Nos últimos anos, deparamo-nos com diversos casos noticiados em jornais e portais jurídicos em que o magistrado determinou a suspensão da Carteira Nacional de Habilitação – CNH e apreensão do passaporte como medida coercitiva para induzir o executado ao cumprimento “espontâneo” de obrigação pecuniária. A fundamentação de tais medidas, na grande maioria dos casos, consiste na possibilidade de o magistrado estabelecer (criar) meios executórios atípicos na execução civil de prestação pecuniária com base na autorização dada pelo art. 139, inciso IV, do CPC.
No Direito Tributário, a execução dos créditos constituídos em favor da Fazenda Pública é realizada com base em procedimento executivo especial, regido pela Lei nº 6.830/1980 (Lei das Execuções Fiscais – LEF). A legislação específica, porém, não tratou da totalidade do procedimento, o que ensejou na necessidade de aplicação subsidiária do Código de Processo Civil, consoante expressa disposição do art. 1º da Lei nº 6.830/1980. Além disso, a aplicação supletiva e subsidiária também possui fundamento no art. 15 do CPC.
O contexto normativo apresentado permite indagar se os ditos poderes de efetivação não previstos expressamente (meios executórios atípicos) são aplicáveis aos processos de execução de créditos tributários.
Assim, aqui vamos analisar se os “poderes de efetivação” contidos no art. 139, inciso IV, do CPC, aplicáveis às demandas que tenham por objeto o cumprimento de prestação pecuniária, são limitados por outras normas processuais ou pelo regramento de direito material atinente à prestação pecuniária objeto da tutela no âmbito da execução fiscal[1].
Por fim, analisaremos recentes julgados do Superior Tribunal de Justiça tratando especificamente do tema.
SISTEMA CONSTITUCIONAL TRIBUTÁRIO E AS LIMITAÇÕES AO PODER DE TRIBUTAR
A Constituição Federal, no Título VI Capítulo I, trata do Sistema Constitucional Tributário, elencando princípios gerais aplicáveis à tributação, repartição de competência para instituição dos tributos, limitações constitucionais ao poder de tributar entre outros. Aqui destacamos o art. 150, incisos IV e V,[2] que assim dispõem:
Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
(...)
IV - utilizar tributo com efeito de confisco;
V - estabelecer limitações ao tráfego de pessoas ou bens, por meio de tributos interestaduais ou intermunicipais, ressalvada a cobrança de pedágio pela utilização de vias conservadas pelo Poder Público;
Na mesma linha, o art. 170, parágrafo único, da Constituição Federal consagra o princípio da liberdade de desenvolvimento das atividades econômicas:
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
(...)
Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.
Os dispositivos em questão demonstram a importante preocupação do constituinte em evitar que a tributação e, consequentemente, a cobrança do tributo (administrativa ou judicial) seja realizada com base em mecanismos de coerção, que limitam o tráfego de bens e pessoas ou até mesmo o desenvolvimento das atividades econômicas.
O Supremo Tribunal Federal, ao longo do tempo, também consolidou a sua jurisprudência por meio de aprovação de várias súmulas destacadas a seguir, que reconheceram a utilização de medidas coercitivas para a cobrança do crédito tributário:
Súmula nº 70 - É inadmissível a interdição de estabelecimento como meio coercitivo para cobrança de tributo.
Súmula nº 323 - É inadmissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributos.
Súmula nº 547 - não é lícito à autoridade proibir que o contribuinte em débito adquira estampilhas, despache mercadorias nas alfândegas e exerça suas atividades profissionais.
A utilização de meios coercitivos, portanto, ainda que previstos na legislação tributária instituidora do tributo, vem sendo considerada inconstitucional por afrontar as garantias constitucionais do contribuinte e, ao mesmo tempo, violar as limitações impostas pelo constituinte ao poder de tributar dos entes políticos.
Se tal proteção possui o condão de invalidar legislação produzida como tal finalidade, o que dizer da imposição de medidas coercitiva com base em uma cláusula geral processual? Parece-nos que o raciocínio empregado pelo constituinte e consagrado na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, vale, igualmente, para a cobrança do crédito tributário no âmbito judicial.
