ABDPRO #145 - Breve entrevista (imaginária) com Pontes de Miranda: “A ciência há de preceder ao fazer-se justiça…”

02/09/2020

Coluna ABDPRO

Nossa empreitada começa de forma reflexiva, intimamente solitária e angustiada…[1]

Causa-nos perplexidade, de há muito, a atabalhoada falta de direção do “labor jurídico brasileiro”, e aqui por uma questão de clareza conceitual especifico que trato como “labor jurídico brasileiro” a atividade majoritária dos atores, dos diversos segmentos, que trabalham com o ordenamento jurídico: juízes, membros do ministério público, advogados, acadêmicos, doutrinadores…

Vivemos uma era de pouca reflexão, de certa incompreensão, de um elevado grau de desinteligência, de ausência de fundamentos, de desprezo científico…

No meio jurídico não é diferente… o sincretismo metodológico, o solipsismo voluntarista, o ativismo que até outrora soslaiava in abscondito, o agigantamento e/ou acirramento entre os Poderes da República causando desequilíbrio e desarmonia no pacto republicano a sobrepujar os cheks and balances… todas essas situações tornaram-se corriqueiras.

Em meio a todo esse caos, existem fatos relevantes que precisam de destaque, breves sussurros de ventura… Um deles é a necessidade de celebrarmos a existência do vulto perene do maior jurista nascido em terras brasileiras – Pontes de Miranda.

O intelectual que nascido no último quarto do século XIX e que morreu no último quarto do sec. XX foi prodigioso em sua obra múltipla, que abrange várias áreas do conhecimento, da matemática ao direito.

E é no direito que ele nos legou sua maior contribuição, com a construção sólida de um pensamento lógico, sem ser hermético, mas com aberturas de cunho sociológico, histórico e até psicanalítico.

Nesse contexto, venho expôr algumas ideias generalistas de Pontes de Miranda sobre a “Ciência do Direito”, que ele registra na apresentação da primeira edição do seu magnífico Tratado de Direito Privado. Escolhi a forma de uma entrevista imaginária para melhor guiar o leitor pelos ensinamentos ponteanos.

Com a palavra Pontes de Miranda!

           

P – Professor Pontes de Miranda, o que é viver sob a égide do direito, sob a égide de um sistema jurídico?

R – “Os sistemas jurídicos são sistemas lógicos, compostos de proposições que se referem a situações da vida, criadas pelos interesses mais diversos. Essas proposições, regras jurídicas, prevêem (ou vêem) que tais situações ocorrem, e incidem sôbre elas, como se as marcassem. Em verdade, para quem está no mundo em que elas operam, as regras jurídicas marcam, dizem o que se há de considerar jurídico e, por exclusão, o que se não há de considerar jurídico. Donde ser útil pensar-se em termos de topologia: o que entra e o que não entra no mundo jurídico. Mediante essas regras, consegue o homem diminuir, de muito, o arbitrário da vida social, a desordem dos interêsses, o tumultuário dos movimentos humanos à cata do que deseja, ou do que lhe satisfaz algum apetite.” [2]

 

P – O que há de peculiar nas proposições jurídicas?

R – “As proposições jurídicas não são diferentes das outras proposições: empregam-se conceitos, para que se possa assegurar que, ocorrendo a, se terá a'. Seria impossível chegar-se até aí, sem que aos conceitos jurídicos não correspondessem fatos da vida, ainda quando êsses fatos da vida sejam criados pelo pensamento humano.” [3]

 

P – Qual a função do direito?

R – “No fundo, a função social do direito é dar valores a interêsses, a bens da vida, e regular-lhes a distribuição entre os homens. Sofre o influxo de outros processos sociais mais estabilizadores do que êle, e é movido por processos sociais mais renovadores; de modo que desempenha, no campo da ação social, papel semelhante ao da ciência, no campo do pensamento. Esse ponto é da maior importância.” [4]

 

P – De quem é o papel de interpretar o direito?

