Coluna ABDPRO
A aplicação[1] de decisões anteriores como paradigma para julgamentos demanda a análise de todas as circunstâncias juridicamente relevantes que envolvem ambos os casos – o anterior e o presente -, para que se permita aferir se os casos efetivamente tratam de situações similares. [2]
Alexy (2005, p. 265) destaca que a primeira dificuldade no uso dos precedentes é o fato de nunca haver dois casos exatamente iguais, pelo que a definição da relevância das diferenças deve ser o primeiro passo na solução do problema. O segundo ponto nevrálgico, considerando a existência de dois casos com circunstâncias relevantes idênticas, resulta da alteração da valoração dessas circunstâncias (ALEXY, 2005, p. 265).
Parece óbvio que a adoção de precedentes implica um olhar para o passado, já que decisões anteriores são utilizadas para a solução de casos atuais. Mas nem tão óbvia é a percepção de que a decisão baseada em precedentes, e principalmente a criação de deles, pode ser uma atividade que mira para frente, para o futuro: aqueles que hoje decidem, firmam os precedentes de amanhã (DUXBURY, 2008, p. 4).
O aspecto temporal é, talvez, o mais interessante e, ao mesmo tempo, o menos observado quando se fala em aplicação de precedentes judiciais. Entretanto, o foco no tempo da decisão é fundamental quando se trata da observância e, principalmente, da superação e distinção de precedentes.
E essa percepção é fundamental para se realizar a aplicação adequada dos precedentes judiciais, viabilizando a preservação da segurança jurídica e a previsibilidade necessárias ao Estado Democrático de Direito, sem descuidar da necessária harmonização das decisões judicias com a evolução da sociedade.
A ideia de que o fato dos juízes seguirem o quanto foi anteriormente decidido[3] resultaria no “engessamento” do sistema, impedindo sua evolução e atualização é equivocada. No sistema precedentalista existem instrumentos capazes de fazer a adequação às diversas mudanças (sociais, econômicas, políticas, legislativas), bem como a possibilidade de realização de distinção da situação atual à do precedente.
Dentre esses instrumentos, destacam-se o distinguishing[4]e o overruling. O overruling, instituído na Inglaterra por meio do Statement de 1966, é a permissão de uma Corte rever o seu posicionamento anterior (DUXBURY, 2008, p. 126). A “distinção” (distinguishing), por sua vez, tem por objetivo evitar a aplicação equivocada dos precedentes[5].
O presente trabalho abordará a relação das decisões judiciais com o tempo, destacando a necessidade de superação de precedentes e a preservação da segurança jurídica, a partir da dogmática estrangeira e dos aspectos nacionais atinentes à utilização de decisões judiciais como paradigma de julgamento.
O objetivo do trabalho é sustentar que o tempo da decisão pode ser utilizado como fundamento para a não aplicação de um precedente em um caso concreto, configurando fator de distinção (distinguishing) suficiente para o afastamento do precedente, ou para que haja uma superação de precedente apenas para o futuro (prospective overruling).
O aspecto temporal da súmula vinculante será abordado em tópico próprio, haja vista a excepcionalidade de expressa previsão constitucional – trazida por emenda à Constituição – de momento específico para a sua vinculação.
A mudança do precedente e o seu aspecto temporal: presente, passado e futuro
O tempo da decisão judicial muitas vezes é um fato que passa despercebido de muitos profissionais da área jurídica. Ao pensar no momento do julgamento, não se pode deixar de atentar para o fato de que a decisão proferida no presente está resolvendo um problema surgido no passado, já que o processo trata do conflito em uma perspectiva pretérita, ou seja, retrospectiva.
Os fatos que deram origem à ação judicial são situações da vida que ocorrem temporalmente antes da decisão judicial, de sorte que o “tempo da decisão” não é o mesmo “tempo dos fatos”. Esse lapso temporal entre os fatos e a decisão pode significar uma mudança de orientação dos tribunais com relação aos temas discutidos.
Pois bem. Sob o ponto de vista do julgador, se já há casos similares ao que está sendo julgado, ele naturalmente deve considerá-los para tomar a sua decisão de maneira coerente com o que foi anteriormente decidido. Esse é o olhar que o julgador deve ter para o passado: verificar o que houve nos fatos levados a julgamento, quais as regras jurídicas então aplicáveis e o que já se decidiu a respeito daquela situação em casos anteriores.