Assim, a imposição de medidas executivas coercitivas na execução fiscal com base no art. 139, inciso IV, do CPC encontra óbice constitucional, pois viola garantia constitucional do contribuinte, especialmente aquelas contidas nos incisos IV e V do art. 150 e art. 170, parágrafo único, da Carta Magna, como, também, colocado no art. 9º, III, do CTN.
Além de limitações dispostas na Constituição Federal, a aplicação de medidas executivas atípicas na execução do crédito tributário, também, encontra impedimento no regramento infraconstitucional, sobretudo no Código Tributário Nacional. É que, no mencionado diploma legislativo, as garantias e privilégios do crédito tributário estão expressamente delimitadas.
As normas gerais de direito tributário funcionam sintaticamente no sistema normativo como normas condicionantes que orientam a criação e disciplinam a forma de instituição dos tributos pelos entes políticos competentes. Em face da sua importância, a Constituição Federal optou por conjugar a materialidade das hipóteses de criação da norma ao procedimento legislativo qualificado da lei complementar, isto é, o veículo normativo dotado de uma maior formalidade para sua aprovação[3] e com isto, também, dá as diretrizes uniformizadoras para os entes federativos legislarem.
As garantias do crédito tributário são normas gerais de direito tributário e, em função do regime estabelecido no art. 146 da Constituição Federal, somente podem ser veiculadas por lei complementar editada pela União (lei nacional).
Logo, a legislação complementar (Código Tributário Nacional) também impede a criação, por parte do Juiz, de medidas coercitivas atípicas com escopo de promover a cobrança judicial do crédito tributário.
DIRETRIZES DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
No âmbito do Superior Tribunal de Justiça o tema da aplicação das medidas executivas atípicas no direito privado vem sendo debatido, o que possibilita a identificação de diversos julgados sobre o tema.
A aplicabilidade de tais medidas na execução fiscal, todavia, começou a ser discutida mais recentemente. No Habeas Corpus n° 453.870/PR, a Primeira Turma analisou a juridicidade da aplicação de uma medida atípica de suspensão de Passaporte e da Carteira Nacional de Habilitação nos autos de uma execução fiscal. Apesar de versar sobre crédito não tributário, o órgão colegiado entendeu como aplicável todo o regramento tributário e entendeu pela impossibilidade de aplicação de medidas atípicas no âmbito da execução fiscal[4].
Igualmente, no Recurso Especial n° 1.802.611[5], a Segunda Turma afastou a aplicação de medidas executivas atípicas de cancelamento de cartões de crédito e suspensão da Carteira Nacional de Habilitação para cobrança de créditos de natureza tributária, confirmando uma tendência de consolidação jurisprudencial no âmbito da Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça com competência para analisar os feitos em matéria tributária.
Notas e Referências
[1] Para uma análise mais aprofundada do tema: Cf. SOUZA JÚNIOR, Antonio Carlos. F de. QUEIROZ, Mary Elbe. Medidas executivas atípicas (art. 139, IV, do CPC-2015) são aplicáveis na execução fiscal?.In: 30 anos da Constituição Federal e o sistema tributário. CARVALHO, Paulo de Barros (coord.), São Paulo: Noeses, 2018. pp.869-886.
[2] Consoante, também, o art. 9º, III, do CTN.
[3] BORGES, José Souto Maior. Normas gerais de direito tributário: velho tema sob perspectiva nova. In: Revista Dialética de Direito Tributário nº 213. São Paulo: Dialética, Junho de 2013. p.54.
[4] CONSTITUCIONAL. HABEAS CORPUS. DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS. PROCESSUAL CIVIL. EXECUÇÃO FISCAL. DIREITO DE LOCOMOÇÃO, CUJA PROTEÇÃO É DEMANDADA NO PRESENTE HABEAS CORPUS, COM PEDIDO DE MEDIDA LIMINAR. (...)