R – “Para que se saiba qual a regra jurídica que incidiu, que incide, ou que incidirá, é preciso que se saiba o que é que se diz nela. Tal determinação do conteúdo da regra jurídica é função do intérprete, isto é, do juiz ou de alguém, jurista ou não, a que interesse a regra jurídica. O jurista é apenas, nesse plano, o especialista em conhecimentos das regras jurídicas e da interpretação delas, se bem que, para chegar a essa especialização e ser fecunda, leal, exata, a sua função, precise de conhecer o passado do sistema jurídico e, pois, de cada regra jurídica, e o sistema jurídico do seu tempo, no momento em que pensa, ou pensa e fala ou escreve.” [5]

 

P – Esclareça como se dá esse “interpretar” o direito…

R – “Diz-se que interpretar é, em grande parte, estender a regra jurídica a fatos não previstos por ela com o que se ultrapassa o conceito técnico de analogia. Estaria tal missão compreendida no poder do juiz e, pois, do intérprete. Diz-se mais: pode o juiz, pois que deve proferir a sententia quae rei gerendae aptior est, encher as lacunas, ainda se falta a regra jurídica que se pudesse estender, pela analogia, ou outro processo interpretativo, aos fatos não previstos. Ainda mais: se a regra jurídica não é acertada, há de buscar-se, contra legem, a regra jurídica acertada. Nota-se em tudo isso que se pretendem contrapor a investigação do sistema jurídico, em toda a sua riqueza, dogmática e histórica, e a letra da lei. Exatamente o que se há de procurar é a conciliação das três, no que é possível; portanto, o sentido – dogmática e historicamente – mais adequado às relações humanas, sem se dar ensejo ao arbítrio do juiz.[6]

 

P – Mas esse comportamento interpretativo não poderia descambar para uma intervenção judicial na esfera de atuação do legislativo… não seria uma característica daquilo que no tempo presente chamamos ativismo?

R – “A separação dos poderes, legislativo e judiciário, esteia-se em discriminação das funções sociais (política, direito); e a história do princípio, a sua revelação através de milênios, a sua defesa como princípio constitucional, apenas traduz a evolução social. O êrro do legislador pode ser de expressão: prevalece, então, o pensamento que se tentou exprimir, se êsse pensamento é captável no sistema jurídico; não se desce ao chamado espírito, ou à vontade do legislador, porque seria atravessar a linha distintiva do político e do jurídico; não se contraria o princípio de que a lei é para ser entendida pelo povo, no grau de cultura jurídica em que se acham os seus técnicos, e não para ser decifrada. Por outro lado, as circunstâncias sociais podem ter mudado: o envelhecimento da regra jurídica participa mais do julgamento do povo do que do decorrer do tempo; o problema torna-se mais de mecânica social do que de fontes e de interpretação das leis.” [7]

 

P – Parece complexo… como isso funcionaria? O senhor pode exemplificar…

R – “O sistema jurídico contém regras jurídicas; e essas se formulam com os conceitos jurídicos. Tem-se de estudar o fáctico, isto é, as relações humanas e os fatos, a que elas se referem, para se saber qual o suporte fáctico, isto é, aquilo sobre que elas incidem, apontado por elas. Aí é que se exerce a função esclarecedora, discriminativa, crítica, retocadora, da pesquisa jurídica. O conceito de suporte fáctico tem de ser guardado pelos que querem entender as leis e as operações de interpretação e de julgamento. A regra jurídica 'Todo homem é capaz de direitos e obrigações na ordem civil" (Código Civil, art. 1.°) é regra jurídica de suporte fáctico simplicíssimo: "Homem". Se há um ser humano, se nasceu e vive um homem, a regra jurídica do art. 1.° incide. Incide, portanto, sobre cada homem. Cada homem pode invocá-la a seu favor; o juiz tem dever de aplicá-la. Porém nem todos os suportes fácticos são tão simples. "São incapazes relativamente, os maiores de dezesseis e menores de vinte e um anos" (art. 6.°, I). Suporte fáctico: ser humano, dezesseis anos feitos. "Cessando a confusão, para logo se restabelecer, com todos os acessórios, a obrigação anterior" (art.1.052). Suporte fáctico: A devedor a B, A sucessor do direito de B, mas a sucessão é temporária, qualquer que seja a causa.” [8] [9]