Por outro lado, na perspectiva da criação ou alteração de precedentes, o momento em que uma decisão é proferida pode ser considerado como o “marco zero” de um precedente, já que ele será utilizado no futuro para a solução de casos similares que eventualmente venham a ocorrer. Como afirmado por Schauer[6], é o poder de vincular o futuro antes de ele acontecer. Essa percepção de “efeito futuro” certamente influencia o processo de tomada de decisão no sistema que se utiliza de precedentes judiciais como parâmetro para julgamentos.
Assim, ao mesmo tempo em que o julgador deve olhar para trás, para aferir o que houve no caso concreto e o que já se produziu em termos de decisões a respeito daquele objeto, não pode se abster de pensar no futuro[7]. O julgador de hoje cria o precedente para o julgador de amanhã, pelo que deve necessariamente refletir sobre esse parâmetro que está criando[8].
Nesse sentido, Neil MacCormick e Robert Summers (1997, p. 2) explicam que os precedentes impositivos[9] representam decisões anteriores que, por alguma razão, são utilizadas como modelo para governar outras posteriores decisões, e que isso tem um efeito prospectivo, pois os juízes, quando decidem um caso, sabem que o julgamento será utilizado como parâmetro no futuro e têm consciência de que estão contribuindo para o desenvolvimento do direito.
Quando a mudança de posicionamento de uma Corte é realizada no julgamento de um caso concreto em que se vislumbra que a orientação anterior foi observada pelo jurisdicionado, aplica-se o chamado prospective overrulling. É dizer, a própria corte decide que a alteração de entendimento firmada naquele julgamento não será utilizada no próprio caso, a fim de que a segurança jurídica seja preservada.
Marinoni (2011b, p. 256), citando Eisenberg, destaca que a maior razão para que se tenha o prospective overruling é a proteção da “confiança justificável”, ou seja, uma preocupação temporal com a superação do precedente.
No direito brasileiro, apesar da existência da possibilidade de modulação de efeitos, a questão temporal da mudança de orientação jurisprudencial ganha mais relevo quando se analisa as súmulas vinculantes e a forma como são tratadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
Aspecto temporal da súmula vinculante
Nos termos da Constituição Federal, as súmulas vinculantes possuem eficácia geral e força vinculante após a sua publicação no Diário Oficial. Ocorre que a vinculação da súmula vinculante aos processos pendentes leva à inexorável aplicação retroativa dos seus termos, uma vez que o seu conteúdo será adotado para a resolução de fatos ocorridos antes da publicação no Diário Oficial do enunciado de caráter vinculante.
Isso porque, consoante acima abordado, o processo que está em curso trata de fatos que ocorreram antes da propositura da ação (“tempo dos fatos”), ocasião em que a súmula vinculante ainda não estava aprovada e publicada. Assim, a determinação de que a vinculação deverá ocorrer em todos os julgamentos (“tempo da decisão”) ocorridos a partir de sua publicação no Diário Oficial implica na aplicação da súmula a fatos anteriores à sua elaboração.
A doutrina tradicional de países de tradição de civil law não enxergava problemas na aplicação retroativa da jurisprudência. Wilson de Souza Campos Batalha (1980, p. 52), referenciando Paul Roubier, afirma que “não pode haver conflito entre jurisprudências sucessivas: uma nova jurisprudência aplica-se invariavelmente a todos os processos novos, sem que se tome em consideração a data na qual os fatos do processo ocorreram.”
Entretanto, após a implementação das súmulas vinculantes, essa questão ganhou especial relevância e novos contornos, afinal, trata-se agora de um instituto que vincula não apenas todos os demais órgãos do Poder Judiciário, como também a administração pública e é capaz de gerar Reclamação Constitucional na hipótese de seu descumprimento.
Neste ponto, duas perguntas vêm logo à tona: (1) súmula vinculante gera direito adquirido? (2) Há necessidade de trânsito em julgado das decisões consideradas para a elaboração do enunciado?
Ambas as questões são importantes à medida que o propósito principal da súmula vinculante é gerar segurança jurídica e previsibilidade aos jurisdicionados a respeito de pontos jurídicos relevantes. Considerando que a obediência aos ditames da súmula vinculante não é opcional, seria razoável admitir que alguma espécie de direito subjetivo adviesse do seu enunciado.
