ABDPRO #115 - A DESCRITIVIDADE DA CIÊNCIA DO DIREITO: Diálogo com Humberto Bergmann Ávila

05/02/2020

Esse estudo é parte de um projeto maior de pesquisa feita sobre a teoria dos princípios, que integrará a obra "Dos princípios às normas: interpretação e linguagem do Direito". Tanto este artigo quanto a obra da qual faz ele parte são em homenagem a Humberto Bergmann Ávila, dialogando com o seu pensamento.

Ávila não é acorde com a interpretação que fiz de alguns aspectos dos seus textos, sobretudo quando impugno o ceticismo hermenêutico que ele não acata existir no conjunto das suas obras. Faço essa advertência preliminar para ser o mais fiel possível ao diálogo que tenho tido a honra de empreender com ele, ao tempo em que reafirmo a minha admiração sincera ao pensamento do jurista gaúcho, um dos maiores do nosso país 

Esse texto que entrego à publicação é parte substantiva da versão do primeiro capítulo da minha obra, faltando-lhe os acréscimos e ajustes que estão sendo diuturnamente feitos. Publico-o para entabular desde logo o diálogo com a comunidade jurídica, receber críticas e sugestões, as quais, desde já, agradeço.

 

Premissas.

O direito é linguagem. Não apenas linguagem, porém, e muito menos ainda apenas linguagem formalizada. Há o direito positivo e a Ciência do Direito. Estamos a nos referir àquele através dessa; ali, linguagem-objeto versada, aqui, pela metalinguagem. Quando uma linguagem fala sobre outra, atua em distinto plano, tomando para si aquela “a cujo respeito se fala”, fazendo-a objeto seu[1]. A metalinguagem, ao falar sobre outra, é ato de fala cujo nêustico pode variar conforme seja a finalidade para a qual aquela é usada, não sendo sempre ele, o nêustico, descritivo, vez por outra também assumindo a função ilocucionária prescritiva. Esse é ponto importante que quero desde já assentar: a sobrelinguagem, por deitar-se sobre outra, necessariamente não o faz descritivamente, tematizando-a como objeto do conhecimento. Quando uma norma jurídica prescreve que a morte abre a sucessão, toma para si deonticamente a outra norma que prescreve o que seja a sucessão e vai até onde aquela se irradia.

A finalidade do direito é regrar a vida em sociedade. Partindo do fático, da realidade da vida social, constrói normativamente, através da linguagem, preceitos que deverão incidir na zona material da conduta humana, para que seja ela obrigatória, permitida ou proibida, com o que se esgotam as possibilidades deônticas da normatividade. É da maior importância compreender essa finalidade conformadora de condutas do direito, sobretudo para que desde o início não fiquemos aprisionados a uma visão formalista, redutora do objeto do Direito às formas lógicas, às estruturas proposicionais ou aos enunciados formalizados em textos vertidos nos documentos oficiais, sejam físicos ou eletrônicos.

O direito que é objeto do Direito é tanto o direito objetivo quanto o direito subjetivo; a subjetivação do direito é já no plano eficacial, quando o direito objetivo trouxe para dentro do mundo jurídico os suportes fáticos concretizados, já qualificados de jurídicos. Todo efeito é efeito de fato jurídico lato sensu; todo direito subjetivo é efeito que ocorre dentro de uma relação jurídica conversa, portanto após os fatos do mundo da vida, recortados no plano político da atividade jurislativa, sofrerem a incidência das normas jurídicas no plano do pensamento, sendo eles, os fatos brutos hipotisados no antecedente da proposição normativa, adjetivados de jurídicos. O ser-jurídico do fático é decorrente da sua esquematização normativa prévia[2]. Esse é outra assertiva capital, que deve ser guardada na retentiva: as normas jurídicas têm uma função classificadora do mundo dos fatos, separando os relevantes dos irrelevantes para ingresso no mundo jurídico. Trata-se de um recorte político a partir das relações sociais, econômicas, religiosas, morais, culturais, etc., as quais se tornaram sobressalientes e reclamaram a atenção do ordenamento jurídico.

Dissemos que a finalidade do direito é regrar a conduta humana. Outrossim, enfatizamos que as normas jurídicas são seletoras de propriedades, separando no mundo dos fatos o que é e o que não é relevante para o direito. Para que o direito cumpra a sua função de processo de adaptação de social é curial que as normas jurídicas sejam prévias aos fatos descritos em seus suportes fáticos, para sobre eles incidir e juridicizá-los, imputando-lhes efeitos jurídicos. A norma jurídica é, por conseguinte, sempre prius em relação ao processo de juridicização[3]. De fato, fossem as normas posteriores às condutas que visam regrar, como poderiam cumprir a sua função conformadora do agir humano? Com razão, então, Habermas assevera que a pretensão de validade associada aos atos de fala regulatórios está dependente da validade fática de uma norma que antecede já sempre a esses atos. É dizer, a significação do ato de fala é doada pela norma que antecedentemente prescreve a sua realização e os seus efeitos[4].