 

P – Nesses termos há de se exigir leis ciosamente elaboradas…

R – “É fácil compreender-se qual a importância que têm a exatidão e a precisão dos conceitos, a boa escolha e a nitidez deles, bem como o rigor na concepção e formulação das regras jurídicas e no raciocinar-se com elas. Seja como fôr, há sempre dúvidas, que exsurgem, a respeito de fatos, que se têm, ou não, de meter nas categorias, e da categoria em que, no caso afirmativo, se haveriam de colocar. Outras, ainda, a propósito dos próprios conceitos e das regras jurídicas, que têm de ser entendidas e interpretadas.” [10]

 

P – O jurista, então, tem uma hercúlea missão no trato com o direito…

R – “A missão principal do jurista é dominar o assoberbante material legislativo e jurisprudencial, que constitui o ramo do direito, sôbre que disserta, sem deixar de ver e de aprofundar o que provém dos outros ramos e como que perpassa por aquele, a cada momento, e o traspassa, em vários sentidos. Mal dá êle por começada essa tarefa, impõe-se-Ihe o estudo de cada uma das instituições jurídicas. Somente quando vai longe a sua investigação, horizontal e verticalmente, apanhando o sobredireito e o direito substancial, é que pode tratar a regra jurídica e o suporte fáctico, sôbre que ela incide, avançando, então, através dos efeitos de tal entrada do suporte fáctico no mundo jurídico.” [11]

 

P – Perdoe-me a insistência mas parece que voltamos à questão da interpretação e sua coadjuvação… o que se apresenta é uma indissociação patente entre direito e interpretação… o Senhor pode discorrer com mais profundidade?