É de se notar que o legislador do CPC/15 teve uma preocupação com o aspecto temporal quando determina que poderá haver modulação dos efeitos temporais das decisões que declaram a inconstitucionalidade – seja em controle difuso ou concentrado – para fins de reconhecimento da inexigibilidade de título executivo judicial (arts. 525, § 13[10] e 535, § 6º[11].).
Ressalte-se que nem todo recurso repetitivo ou súmula tratará de controle de constitucionalidade, de modo que não deve se pensar em modulação temporal apenas para as hipóteses de controle de constitucionalidade, já que a estabilidade das relações ocorre também com decisões que tratam de questões ordinárias. Para essas hipóteses, o CPC/15 previu, no art. 927, § 3º.,[12] a possibilidade de modulação dos efeitos da alteração de jurisprudência dominante.
No que tange à segunda questão, embora fosse extremamente recomendável, é certo que não há qualquer exigência constitucional ou legal no sentido de haver necessidade de existir o trânsito em julgado da decisão que será utilizada como precedente para a elaboração da súmula vinculante ou teses de recursos repetitivos. Ao contrário, o STF tem elaborado os enunciados no plenário logo após o julgamento dos casos utilizados como precedentes, sem aguardar sequer a eventual interposição de recurso.
Essa situação de formação de precedente antes de stare decisis gerou problemas de aplicação da Súmula Vinculante n. 12, editada após o julgamento de diversos recursos extraordinários que tratavam sobre a cobrança da taxa de matrícula para cursos de graduação em universidades públicas, todos julgados na mesma sessão, mas antes do trânsito em julgado.
Não se observou, no momento da elaboração da referida súmula, a necessidade de modulação dos seus efeitos – muito embora a Ministra Carmen Lúcia houvesse se manifestado nesse sentido naquele momento[13].
Diga-se desde logo que a modulação no referido caso era necessária pois, sem ela, a partir da publicação do enunciado, dado o seu caráter vinculante, bastava qualquer estudante que tivesse pago tal taxa fazer simples pedido administrativo para obter de volta o valor desembolsado.
A súmula foi editada na sessão que julgou o RE 500.171, um dos precedentes utilizados para a sua elaboração. No entanto, o processo continuou tramitando, com a interposição de recursos internos no STF.
Eis que, três anos depois, em sede de julgamento de embargos de declaração[14], o plenário da Corte resolveu enfrentar a questão da modulação dos efeitos da Súmula Vinculante n. 12. A primeira discussão que se colocou no julgamento dos embargos declaratórios foi a propósito da possibilidade de se realizar a modulação dos efeitos em sede de julgamento daqueles recursos, já que no caso, a rigor, não havia obscuridade, contradição ou omissão a serem sanados, tampouco houve pedido naquele sentido.
Considerou-se possível o conhecimento dos embargos de declaração (muito embora somente para o referido caso, e não para outros em que não houvesse reconhecida repercussão geral) e da atribuição da modulação de efeitos após três anos da edição da súmula, considerando-se tratar de questão de ordem pública[15].
Com essa decisão, determinou-se que a Súmula Vinculante n. 12 só teria efeitos futuros, relativamente às cobranças efetivadas após a publicação do enunciado, ressalvando-se, para fins de aplicação do entendimento sumular retroativamente, àqueles que já haviam intentado ação judicial antes do julgamento.
No caso, o plenário entendeu por dar tratamento diverso a situações idênticas por duas vezes em um só julgamento: (1) possibilidade de analisar a modificação dos efeitos temporais das decisões em sede de embargos de declaração; e (2) resguardar o direito adquirido da situação jurídica consolidada com a súmula vinculante somente daqueles que entraram com ação judicial – preservou-se, em verdade, unicamente o direito dos que buscaram o judiciário, e não de todos os que estavam em situação idêntica: apenas os que entraram com ação judicial até a data da decisão tiveram resguardados seus direitos ao ressarcimento da taxa de matrícula.
Essa inconsistência deixa o jurisdicionado em situação bastante delicada e complicada, pois ao invés de obter previsibilidade e segurança com a força vinculante das tais súmulas, passa a uma maior perplexidade no que diz respeito à postura da Corte Suprema brasileira em relação aos temas julgados.
