Coluna ABDPRO
Uma das grandes preocupações no Brasil, no campo da recuperação de crédito, é assegurar a localização de bens penhoráveis do devedor.
Afinal, sem que sejam localizados bens que possam ser penhorados, eventual execução por quantia certa não terá como prosseguir.
Nessa direção, existem vários mecanismos para tutelar o direito do credor, inclusive contra eventuais alienações e onerações fraudulentas do patrimônio do devedor. São exemplos os institutos da fraude contra credores (art. 158 a 165 do Código Civil) e da fraude à execução (art. 792 do CPC), bem como a possibilidade de averbação de que foi admitida a execução no registro de imóveis, de veículos ou de outros bens sujeitos a penhora, arresto ou indisponibilidade (art. 828 do CPC).
Todos esses mecanismos são bem conhecidos dos profissionais do Direito e utilizados com frequência pelos credores.
Curiosamente, entretanto, há outro mecanismo no Código de Processo Civil para a tutela dos direitos dos credores que é raramente utilizado: a hipoteca judiciária.
Nos termos do art. 495 do CPC, a decisão condenatória ao pagamento de obrigação pecuniária (ou seja, isso vale para sentença, decisão interlocutória, decisão monocrática ou acórdão) e a que determinar a conversão de prestação de fazer, de não fazer ou de dar coisa em prestação pecuniária valerão como título constitutivo de hipoteca judiciária.
Trata-se do que a doutrina denomina de efeito anexo da sentença (ou melhor, da decisão judicial), que se produz mesmo que não haja pedido do demandante nesse sentido e ainda que não haja a mínima menção no provimento jurisdicional a respeito da constituição da hipoteca judiciária. Ou seja, é um efeito que se verifica automaticamente, por força da lei.
Pois bem: proferida a decisão condenatória, bastará que o credor então apresente uma cópia dela perante o registro imobiliário para que a hipoteca seja registrada na matrícula do imóvel em nome do devedor, independentemente de qualquer ordem judicial nesse sentido ou de demonstração de urgência (art. 495, § 2º do CPC).
Efetivada a hipoteca, tal circunstância deverá ser comunicada no processo no prazo de quinze dias (úteis, por se tratar de prazo processual). O juízo, então, determinará a intimação do devedor para que tome conhecimento do registro da hipoteca (art. 495, § 3º do CPC) e, eventualmente, se manifeste sobre eventual irregularidade ou excesso.
Note-se que, embora seja assegurado o contraditório quanto à realização de tal medida (como já reconheceu o STJ, por exemplo, à luz do CPC/1973),[1] ele é diferido, ou seja, o devedor apenas será comunicado da hipoteca judiciária quando esta já tiver sido realizada. Como se percebe, as hipóteses de contraditório postecipado não se esgotam no art. 9º, parágrafo único do CPC.
Embora pouco explorada tal alternativa, a realização da hipoteca judiciária traz algumas vantagens importantes para o credor: (i) institui em seu favor o direito de preferência, quanto ao pagamento, em relação a outros credores, observada a prioridade no registro (art. 495, § 4º do CPC); e (ii) facilita o reconhecimento da fraude à execução (art. 792, III do CPC), uma vez que, formalizado o registro da hipoteca na matrícula do imóvel, não poderá o terceiro adquirente alegar desconhecimento da constrição.
Sem embargo, talvez a principal vantagem desse mecanismo seja a possibilidade de sua realização mesmo que a decisão condenatória tenha sido atacada por recurso dotado de efeito suspensivo (art. 495, § 1º, III do CPC) e ainda que a obrigação seja genérica, ou seja, dependa de oportuna liquidação de sentença (art. 495, § 1º, I do CPC). Veja-se que, enquanto pendente recurso com efeito suspensivo, o credor não poderá iniciar o cumprimento de sentença, nem realizar a averbação do art. 828 do CPC e muito menos requerer a penhora.