R – “Interpretar leis é lê-las, entender-lhes e criticar-lhes o texto e revelar-lhes o conteúdo. Pode ela chocar-se com outras leis, ou consigo mesma. Tais choques têm de ser reduzidos, eliminados; nenhuma contradição há de conter a lei. O sistema jurídico, que é sistema lógico, há de ser entendido em tôda a sua pureza. Se, por um lado, há tôda a razão em se repelir o método de interpretação conceptualístico (que se concentrava na consideração dos conceitos, esquecendo-lhe as regras jurídicas em seu todo e, até, o sistema jurídico), método que nunca foi o dos velhos juristas portugueses nem o dos brasileiros, temos de nos livrar dos métodos que não atendem a que as regras jurídicas se fazem com os conceitos e êsses tem a sua fixação histórica e hão de ser precisados. Principalmente, tem-se de levar em conta que a regra jurídica, a lei, viveu e vive lá fora, - foi para ser ouvida e lida pelos que hão de observá-la e é para ser lida, hoje, por êles. Nem o que estava na psique dos que a criaram, nem o que está na psique dos que hoje a criam, têm outro valor além do que serve à explicitação do que é que foi ouvido e lido por aqueles a que foi dirigida, ou o é por aquêles a quem hoje se dirige. O elemento histórico, que se há de reverenciar, é mais exterior, social, do que interior e psicológico. Se assim se afasta a pesquisa da vontade do legislador, no passado e no presente, o subjetivismo e o voluntarismo que - há mais de trinta e dois anos - combatemos (nosso Subjektivismus und Voluntarismus im Recht, Archiv für Rechts und Wirtschaftsphilosophie, 16, 522-543), há de evitar-se passar-se a outro subjetivismo e a outro voluntarismo, - o da indagação da vontade da lei. Ratio legis não é voluntas legis; lei não quer; lei regra, lei enuncia. O sentido é o que está na lei, conforme o sistema jurídico, e não o que se atribui ao legislador ter querido, nem à lei querer agora. (…) Interpretar é revelar as regras jurídicas que fazem parte do sistema jurídico, - pode ter sido escrita e pode não estar escrita, mas existir no sistema, pode estar escrita e facilmente entender-se e apresentar certas dificuldades para ser entendida. Nas monocracias, os trabalhos preparatórios ficavam mais ocultos, raramente se publicavam com propósito de servir à interpretação, e quase sempre se perdiam, ao passo que a interpretação autêntica tinha todo o prestígio de lei, uma vez que não existia o princípio constitucional de irretroatividade da lei. Nas democracias, com o princípio da irretroatividade da lei, a interpretação autêntica ou é nova lei, ou não tem outro prestígio que o de seu valor intrínseco, se o tem; é intetpretação como qualquer outra, sem qualquer peso a mais que lhe possa vir da procedência: o corpo legislativo somente pode, hoje, fazer lei para o futuro, não, para trás, ainda a pretexto de interpretar lei feita. O tribunal ou juiz que consultasse o Congresso Nacional cairia no ridículo, se bem que isso já tenha ocorrido na Europa. Se o legislador A ou os legisladores A, A' e A", quiseram a e todos os outros legisladores quiseram b, mas o que foi aprovado e publicado foi c, cé que é a regra jurídica. Bem assim, se todos quiseram a, e foi aprovado e publicado c. Os trabalhos preparatórios são, portanto, elemento de valor mínimo. O que foi publicado é a letra da lei, com as suas palavras e frases. Tem-se de interpretar, primeiro, gramaticalmente, mas já aí as palavras podem revelar sentido que não coincide com o do dicionário vulgar (pode lá estar rescisão, e tratar-se de resolução; pode lá estar condição, e não ser de condido que se há de cogitar; pode falar-se de êiro, e só se dever entender o êrro de fato, e não o de direito). O sentido literal é o sentido literal da ciência do direito, tendo-se em vista que o próprio redator da lei ao redigi-la, exercia função da dimensão política, e não da dimensão jurídica, pode não ser jurista ou ser mau jurista, ou falso jurista, o que é pior. Demais, estava êle a redigir regra jurídica, ou regras jurídicas, que se vão embutir no sistema jurídico e tal inserção não é sem conseqüências para o conteúdo das regras jurídicas, nem sem conseqüências para o sistema jurídico. Jurisprudência contra a lei é jurisprudência contra êsse resultado. Por isso, regra jurídica não escrita pode dilatar ou diminuir o conteúdo da regra jurídica nova. Daí, quando se lê a lei, em verdade se ter na mente o sistema jurídico, em que ela entra, e se ler na história, no texto e na exposição sistemática. Os êrros de expressão da lei são corrigidos facilmente porque o texto fica entre êsses dois componentes do material para a fixação do verdadeiro sentido.” [12]

 

P – Há liberdade interpretativa do juiz?

R – Na revelação de regra jurídica não escrita é que se nota maior liberdade do juiz. Nota-se; mas há essa liberdade? Revelar a regra jurídica, se não está escrita, lendo-se na história e no sistema lógico, não é operação diferente de se ler na história, no texto e no sistema lógico. Não se cria a regra jurídica não escrita, como não se cria a regra jurídica escrita; ambas são reveladas, razão por que falar-se em lacuna do direito somente tem sentido se se critica o sistema jurídico, isto é, se se fala de iure condendo, ou se se alude a visão de primeiro exame, a algo que não se viu à primeira vista. Lacuna preenchida não é lacuna; lacuna que não é preenchível é lacuna de iure condendo.” [13]

 

P – Qual o limite da aplicação da analogia pelo magistrado?

