ABDPRO #137 - A DECISÃO PARCIAL E A RELAÇÃO COM AS QUESTÕES DE FATO

08/07/2020

Coluna ABDPRO

Imagine essas situações processuais.

Em determinada situação de conflito de interesses, houver uma demanda em que há um pedido de dano moral e outro de dano material. Ou, uma ação possessória com pedido cumulado de condenação em perdas e danos e indenização dos frutos. Ou um acidente de trânsito que gerou uma demanda em que se pleiteia a restituição por danos materiais do prejuízo já existente, os lucros cessantes do período em que não se utilizou o veículo e danos estéticos. Ou uma ação de exigir contas com a cumulação de apuração de haveres. Ou uma ação de investigação de paternidade com pedido de estipulação de prestação de alimentos.

Ou, então, imagine que há uma pluralidade de partes nos polos, seja em um deles, seja em ambos, com a existência de um litisconsórcio que não seja unitário. Dois autores pleiteando um pedido contra o réu ou dois réus se defendendo de um pedido de um autor, ou, então, uma situação de vários autores e vários réus.

O que todas essas situações têm em comum? Todas essas situações processuais têm em comum a complexidade objetiva, seja pela pluralidade de partes, seja pela pluralidade de pedidos, tornando a própria jurisdição, apesar de una, um complexo de relações jurídicas a serem resolvidas pelo Judiciário, uma a uma, por mais que seja em uma só sentença.

Todavia, nas concepções situacionais descritas acima, todas as relações jurídicas – seja pela cumulação de pedidos, seja pela pluralidade de partes – devem ser julgadas somente no momento da sentença? Se as questões de fato pertinentes a um desses capítulos forem resolúveis, já será possível a prolação de decisão sobre parcela da demanda?

De maneira geral, um processo pode ser simples ou objetivamente complexo.

Por simples entende-se uma pretensão deduzida que tem como partes um autor e um réu, com somente um pedido. Diante de uma hipótese como essa, o transcorrer procedimental é uno, com uma unidade em busca da resolução das questões cognitivas – quaisquer delas – para culminar no ato sentencial resolutivo de mérito, ou, excepcionalmente, julgar extinto sem mérito.

Por outro lado, um processo objetivamente complexo é aquele que os pedidos ou partes são plurais. Por pluralidade de partes significa a existência de mais de um componente em um ou ambos os polos da demanda. Já no tocante aos pedidos seria a cumulação de mais de um pedido naquela pretensão.

Em qualquer das duas pluralidades, o processo tem uma série de demandas a serem expostas ao mesmo tempo, com a necessidade de que o juízo enfrente e responda todas as questões existentes e, posteriormente, os pleitos ali realizados, pela própria completude da jurisdição, mesmo diante de uma complexidade das relações jurídicas.

Diante da formação de uma pluralidade de relações jurídicas naquela pretensão, o processo passa a ser, consequentemente, complexo, tanto pela cumulação de pedido quanto pela pluralidade de partes.

Qualquer que seja a cumulação existente no processo o transforma em uma cumulação de objetos a serem decididos, tornando-o complexo em sua processualidade e, ainda, na quantidade de relações jurídicas a serem decididas.

Dada essas complexidades objetivas do processo, cada resolução judicial deve ocorrer plenamente, até pela necessidade da prestação jurisdicional ser completa. Se existem várias partes em cada polo, cada entrelaçado de relação jurídica deve ser enfrentada, mesmo que seja para uma análise da impossibilidade de julgamento de mérito.

Desse modo, um processo objetivamente complexo representa a junção de várias ações internalizadas em uma só demanda por jurisdição. E, se são plúrimas relações jurídicas dentro de um só processo, há a possibilidade de que parcela das relações postas para a jurisdição já possam ser resolvidas, enquanto o restante não tenha ainda a possibilidade de enfrentamento, postergando, procedimentalmente, a resolução para momento posterior.

Numa situação com as exemplificadas acima, podem ser cindidas?

O art. 356 do CPC responde positivamente, com a abertura legal para que a prestação jurisdicional originalmente complexa de modo objetivo possa ser cindida no procedimento comum, bem como já era possível em determinadas situações em procedimentos especiais.

Já o art. 354, parágrafo único do CPC igualmente responde de modo positivo, dada a viabilidade da prolação de uma decisão de parcela do processo sobre a impossibilidade de alcançar-se o pronunciamento de mérito, com uma decisão extintiva, por incidência de algum dos incisos do art. 485 do CPC, contudo que impacte sobre parcela do processo e não sua integralidade.

Dada a positivação destes dispositivos normativos, não restam dúvidas de que um processo complexo objetivamente pode ser cindido, com a possibilidade de prolação de uma decisão parcial, seja sem resolução de mérito, seja com resolução de mérito.

No entanto, o problema que percebi e construí não foi a possibilidade da cisão cognitiva do processo e o seu fracionamento decisório, mas um problema a partir dessa viabilidade e o qual exponho o resultado dessa construção problemática: se é possível essa cisão, quais seriam os critérios que a lei, diante dos arts. 354, parágrafo único e 356 do CPC, constrói para a autorização da cisão cognitiva e procedimental, com a decisão parcial?