Esse é um mecanismo que não encontra paralelos na legislação brasileira. A fraude contra credores e a fraude à execução possuem caráter repressivo, ou seja, buscam atingir bens que já foram alienados ou onerados fraudulentamente. Por outro lado, embora seja possível ao credor formular pedido de tutela provisória para inibir eventual dilapidação patrimonial que esteja sendo levada a cabo pelo devedor, será necessário demonstrar situação de urgência (periculum in mora), o que é dispensado no caso da hipoteca judiciária.
Por outro lado, é evidente que há também desvantagens nesse mecanismo. Em primeiro lugar, ao menos nos termos em que disciplinada pela legislação processual, a hipoteca judiciária somente pode recair sobre bens imóveis do devedor – o que, de certa maneira, contrasta com o art. 835 do CPC, que prevê que os imóveis, em princípio, deverão ser penhorados apenas se não localizados dinheiro, títulos da dívida pública, títulos e valores mobiliários com cotação em mercado ou veículos no patrimônio do executado.
Sob a perspectiva histórica, vale lembrar que a hipoteca judiciária é instituto há muito contemplado na legislação processual brasileira, tendo sido prevista em todos os Códigos de Processo Civil nacionais que existiram (art. 284, CPC/1939 e art. 466 do CPC/1973). Nessa época, como não havia meios eletrônicos nem alternativas eficientes para localizar dinheiro do executado, os credores buscavam principalmente os chamados “bens de raiz”, que dificilmente poderiam ser dissipados sem deixar vestígios – ou seja, os imóveis.
Além disso, os imóveis, embora sejam frequentemente bens valiosos, são normalmente dotados de baixa liquidez. Uma constrição imediata, antes mesmo de eventual agravo ou apelação contra a decisão condenatória, sobre dinheiro, títulos e valores mobiliários ou veículos do devedor acabaria por ser mais gravosa que a hipoteca judiciária sobre imóveis, na medida em que a alienação ou oneração desses bens, pelo menos para a generalidade das pessoas, não é uma atividade realizada de forma rotineira.
Uma outra desvantagem, sob o ponto de vista do credor, decorre do próprio fato de que a hipoteca judiciária pode ser realizada imediatamente após prolatada a decisão condenatória. Afinal, se essa decisão ainda está sujeita a recurso, naturalmente poderá ser modificada ou mesmo invalidada. Para essa situação, estabelece o art. 495, § 5º do CPC a responsabilidade objetiva (independentemente de culpa) do credor, que deverá indenizar os danos que a outra parte tiver sofrido em razão da indevida constituição da garantia.
Ou seja, deverá o credor avaliar criteriosamente as chances de reforma ou invalidação da decisão condenatória, bem como os danos que porventura venham a ser causados ao devedor, antes que decida realizar a hipoteca judiciária. Afinal, a realização de constrição em etapa tão prematura e independentemente de urgência cobra o seu preço.
Apesar de o CPC em vigor ter regulado de forma mais detalhada o instituto, algumas questões permanecem em aberto:
a) Poderia o devedor, uma vez intimado sobre a hipoteca judiciária, buscar afastá-la mediante o oferecimento de outros bens em garantia (inclusive dinheiro) ou mesmo a apresentação de seguro-garantia ou fiança bancária? Embora a legislação seja omissa, parece-nos que sim. Afinal, o instituto foi criado para tutelar o direito do credor. Não parece haver nenhum obstáculo para que esse crédito seja garantido por outros bens, desde que suficientes e com igual ou maior liquidez.
Além disso, o princípio da menor onerosidade (art. 805 do CPC), embora contemplado para a execução, também deve incidir nesta etapa processual. Afinal, tal princípio consiste em aplicação específica da proporcionalidade, contemplada na parte geral do Código (art. 8º).[2] Se para o devedor, no caso concreto, a hipoteca judiciária é mais gravosa e a substituição do bem em garantia (ainda que não seja por outro imóvel) não trouxer prejuízo ao credor, não se vislumbra impedimento para que tal providência seja permitida.