R – “Analogia só se justifica se a ratio legis é a mesma (Ubi eadem ratio, idem ius); só se admite se, com ela, se revela, sem se substituir o juiz ao legislador: onde ela revela regra jurídica não-escrita, é analogia iuris, provém de explicitação do sistema jurídico e ainda é apenas reveladora, e nao criadora. (A) Quando se revela por analogia legal, analogia legis, o que em verdade se faz é explicitar que a) a regra legal exprimiu, no texto, princípio particular, e b) há princípio mais geral em que êle se contém. (B) Quando se revela por analogia iuris, explicita-se regra jurídica que se há de ter como a), pois já existe, não escrita, no sistema jurídico. Fora de (A) e de (B), a chamada analogia é edicção de regra jurídica, contra o princípio da separação dos poderes.” [14]

 

P – No início de nossa entrevista o senhor me disse que: Os sistemas jurídicos são sistemas lógicos, compostos de proposições que se referem a situações da vida”. Sendo os sistemas jurídicos sistemas lógicos como o senhor relaciona essa logicidade sistêmica de regras e/ou enunciados com a sociologia e a história, áreas tão presentes em seu pensamento?

R – A atividade mais relevante da ciência do direito consiste, portanto, em apontar quais os têrmos, com que se compuseram e com que se hão de compor as proposições ou enunciados, a que se dá o nome de regras jurídicas, e quais as regras jurídicas que, através dos tempos, foram adotadas e aplicadas. A sucessão histórica dessas regras obedece a leis sociológicas. Outra atividade, que não é menos inestimável do que aquela, está no interpretar o conteúdo das regras de cada momento e tirar delas certas normas ainda mais gerais, de modo a se ter em quase completa plenitude o sistema jurídico. Desde mais de dois milênios, porém principalmente nos últimos séculos, longo esforço de investigação, servido, aqui e ali, pela aparição de alguns espíritos geniais, conseguiu cristalizar a obra comum em enunciados sôbre os próprios enunciados e sôbre os têrmos, tornando cada vez "menos imperfeitas" a linguagem e a lógica do direito. A primeira necessidade da ciência jurídica passou a ser a mais rigorosa exatidão possível no delimitar os conceitos (E. I. BEKKER, System, IX). Os decênios passados puderam contemplar a obra imensa do século XIX, perceber o que não obtivera, até agora, "precisão"; e preparar-nos para a continuação criadora, que nunca seria possível sem a mole dos resultados anteriores e a depuração incessante de êrros. O valor do método etnológico assenta em que precisamos conhecer as instituições jurídicas em seu bêrço, mesmo em seus nascedouros, ou para distinguirmos dos outros processos sociais de adaptação o direito, ou para podermos escalonar, no tempo, as formas que o direito foi assumindo. Só assim poderemos datar o que apareceu no momento próprio e o que apareceu em momento impróprio (regressões, prematuridade legislativas). Com o método etnológico e o histórico-comparativo, podemos alcançar a discriminação das fases, na evolução social (método sociológico científico ou faseológico, que foi sempre o seguido em nossas obras, quer de sociologia, quer de dogmática jurídica). O valor dos estudos históricos para o conhecimento do direito vigente assenta em que não se pode conhecer o presente, sem se conhecer o passado, não se pode conhecer o que é, sem se conhecer o que foi. Não se poderia situar, no tempo, na evolução jurídica, cada enunciado do sistema lógico; nem se colheria o que estava na psique dos elaboradores da lei, porque estava no ambiente social (e continuou de estar), e se supôs incluso nos textos, ou entre os textos; nem se poderiam fixar certos conceitos, nem se determinariam certas categorias, que têm os seus limites marcados pelos fios históricos. Ainda onde o direito mudou muito, muito se há de inquirir do que não mudou. O direito muda muito onde em muito deixou de ser o que era.” [15]

 

P – Direcionando à essência do seu pensamento jurídico… Qual a noção fundamental do direito?