A mudança do precedente e a modulação temporal de efeitos
Quando a questão da vinculação de precedentes é observada sob a ótica da mudança de direção das decisões judiciais, a insegurança nas relações jurídicas ganha uma dimensão ainda maior do que a alteração legislativa. Por essa razão a previsão contida no supracitado art. 927, § 3º. é tão importante.
Mallet (2005, p. 139) destaca que a garantia constitucional - insculpida em forma de cláusula pétrea no art. 5º. da Constituição Federal - deverá orientar as alterações do entendimento jurisprudencial, de modo a não restar prejudicada a estabilidade das relações jurídicas, tampouco a previsibilidade necessária ao Direito.
O STF havia estabelecido entendimento no sentido de que a “mera alteração de jurisprudência” não gera insegurança jurídica[16], e que somente se poderia modular os efeitos da decisão adotada pelo Supremo no caso de declaração de inconstitucionalidade, em face do estabelecido no art. 27 da Lei n. 9868/98.
Não obstante o referido art. 27 ser indiscriminadamente utilizado pelo STF[17], é certo que há questionamento sobre a constitucionalidade deste dispositivo[18], já que permite que uma norma declarada inconstitucional pelo Supremo permaneça vigente por algum período.
A jurisprudência consolidada gera expectativa legítima ao jurisdicionado, que se vê coagido a agir de acordo com o quanto determinado pelos Tribunais. Num sistema jurídico que, como o nosso, permite o judicial review, a construção jurisprudencial deve levar a uma maior previsibilidade e segurança, funcionando como norte de atuação ao jurisdicionado.
Reconhecendo que a declaração de nulidade, com os efeitos ex tunc que lhe são próprios, pode muitas vezes causar mais danos do que a manutenção da norma inconstitucional no sistema[19], a previsão contida no art. 27 da Lei n. 9868/99 tem sido aplicada pelo STF.
É certo, entretanto, que mesmo antes da Lei n. 9868/99, o STF já se utilizou da modulação dos efeitos temporais de suas decisões, conforme se denota do RE 122.202 (OLIVEIRA, 2008: 59).
Assim, afirmar que somente em face do art. 27 da Lei n. 9868/98 estaria o STF autorizado a modular os efeitos das decisões que tratam da análise de constitucionalidade representa subversão do sistema jurídico atual.
Isso porque, ao se admitir que uma lei ordinária, hierarquicamente inferior à Constituição, possa prever a manutenção no sistema de norma declarada inconstitucional, significa dizer que essa lei está “constitucionalizando” algo inconstitucional.
Ora, se o dispositivo que permite ao STF manter no sistema uma norma declarada inconstitucional - que declaradamente contraria a Constituição Federal – é uma lei infraconstitucional, estamos frente a uma flagrante incongruência lógica. Figurativamente, seria como permitir que o soldado raso autorizasse o major a desafiar o general: uma completa inversão de hierarquia.
Nesses termos, sem adentrar na discussão sobre a nulidade/inexistência da norma declarada inconstitucional, seguindo uma simples análise lógica da hierarquia normativa, não há como se admitir a modulação com base unicamente no artigo 27 da Lei n. 9868/99 (ou dos arts. 525, § 13; 535, § 6º. e 927, § 3º. do CPC). Não se pode ter como elemento autorizador de modulação de decisão de controle de constitucionalidade uma lei ordinária, sob pena de inversão hierárquica do sistema normativo.
A possibilidade de modulação dos efeitos das decisões, especialmente as que tratam de controle de constitucionalidade, deve ter respaldo na própria Constituição Federal. A previsão contida no caput do artigo 5º, que coloca a segurança como direito fundamental, é o fundamento que justifica a modulação temporal dos efeitos das decisões, e não os textos de lei ordinária.
Assim, constata-se a necessidade de se permitir a modulação dos efeitos das decisões como decorrência lógica do sistema, cujo referencial normativo autorizador é a própria Constituição Federal.
Ana Paula Ávila propõe interpretação conforme a constituição do art. 27, fazendo análise com base na ponderação e na argumentação constitucional. Conclui a autora pela constitucionalidade do art. 27[20] (2009, 70-71).