Se o credor concordar com a substituição, deve ser deferida tal providência de plano pelo juiz, por se tratar de negócio jurídico processual atípico (art. 190 do CPC), cuja aplicação somente poderia ser recusada em caso de nulidade ou manifesta situação de vulnerabilidade. Por outro lado, havendo oposição do credor, deverá o julgador analisar o pedido de substituição tomando como parâmetro os requisitos para a substituição da penhora (arts. 847 e 848 do CPC), aplicáveis aqui de forma subsidiária.
b) Poderia o devedor alegar que a hipoteca judiciária deve ser afastada porque o bem é impenhorável (por exemplo, o imóvel hipotecado é seu bem de família)? Mais uma vez, embora a legislação seja omissa, a resposta só pode ser positiva. A hipoteca judiciária tem por finalidade estabelecer o direito de preferência do credor e de evitar que determinado bem imóvel seja alienado ou onerado pelo devedor de forma fraudulenta. Contudo, se esse bem não puder ser depois penhorado, então a hipoteca judiciária perde a sua razão de ser, não devendo ser utilizada como mero instrumento de represália contra o devedor.
Em definitivo, o processo civil não se presta à vingança privada, razão pela qual somente se admite a hipoteca judiciária sobre bens que sejam penhoráveis.
* * *
Como se percebe, o instituto da hipoteca judiciária não vem sendo explorado pelos profissionais do Direito em todas as suas potencialidades. Espera-se que o presente artigo sirva como ponto de partida para o aprofundamento das discussões envolvendo esse mecanismo, desconhecido para muitos, tanto credores quanto devedores.
Até a próxima!
Notas e Referências
[1] “Agravo regimental no recurso especial. Hipoteca judiciária. Efeito anexo ou secundário da sentença. Ausência de contraditório prévio. Precedente específico desta Corte superior. 1. ‘Não obstante seja um efeito da sentença condenatória, a hipoteca judiciária não pode ser constituída unilateralmente; o devedor deve ser ouvido previamente a respeito do pedido. Recurso especial conhecido e provido’ (REsp 439.648/ PR, Rel. Min. Ari Pargendler, 3.ª Turma, j. 16.11.2006, DJ 04.12.2006, p. 294). 2. A alegação de que referida orientação entraria em contradição com julgado outro desta Terceira Turma, não se mostra acertada, tendo-se naquela assentada reconhecido a inexistência de condicionantes (requisitos outros) à constituição da hipoteca judiciária, o que não se identifica com o constitucional direito ao contraditório prévio. 3. Agravo regimental desprovido” (STJ, AgRg no REsp 1280847/SP, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, 3.ª Turma, j. 11.03.2014, DJe 18.03.2014).
[2] Sobre a relação entre menor onerosidade e proporcionalidade, já escrevemos em ROQUE, Andre Vasconcelos. Comentários ao art. 805 in GAJARDONI, Fernando da Fonseca et al. Execução e recursos – Comentários ao CPC de 2015. São Paulo: Método, 2018, p. 165: “A menor onerosidade é manifestação, portanto, do princípio da proporcionalidade (art. 8º do CPC/2015), traduzindo verdadeira “regra de sobredireito”, cuja função é a de orientar a aplicação das demais normas da execução (STJ, REsp 673.869, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, j. 12.12.2007). Não se deve submeter o executado a meio executivo que lhe proporcione maior sacrifício, se tal providência não trouxer qualquer proveito para a efetividade da execução. Por um lado, tutela-se a dignidade da pessoa humana do executado e, por outro, resguardam-se as exigências de boa-fé e lealdade processual por parte do exequente, que não deve abusar de seu direito e prejudicar o executado além do indispensável para a satisfação da obrigação”.
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