R – “A noção fundamental do direito é a de fato jurídico: depois, a de relação jurídica; não a de direito subjetivo, que é já noção do plano dos efeitos; nem a de sujeito de direito, que é apenas têrmo da relação jurídica. Só há direitos subjetivos porque há sujeitos de direito; e só há sujeitos de direito porque há relações jurídicas. O grande trabalho da ciência jurídica tem sido o de examinar o que é que verdadeiramente se passa entre homens, quando se dizem credores, titulares ou sujeitos passivos de obrigações, autores e réus, proprietários, excipientes, etc. O esforço de dois milênios conseguiu precisar conceitos, dar forma sistemática à exposição, pôr êsses conhecimentos à disposição dos elaboradores de leis novas e aprimorar o senso crítico de algumas dezenas de gerações, até que, recentemente, se elevou a investigação ao nível da investigação das outras ciências, para maior precisão da linguagem e dos raciocínios. A subordinação dela à metodologia que resultou da lógica contemporânea, inclusive no que concerne à estrutura dos sistemas, é o último degrau a que se atingiu. (…) A incidência da regra jurídica é que torna jurídicos os bens da vida. Muitas vêzes, porém, a incógnita é a regra jurídica; outras vêzes, o conjunto de fatos, o suporte fáctico, em que a regra jurídica incide. Ali, responde-se às perguntas - ‘Há a regra jurídica e qual é?’; aqui, a duas outras - ‘Quais os elementos que compõem o suporte fáctico; e qual a natureza de cada um dêles?’ Tais questões são inconfundíveis com as da irradiação de efeitos dessa impressão da norma jurídica no suporte fáctico.”  [16]

 

P – Qual a importância de atentar-se à história dos sistemas jurídicos?

R – “Os que não vivem atentos à história dos diferentes sistemas jurídicos dificilmente podem apreciar, com profundidade, a grande vantagem, que teve o Brasil, em receber o direito português e a doutrina jurídica dos séculos XV em diante, sem que direito estrangeiro fôsse imposto por invasores ou em imitações apressadas, como aconteceu a muitos dos povos hispano-americanos, em relação ao Código Civil francês. O Esboço de TEIXEIRA DE FREITAS, que nos teria dado o melhor Código Civil do século XIX, prestou-nos, não se transformando em Código Civil, o serviço de pôr-nos em dia com o que êle genialmente entrevia e permitiu-nos sorrir dos imitadores do Código Civil francês, enquanto Portugal, imitando-o, deixou que a sua história jurídica se fizesse mais nossa do que dêle.” [17]

 

P – Chegado o fim de nossa entrevista, qual mensagem o senhor deixa para nossos leitores?

R – “A ciência precisa, para ser verdadeiramente prática, não se limitar ao prático. (…) A falta de precisão de conceitos e de enunciados é o maior mal na justiça, que é obrigada a aplicar o direito, e dos escritores de direito, que não são obrigados a aplicá-lo, pois deliberam êles-mesmos escrever. O direito que está à base da civilização ocidental só se revestirá do seu prestígio se lhe restituirmos a antiga pujança, acrescida do que a investigação científica haja revelado. Não pode ser justo, aplicando o direito, quem não no sabe. A ciência há de preceder ao fazer-se justiça e ao falar-se sôbre direitos, pretensões, ações e exceções.” [18]

 

Notas e Referências

[1]     Esta coluna é dedicada à memória do maior jurista brasileiro de todos os tempos, Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda.

[2]     MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado – tomo V. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2012. p. 13.

[3]     MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado – tomo V. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2012. p. 13.

[4]     MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado – tomo V. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2012. p. 13.

[5]     MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado – tomo V. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2012. p. 13.

[6]     MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado – tomo V. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2012. p. 14.

[7]     MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado – tomo V. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2012. p. 14.

[8]     MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado – tomo V. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2012. p. 14-15.

[9]     As remissões legais feitas por Pontes de Miranda são do Código Civil de 1916.

[10]   MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado – tomo V. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2012. p. 15.

[11]   MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado – tomo V. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2012. p. 15.

[12]   MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado – tomo V. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2012. p. 15-17.

[13]   MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado – tomo V. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2012. p. 17.

[14]   MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado – tomo V. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2012. p. 17.

[15]   MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado – tomo V. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2012. p. 18-19.

[16]   MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado – tomo V. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2012. p. 19.

[17]   MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado – tomo V. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2012. p. 24.

[18]   MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado – tomo V. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2012. p. 26.

 

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

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