Esse é o cerne desse texto[1].

Qualquer processo contém uma série de questões a serem decididas e, nesse ponto, é importante a interligação com a cognição judicial.

A cognição judicial está calcada no trato de questões, enfrentamento sobre diversas questões necessárias para que o juízo possa conhecer, enfrentar e resolver pontos cruciais para o desenvolvimento da demanda. As questões não se apresentam de modo estanque, com divisões possíveis de enquadrá-las facilmente, podem ser divididas entre questões de fato e de direito, incidentes e principais, preliminares e prejudiciais, dependendo sempre do prisma que se tenha para a análise, podendo, para tanto, ser um misto de cada ponto dessa divisão.

A análise cognitiva deve ocorrer à medida que as questões aparecem no processo e são necessárias de enfrentamento para possibilitar o desencadear do procedimento. Evidentemente que há uma lógica nessa organização das questões, como as questões prévias, aquelas que são, necessariamente, analisadas de modo anterior ao mérito.

Essas premissas são necessárias de serem postas e definidas: (i) qualquer demanda tem divisão entre cognição sobre as questões de admissibilidade e questões de mérito; (ii) qualquer cognição de mérito se subdivide entre cognição fática e jurídica.

Para o desenvolvimento da consequência da complexidade objetiva do processo e as questões de fato, considera-se a divisão entre questão de fato e de direito como possível, apesar de difícil, em dois polos: (i) a existência de controvérsia sobre algum ponto de fato necessário para a subsunção; (ii) a necessidade de instrução probatória sobre essa questão para possibilitar a subsunção.

A atividade do juízo se dividirá, ao menos procedimentalmente, em um momento para definição das questões de fato, com a necessidade, ou não, da instrução probatória e, após a definição destas, o início da resolução das questões de direito, com a subsunção pertinente para a resolução das questões e a aptidão para a responder a questão principal e ao pedido, com a prolação da decisão da demanda, aquela que terá o condão de formar coisa julgada.

Mas, as questões de fato não perfazem capítulos da demanda, somente trabalham diante de uma cognição judicial necessária para definição da narrativa fática a ser considerada como um suporte fático concreto.

O problema a ser enfrentado é se existe a relação entre complexidade objetiva do processo e as questões de fato.

O processo objetivamente complexo tem uma diversidade de relações jurídicas e, consequentemente, várias questões a serem resolvidas, sejam aquelas prévias – de fato ou de direito, sejam aquelas de mérito e para que seja possível o fracionamento decisório, essas questões devem ser igualmente plurais.

As questões de fato têm total relevância para a prestação jurisdicional e para a reconstrução cognitiva da base do concreta para que a norma seja aplicada, resolvendo o conflito. A prestação jurisdicional sempre analisará questões controvertidas sobre fatos, com ou sem a necessidade de uma fase específica para a produção de provas pelo juízo e pelas partes, para o melhor entendimento e convencimento de como os fatos ocorreram, diante da narrativa apresentada.

Dada essa importância, a quantidade de questões de fato, o entrelaçamento destas questões plurais e a possibilidade de resolubilidade de uma delas e a necessidade de instrução de outra se torna questão a ser analisada, justamente para estabelecer a importância desse momento, a relação com a cisão da demanda e dos capítulos da decisão.

Essas questões de fato, ao serem enfrentadas, devem ser estudadas no tocante ao relacionamento destas com a cognição das questões de mérito e o próprio mérito, seja num processo simples, seja num processo objetivamente complexo.

Essa relação entre questões de fato e cada capítulo do processo, cada pedido realizado ou relação jurídica existente, dada a pluralidade destas, é importante para a resolução da própria demanda, seja como um todo, seja parcial, com interligação sobre quantidade de questões, relações sobre cada ponto de influência jurídica e a possibilidade de cisão ou não dos capítulos do processo.

Dessa forma, a possibilidade de cisão cognitiva de um processo objetivamente complexo passa pela resolução de questões de fato e a abertura para que parcela do processo seja julgado antecipadamente e o restante do processo ainda necessite de produção de provas, com a postergação para um momento posterior.

Quanto mais complexo objetivamente for um processo, a tendência é existir mais questões de fato a serem enfrentadas, o que importa em uma pluralidade de questões de fato. E o modo com que estas se relacionam com cada capítulo da demanda é importante para o estabelecimento da influência em cada matéria, em cada pedido.

Todavia, não basta que haja uma complexidade objetiva no processo, com pluralidade de pedidos ou de partes nos polos, outros requisitos são pertinentes, os quais assim delineia-se: a fixação de requisitos para a prolação de uma decisão parcial, com o fracionamento decisório no processo objetivamente complexo.

Para essa construção perceptiva dos requisitos configurativos de uma situação de bifurcação cognitiva há a necessidade de relacionar o processo objetivamente complexo com a pluralidade de questões de fato, uma vez que estas que serão resolúveis ou não e, dessa maneira, possibilitarão a ocorrência de um fracionamento decisório.