Quando fala dos postulados da unidade e coerência do sistema jurídico para a aplicação do art. 27, entretanto, a autora aparentemente corrobora nossa tese, no sentido de ser decorrência lógica a possibilidade de modulação temporal, sem que seja necessária a previsão legal autorizadora, senão vejamos:
Com efeito, o sistema jurídico é um sistema de normas ordenadas segundo critérios determinados, e a unidade é o atributo que evita a dispersão dessas várias normas, numa multiplicidade de valores singulares e desconexos, permitindo que sejam reconduzidas aos princípios considerados fundamentais. (...)
Do ponto de vista formal, a coerência implica consistência (ausência de contradição) e completude, no sentido mesmo de integridade (o conjunto de proposições apresenta todos os elementos e suas negações) e de coesão (o conjunto de proposições contém suas próprias consequências lógicas). Do ponto de vista material, a coerência implica uma relação de conexão e dependência recíproca entre proposições e seus elementos comuns. Como, nesses casos, a dependência entre as proposições e seus elementos comuns varia em intensidade, a coerência, no sentido material, comporta uma graduação, podendo-se dizer que algo seja mais ou menos coerente. É considerando esse aspecto que se pode falar em uma promoção em graus da normatividade da Constituição, e é isso que justifica a adoção, no controle de constitucionalidade, de técnicas que permitam uma racionalização dos efeitos na declaração de inconstitucionalidade que promova mais a Constituição como um todo (näheramGrunsgesetz). (ÁVILA, 2009, 139-140)
Uma decisão adotada pelo plenário do Supremo Tribunal em um determinado caso concreto tem um efeito bastante forte – ou deveria ter – nas decisões tomadas pelos diversos Tribunais inferiores do Brasil.
De qualquer modo, qualquer decisão tomada pelo plenário do STF tem o condão de nortear a atuação dos Tribunais nacionais, permitindo até mesmo o julgamento monocrático e o impedimento de prosseguimento de recurso, dentre outras consequências[21].
Assim, é certo que a alteração no sentido dos julgamentos proferidos pelo plenário da mais alta Corte de Justiça do país deve ser realizado com muita cautela, de modo a não ferir expectativas legitimamente formuladas e direitos regularmente adquiridos.
A fórmula do art. 27 da Lei n. 9868/99 é criticável por inúmeras razões, mas sem dúvida a razão que mais nos causa incômodo é o fato de ser uma lei ordinária autorizando a manutenção no sistema de lei ou ato normativo inconstitucional. Diga-se, é um dispositivo de hierarquia inferior à Constituição permitindo que norma, às vezes a ela superior - como uma Emenda à Constituição – permaneça válida no sistema.
Não é possível afirmar que o fundamento de validade da permanência de vigência da norma declarada inconstitucional pelo STF, durante o tempo em que permanecerá vigente, será o art. 27 da Lei Ordinária 9.868/99[22].
Entretanto, em muitos casos há a necessidade de modulação dos efeitos das decisões do STF, a fim de preservar a segurança jurídica e a previsibilidade das decisões judiciais e do próprio direito ali concretizado e encontra guarida na própria Constituição Federal, em seu art. 5º, que garante a todos o direito à segurança, aí compreendida também a segurança jurídica – e não no art. 27 da Lei 9.868/99 ou no CPC/15. Esta modulação é uma necessidade sistêmica.
Quando o STF julga um RE com repercussão geral reconhecida ele não está apenas resolvendo um conflito individual de interesses, mas projetando uma conformidade sistêmica por meio do entendimento ali sufragado.
No panorama atual, não se pode negar que um julgamento realizado pelo plenário da mais alta Corte de Justiça do país tem um valor para o sistema jurídico como um todo, e não apenas para as partes envolvidas, daí a razão de ser da preliminar de repercussão geral e do julgamento de recursos repetitivos.
A decisão adotada pelo plenário do STF deve ter efeito paradigmático para todo o ordenamento jurídico, o que confere unidade e coerência ao sistema. Em especial quando ultrapassada a barreira da repercussão geral, restando demonstrado que o julgamento daquela lide ultrapassaria os interesses das partes envolvidas no processo.
Do distinguishing pelo tempo da decisão
É de se ressaltar, entretanto, que nem sempre é possível se pensar em modulação dos efeitos de decisões que são utilizadas como paradigma, o que remete ao aplicador do precedente a tarefa de aferir se se adequa ou não ao caso em julgamento. Justamente nesse momento que se deve verificar qual o referencial normativo vigente no momento em que os fatos levados a julgamento foram praticados – e não somente aquele vigente no instante em que a decisão está sendo proferida.
