estudante, estatuto do índio, estatuto do quilombola, estatuto do torcedor, estatuto da microempresa. c) Por fim, é possível que se refiram a estatuto como o regime legal da tutela de instituições (seres vivos, relações, valores, hábitos, utilidades e normas) - desprovidas de personalidade jurídica, mas não menos dignas - contra o arbítrio de poderes públicos e privados. Exemplo: estatuto do meio ambiente (protegido, e. g., da degradação); estatuto da lisura eleitoral (protegida da manipulação da opinião pública pelos poderes político e econômico); estatuto da concorrência leal (protegida do abuso de poder econômico); estatuto dos documentos, obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural (protegidos da evasão e do esquecimento); estatuto dos monumentos, paisagens naturais notáveis e sítios arqueológicos (protegidos da depredação, da destruição e da descaracterização); estatuto dos animais (protegidos da crueldade, do abandono e dos maus tratos); estatuto do nascituro (protegido da sanha abortista) (obs.: o nascituro tem um quid distintivo: não é personificado nem des-personificado, mas um ser vivo em-personificação, o que faz do seu estatuto peculiar e sobre ele exige análise destacada). Poder-se-ia falar, ainda, nos estatutos da família, da moralidade administrativa, das festas e tradições populares, da saúde, do esporte, da educação, da segurança etc. Sublinhe-se: o que se tem em (a), (b) e (c) não são estatutos garantísticos, mas PARAGARANTÍSTICOS (obs.: o prefixo latino para- significa aí «próximo», «semelhante», «equiparado», «paralelo», «ao lado de»). Pois que não se tem aí uma disciplina legal de garantias, mas de paragarantias. Enquanto as garantias se opõem ao exercício arbitrário de poderes públicos protegendo pessoas físicas ou jurídicas de direito privado, as paragarantias se diferenciam porque se opõem também ao exercício arbitrário de poderes privados, ou porque protegem entes não personificados. Aliás, urge o desenvolvimento epistemológico do paragarantismo [plano da política jurídica] e da paragarantística [plano da dogmática jurídica]. Sem isso, «direitos fundamentais de primeira e segunda gerações» continuarão a servir ao rendimento do poder do Estado, não ao bem-estar do cidadão.
Imagem Ilustrativa do Post: Albert V Bryan Federal District Courthouse – Alexandria Va – 0011 – 2012-03-10 / // Foto de: Tim Evanson // Sem alterações
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