A cisão cognitiva e o fracionamento decisório são inerentes ao próprio processo objetivamente complexo, mas dependem de uma pluralidade de questão de fatos a serem resolvidas, uma vez que somente constando uma questão de fato na demanda, com duas relações jurídicas, com ambas dependendo de tal resolubilidade, quando esta sobrevier, o processo estará pronto para a prolação da sentença.

Consequentemente, há a necessidade, no processo objetivamente complexo, que haja uma pluralidade de questões de fato, para, após a percepção cognitiva sobre estas e suas possíveis resolubilidades e impactos em cada capítulo, entender como possível o fracionamento decisório.

Em qualquer processo, a resolubilidade da questão de fato é antecedente às questões de direito, com a necessidade de uma cognição prévia num caminho anterior a ser seguido para conceder a aptidão à resolução da questão de direito e, posteriormente, a decisão como um todo. Quando um processo for complexo objetivamente, seja pela cumulação de pedidos, seja pela pluralidade de partes em um dos polos, o processo será dividido em capítulos para serem resolvidos de modo autônomo.

Numa hipótese de um processo complexo objetivamente, cada capítulo terá uma relação própria com as questões de fato, seja uma relação com uma questão ou com várias questões. E, ainda, essa questão de fato pode ser impactante para diversos capítulos concomitantemente, sem necessariamente ser uma relação de modo fechado e estanque com um só capítulo.

Há, portanto, uma grande dinâmica complexa entre as relações jurídicas a serem solucionadas e a quantidade de questões de fato que lhe subsidiarão.

As questões de fato existentes num processo objetivamente complexo podem ser plurais ou somente uma, o que não ensejaria um fracionamento, mesmo com a complexidade do processo. Para que os capítulos decisórios sejam fracionáveis, necessita-se de duas possibilidades inter-relacionais com as questões de fato e os capítulos: (i) pluralidade de questões de fato e interligação específica de cada pedido com um fato; (ii) pluralidade de questões de fato, com uma destas com impacto em ambos os pedidos e uma outra questão de fato que impacta somente um dos pedidos.

Sobre a cisão cognitiva e o fracionamento decisório, esse é um ponto relevante para a construção dos requisitos para a ocorrência da decisão parcial. Mesmo diante de um processo complexo objetivamente, o que determinará a possibilidade de cisão será a relação da demanda e de seus capítulos decisórios autônomos com as questões de fato, seja da própria demanda, seja de situações específicas, como fatos atinentes a um pressuposto processual específico.

Para tanto, há de se separar a complexidade objetiva do processo e as questões de fato da relação entre cada capítulo, a sua complexidade entre admissibilidade e mérito e as questões de fato inerentes à admissibilidade.

Dessa feita, os requisitos construídos como pertinentes para a cisão cognitiva e o fracionamento decisório são: (i) a complexidade objetiva do processo por cumulação de pedidos ou pluralidade de partes; (ii) a pluralidade de questões de fato; (iii) a resolubilidade ou estabilização via incontrovérsia de uma questão de fato e pendência de, no mínimo, outra questão de fato; (iv) a dependência de parcela do processo somente da questão de fato já resolvida/estabilizada.

Por mais que o ordenamento processual não mencione nada sobre a relação da questão de fato e a possibilidade da prolação de decisões parciais, cisões cognitivas e fracionamentos decisórios, evidentemente que a pluralidade de questões de fato e resolubilidade parcial destas são igualmente requisitos possibilitantes e autorizantes para o julgamento parcial de uma demanda que for complexa objetivamente nos moldes do exposto, com a necessidade da construção inter-relacional entre os dois institutos permissiva para o fracionamento.

Para a prolação de uma decisão parcial com mérito, os requisitos devem estar presentes e a possibilidade de julgamento parcial daquela determinada parcela da demanda, relacionando com as questões de fato que autorizam essa cognição exauriente parcial, diante da construção narrativa feita pelo autor e contraproposta pelas possíveis atitudes do réu, permitindo, para tanto, a bifurcação cognitiva.

Todavia, para uma decisão parcial sem mérito há uma notória diferença sobre as questões de fato, com essas divididas entre dois vieses, um deles quanto à narrativa fática do autor, do mesmo modo de qualquer outra decisão, mas com a existência de questões de fato específicas sobre as hipóteses impeditivas de continuidade do processo, com a extinção daquela parcela do pedido.

Por fim, as questões de fato são tão importantes para o fracionamento decisório e a prolação de uma decisão parcial quanto a complexidade objetiva do processo.

 

Notas e Referências

[1]     Esse texto é uma conclusão da tese de doutoramento defendida em 2019: LEMOS, Vinicius Silva. Do fracionamento decisório: a pluralidade de questões de fato e sua resolubilidade parcial como requisitos da cisão da decisão judicial. 2019. 392 p. Tese de Doutorado. Orientação do Prof. Dr. Lúcio Grassi de Gouveia. Coorientação: Prof. Dr. Fredie Souza Didier Júnior. Recife: Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Católica de Pernambuco - UNICAP, 2019.

 

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