Cabe ressaltar que a decisão judicial é tomada após a ocorrência da situação fática que levou à propositura da ação judicial, ou seja, a atuação das pessoas numa determinada direção (situação fática) foi orientada por uma prescrição normativa que estava vigente num determinado momento histórico.
O julgamento da ação ocorrerá algum – ou muito – tempo após a ocorrência da situação fática que deu ensejo à sua propositura. Em outras palavras, há o transcurso de um lapso temporal – às vezes significativo – entre o fato ensejador da propositura da ação e o seu efetivo julgamento.
Mas e o que isso tem a ver com a mudança do precedente e seu aspecto temporal? Tudo a ver com a mudança do precedente, em especial se essa mudança de direção no posicionamento jurisdicional se deu após a ocorrência dos que deram origem à ação e antes do seu julgamento.
Ora, se a questão jurídica que chega na fase de decisão em um processo judicial ocorreu muito tempo antes daquele momento de julgamento, a atuação do jurisdicionado se deu em face de um conjunto normativo anterior ao do momento do julgamento, de forma que a perspectiva de “correção da atuação” teve como paradigma um arcabouço jurídico diferente.
Essa circunstância pode, eventualmente, ensejar quebra de segurança jurídica, imprevisibilidade e desconstrução de expectativa legítima firmada por uma orientação jurisprudencial posteriormente superada.
Assim, a demonstração de que a situação fática ocorreu (“tempo do fato”) em momento anterior à consolidação do posicionamento jurisprudencial que se tornou vinculante e que assim se mostra no dia do julgamento (“tempo da decisão”) é fundamento suficiente para justificar a não aplicação do precedente ao caso concreto, ainda que se trate de súmula vinculante.
Trata-se de hipótese de distinção (distinguishing) em razão do tempo decorrido entre o fato que gerou a ação (“fato gerador[23]”) e a decisão, ou seja, a distinção que justifica a não aplicação do precedente àquele processo decorre da previsibilidade gerada pelo entendimento anterior, que era observado no momento do “fato gerador”.
Essa perspectiva de segurança jurídica temporal é fundamental para se assegurar previsibilidade ao jurisdicionado, que age pautado na orientação que é firmada pelos tribunais. Exigir que o cidadão preveja qual será o posicionamento dos tribunais quando sua ação for julgada, e não no momento em que pratica o ato que levou à propositura da ação (“fato gerador”) é absolutamente incompatível com a segurança jurídica que se espera de um Estado de Direito.
Desta forma, em termos práticos, se concebe a distinção pelo tempo da decisão da seguinte maneira: muito embora o caso que esteja para ser julgado trate de situação absolutamente semelhante em termos jurídicos àquela tratada num precedente, será razão suficiente para afastar sua aplicação (distinção/distinguishing) o fato de tal orientação não estar firmada no momento do “fato gerador”.
Com especial razão, o precedente deverá ser afastado se constatado que no momento do “fato gerador” havia orientação jurisprudencial em sentido contrário, mesmo que não tenha ocorrido a modulação dos efeitos da decisão pelo órgão que praticou o overruling, já que a aferição de adequação de aplicação do precedente ao caso em julgamento é feita exclusivamente pelo julgador do caso, e não por quem elabora o precedente.
Conclusão
Em síntese conclusiva, podemos afirmar que a análise do aspecto temporal deveria ser efetivada com mais rigor no que tange à utilização de precedentes vinculantes (seja o precedente judicial, a jurisprudência ou a súmula vinculante), pois a sua criação e superação não podem frustrar as legítimas expectativas dos jurisdicionados no que tange à orientação de comportamento.
A obrigatoriedade da aplicação dos enunciados das súmulas vinculantes a todos os órgãos jurisdicionais a partir da sua publicação no Diário Oficial joga por terra a ideia de segurança e previsibilidade que decorrem das orientações jurisprudenciais, podendo gerar situação de instabilidade institucional, em especial quando a súmula é elaborada em sentido diverso.
O estabelecimento de um momento único para a vinculação (publicação no Diário Oficial), em detrimento da observação da situação fática colocada nos autos (como a data da realização do fato ensejador da discussão e a orientação jurisprudencial vigente naquele momento) retira do jurisdicionado a segurança e previsibilidade em suas atuações.