- A discussão lançada na espécie cinge-se à aplicação, no Executivo Fiscal, de medidas atípicas que obriguem o réu a efetuar o pagamento de dívida, tendo-se, como referência analítica, direitos e garantias fundamentais do cidadão, especialmente o de direito de ir e vir. (...) 12. Tratando-se de Execução Fiscal, o raciocínio toma outros rumos quando medidas aflitivas pessoais atípicas são colocadas em vigência nesse procedimento de satisfação de créditos fiscais. Inegavelmente, o Executivo Fiscal é destinado a saldar créditos que são titularizados pela coletividade, mas que contam com a representação da autoridade do Estado, a quem incumbe a promoção das ações conducentes à obtenção do crédito. 13. Para tanto, o Poder Público se reveste da Execução Fiscal, de modo que já se tornou lugar comum afirmar que o Estado é superprivilegiado em sua condição de credor. Dispõe de varas comumente especializadas para condução de seus feitos, um corpo de Procuradores altamente devotado a essas causas, e possui lei própria regedora do procedimento (Lei 6.830/1980), com privilégios processuais irredarguíveis. Para se ter uma ideia do que o Poder Público já possui privilégios ex ante a execução só é embargável mediante a plena garantia do juízo (art. 16, § 1°. da LEF), o que não encontra correspondente na execução que se pode dizer comum.
Como se percebe, o crédito fiscal é altamente blindado dos riscos de inadimplemento, por sua própria conformação jusprocedimental. 14. Não se esqueça, ademais, que, muito embora cuide o presente caso de direito regressivo exercido pela Municipalidade em Execução Fiscal (caráter não tributário da dívida), sempre é útil registrar que o crédito tributário é privilegiado (art. 184 do Código Tributário Nacional), podendo, se o caso, atingir até mesmo bens gravados como impenhoráveis, por serem considerados bem de família (art. 3o., IV da Lei 8.009/1990). Além disso, o crédito tributário tem altíssima preferência para satisfação em procedimento falimentar (art. 83, III da Lei de Falências e Recuperações Judiciais - 11.101/2005). Bens do devedor podem ser declarados indisponíveis para assegurar o adimplemento da dívida (art. 185-A do Código Tributário Nacional). São providências que não encontram paralelo nas execuções comuns. 15. Nesse raciocínio, é de imediata conclusão que medidas atípicas aflitivas pessoais, tais como a suspensão de passaporte e da licença para dirigir, não se firmam placidamente no Executivo Fiscal. A aplicação delas, nesse contexto, resulta em excessos. 16. Excessos por parte da investida fiscal já foram objeto de severo controle pelo Poder Judiciário, tendo a Corte Suprema registrado em Súmula que é inadmissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributos (Súmula 323/STF). (...) (HC 453.870/PR, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 25/06/2019, DJe 15/08/2019)
[5] PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. EXECUÇÃO FISCAL. MEDIDAS COERCITIVAS ATÍPICAS. SUSPENSÃO DA CNH, APREENSÃO DO PASSAPORTE E CANCELAMENTO DOS CARTÕES DE CRÉDITO. FUNDAMENTO CONSTITUCIONAL E NECESSIDADE DE REEXAME DA PROVA. 1. A fundamentação de natureza constitucional do acórdão não pode ser deslindada nesta via e a pretensão que visa convencer de que as medidas constritivas requeridas serão úteis ao fim colimado na execução esbarra no óbice da necessidade de reexame do conjunto-probatório dos autos. 2. Não fosse o bastante, em se tratando especificamente de execução fiscal, esta Corte de Justiça já teve oportunidade se de posicionar no sentido de que "as medidas atípicas aflitivas pessoais não se firmam placidamente no executivo fiscal. A aplicação delas, nesse contexto, resulta em excessos" (HC 453.870/PR, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, Primeira Turma, DJe 15/8/2019). 3. Recurso especial não conhecido.
(REsp 1802611/RO, Rel. Ministro OG FERNANDES, SEGUNDA TURMA, julgado em 08/10/2019, DJe 10/10/2019).
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