Em decorrência da existência do “choque” entre a adequação do direito à realidade social (necessidade de alteração do direcionamento da jurisprudência, ou overruling) e a manutenção da segurança jurídica, nossa conclusão é no sentido de que a modulação temporal de efeitos das decisões judiciais, em especial aqueles vinculantes, é uma decorrência lógica do sistema, não sendo necessária qualquer previsão legal neste sentido.
Por fim, mesmo nos casos em que o órgão que estabelece o precedente não realiza a modulação dos efeitos, haja vista a necessidade de se preservar a estabilidade das relações sociais, atribuindo segurança jurídica e previsibilidade ao jurisdicionado, é legítima a realização de distinção (distinguishing) para o afastamento do precedente no caso de mudança de orientação jurisprudencial.
Notas e Referências
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[1] Professora do Curso de Graduação e do Programa de Pós-graduação em Direito da UFRN. Doutora em Direito Constitucional pela UFPE. Mestre em Direito Processual Civil pela PUC-SP. Estágio pós-doutoral na Universidade de Münster. Presidente do IPPC. Membro da ABDPRO. Membro da ANNEP. Membro do IBDP. Diretora Regional do IPDP. Membro do IBDFAM. Membro do CEAPRO. Conselheira Federal da OAB.
[2]Versão revista e atualizada de trecho da tese de doutorado da autora.
[3]Para Schauer (2007), as decisões de todos os Tribunais vinculam a si mesmos – horizontalmente – e às instâncias inferiores – verticalmente. Ainda para o autor, há que se diferenciar o termo “precedente” da locução stare decisis, assim: “Technically, the obligation of a court to follow previous decisions of the same court is referred to as stare decisis (stand by what has been decided), and the more encompassing term precedent is used to refer both to stare decisis and the obligation of a lower court to follow decisions of a higher one. What I say here applies to both kinds of precedent, although stare decisis is to many non-lawyers more counter-intuitive” (2007)
[4]“Distinguishing is obviously one method by which judges loosen the grip of precedent. So too is overruling. When judges overrule a precedent that they are declining to follow it and declaring that, at least where the facts of a case are materially identical to those of the case at hand, a new ruling should be followed instead.” (DUXBURY, 2008, p. 117)
[5]“The process of distinguishing is important, however, not simply as the only means of avoiding a precedent that if applicable would be binding, but equally as a means of avoiding one that is merely of persuasive authority” (2004, p. 275)
[6]Referido por Duxbury, 2008, p. 4.
[7] É o que Schauer (1987) chama de “preço do precedente” (“the price of precedent”), asseverando que os precedentes devem ser observados pelos julgadores ainda quando não haja um sobre aquela questão que está sendo decidida.
[8] O texto, no original: “The most obvious consequence, of course, is that a decision maker constrained by precedente will sometimes feel compelled to make a decision contrary to the one she would have made had there been no precedent to be followed. Although this obvious consequence is no less important for its obviousness, and although I will discuss issues relating to this consequence in the following section, I want to concentrate now on the forward-looking aspect of precedent, and consider how this angle on precedent reveals consequences not quite so obvious. A rule of precedent tells a current decisionmaker to follow the decision in a previous similar case. Using the language I have been employing here, we can say that a current decisionmaker is told to follow the decision of a previous case involving assimilable, if somewhat different, facts. But of course the current decisionmaker of today is the previous decisionmaker of tomorrow. Although it may seem counterintuitive, this fact causes current decisionmaker to be constrained by precedent even if there has been no prior decision. Even without an existing precedent, the conscientious decisionmaker must recognize that future conscientious decisionmakers will treat her decision as precedent, a realization that will constrain the range of possible decisions about the case at hand. If the future must treat what we do now as presumptively binding, then our current decision must judge not only what is best for now, but also how the current decision will affect the decision of other and future assimilable cases. Thus, the current decisionmaker must also take into account what would be best for some different but assimilable events yet to occur” (SCHAUER, 1987).
[9] Tradução nossa para o termo authoritative utilizado no original.
[10] Art. 525, § 13. No caso do § 12, os efeitos da decisão do Supremo Tribunal Federal poderão ser modulados no tempo, em atenção à segurança jurídica.
[11] Art. 535, (...) § 6º. No caso do § 5º, os efeitos da decisão do Supremo Tribunal Federal poderão ser modulados no tempo, de modo a favorecer a segurança jurídica.
[12] Art. 927. (...) § 3º Na hipótese de alteração de jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica.
[13]Nos termos dos debates transcritos às fls. 19 e 20 do STF-DJe n. 214/2008, foram estas as palavras dos Ministros: “A EXCELENTÍSSIMA SENHORA MINISTRA CÁRMEN LÚCIA – Senhor Presidente, só para deixar claro, por causa do número de problemas que podem surgir a partir de agora, com pessoas entrando em juízo, pedindo a restituição, pessoas que saíram, que cobraram durante a vigência desta Constituição. Então, nós podemos ter as universidades com problemas gravíssimos, a partir do julgamento. O EXCELENTÍSSIMO SENHOR MINISTRO CARLOS BRITTO – A resposta está aqui na Constituição, artigo 103-A. O EXCELENTÍSSIMO SENHOR MINISTRO CEZAR PELUSO – Mas os que pagaram, pagaram tão pouco que nem se aventuram a pedir restituição de débito, pois vão receber daqui a trinta anos. O EXCELENTÍSSIMO SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES (PRESIDENTE) – Se surgir essa questão, certamente teremos habilidade para produzirmos uma decisão com modulação de efeitos.” A transcrição demonstra certa arrogância dos membros do STF.
[14] Destaque-se que o Relator, Ministro Lewandoski, apresentou um primeiro voto no sentido de rejeitar os embargso de declaração (v. fls. 224 do RE 500.171 ED/GO), alterando seu posicionamento após os debates ocorridos na Corte.
[15] É de se ressaltar que os Ministros fizeram da repercussão geral um requisito necessário ao conhecimento dos embargos de declaração e da possibilidade de se atribuir modulação aos efeitos de uma súmula vinculante, sem que houvesse qualquer disposição legal ou regimental nesse sentido, tampouco tivesse sido instaurado o incidente para a revisão da súmula.
[16]RE 353.657/PR
[17]Até o dia 23 de fevereiro de 2015 constavam no site do STF 1166 acórdãos e 1100 decisões monocráticas referenciando tal artigo. Pelo sistema de pesquisa atual do site do STF não é possível aferir o total de decisões que consideram o artigo, já que são apresentados apenas resultados selecionados.
[18] ADIN 2154. Destaque-se, neste sentido, o dispositivo do voto do Relator que foi publicado no DOU: “Decisão: Após o voto do Senhor Ministro Sepúlveda Pertence (Relator), que declarava, no ponto, a inconstitucionalidade do artigo 27 da Lei nº 9.868/99, pediu vista dos autos a Senhora Ministra Cármen Lúcia. Presidência da Senhora Ministra Ellen Gracie. Plenário, 16.08.2007.” Até o dia 11 de julho de 2013, o processo permanecia no gabinete da Ministra Carmen Lúcia.
[19] Neste sentido manifestou-se o Ministro Gilmar Mendes nas fls. 70 de seu voto no RE 197.917/SP.
[20] Em suas conclusões, afirma que a teoria das invalidades é compatível com a atribuição de efeitos a atos inválidos, desde que haja autorização legal, sendo faculdade do legislador fixá-lo (2009, p. 169). A seguir, entretanto, fundamenta a possibilidade de aplicação do art. 27 com base no princípio da segurança jurídica (2009, p. 174-175), o que para nós já seria suficiente para fundamentar a modulação de efeitos das decisões de controle de constitucionalidade.
[21] No atual Código de Processo Civil há diversos dispositivos que atribuem força normativa a decisões e súmulas não vinculantes do STF, como o art. 332, que permite o julgamento liminar de improcedência, o art. 496, § 4º., que trata da desnecessidade de remessa necessária, art. 932, IV e V, que aborda a possibilidade de julgamento monocrático de recursos, entre outros.
[22]Sobre a eventual inconstitucionalidade deste dispositivo v. ADIN 2154 e ADIN 2258, ainda não julgadas no que toca ao referido art. 27.
[23] A utilização do termo “fato gerador” tem por objetivo unicamente fazer referência ao ato/fato que deu origem à ação judicial, de modo a destacar que tal fato se destaca temporalmente do momento do julgamento do processo.
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