Se olharmos mais de perto os fatos jurídicos como se encontram no mundo da vida, antes de qualquer preocupação cognitiva sobre eles, defrontaremo-nos acotiadamente com os fatos institucionais, que são aqueles vivenciados atemática e prerreflexivamente no seio do universo comunitário de pessoas indeterminadas; veremos, então, que a sua significação mundana, o seu ser-no-mundo-como-tal, é produto de uma rede significativa prévia que apanha os fatos brutos e os introduz em uma nova vivência simbolicamente mediada[5]. Não são apenas e tão-somente fatos brutos; são fatos agora tratados pela joeira da significação que os recorta, os valora, dando-lhes uma nova roupagem socialmente reconhecida como tal. Os fatos jurídicos institucionais, como situações jurídicas ou relações jurídicas básicas que são, exprimem um exemplo eloquente sobre o papel que joga a doação de sentido anterior ao acontecer dos fatos brutos, para que prescritivamente sejam enformados pela linguagem do direito positivo através do fenômeno da incidência da norma jurídica. O dinheiro, para empregar um exemplo usado largamente por Searle, não seria mais do que um papel não fosse o simbolismo que o faz vinculante a um dado valor de compra, mediante normas jurídicas que regulam a sua emissão e uso. O mesmo se diga do plástico que se transforma em cartão de crédito pelo sentido que lhe atribui o ordenamento jurídico[6].

Cada uma das premissas que estabelecemos rapidamente nessa parte introdutória reivindicaria um estudo mais aprofundado. Sem embargo, as tomamos, para efeito desse estudo, como pontos de partida pressupostos: (a) o direito visa atuar na zona material da conduta humana; (b) as normas jurídicas são prévias às condutas que visam regrar; e (c) os fatos jurídicos institucionais são vividos prerreflexivamente pela comunidade do discurso através do simbolismo jurídico.

 

1. Existem normas jurídicas? Do realismo ao ceticismo da corrente analítica genovesa.

Para que falemos sobre a natureza da linguagem da Ciência do Direito, haveremos de nos perguntar a respeito do seu estatuto epistemológico, é dizer, acerca da existência de objetos sobre os quais ela metodicamente faça asserções e lhes dê um tratamento sistemático. Diz-se, comumente, que o objeto do Direito seria as normas jurídicas, é dizer, as proposições prescritivas com a finalidade de interferir na conduta humana.

Vamos tomar essa questão em sério para que possamos analisar, inclusive, se há realmente uma “ciência” do Direito ou apenas um jogo de linguagem sobre fatos, objetos ou estados de coisa presentes no espaço e no tempo e, portanto, verificáveis como tais. Ademais, se as normas jurídicas não existirem, se as proposições normativas forem apenas predições sobre o que poderá acontecer nos tribunais, estará fadada ao fracasso qualquer tentativa de entabular uma teoria da interpretação dos textos positivos do ordenamento jurídico, salvo se tomarmos a atividade interpretativa como um exercício de advinhação do futuro pelos impulsos emotivos que os textos legais possam causar.

 

1.1. A teoria da inexistência de normas jurídicas ou morais. Incognoscibilidade das proposições normativas.

Tomamos por certo que existem normas cuja finalidade é regrar a conduta humana, partilhadas e vividas intersubjetivamente. Essa não é uma afirmação tranquila, contudo, e insuscetível de questionamentos. Não faltam os que entendem que as normas jurídicas ou morais simplesmente não existem ou são incognoscíveis. Analisemos algumas correntes teóricas que rejeitam a existência de proposições normativas.

 

1.1.1. Realismo norteamericano.

O realismo norteamericano é um ataque ao que seria o conceitualismo e, também, às categorias metafísicas de que fariam uso o Direito e os juízes quando do proferimento das suas decisões. Dado que as proposições normativas não poderiam ser tidas como verdadeiras ou falsas, ou sobre elas nada se poderia afirmar assertoricamente, o direito positivo nada mais seria do que enunciados preditivos sobre a atuação judicial diante um caso concreto.

Para o realismo, não importam as significações, os conceitos jurídicos como entidades autônomas cognoscíveis, tampouco as relações jurídicas de direito material. O direito que conta é fato verificável como objeto no tempo e espaço, de modo que outra coisa não seria o direito senão as relações sociais resolvidas em seus conflitos como os tribunais decidem nos casos concretos colocados à sua análise.

Holmes, em seu célebre discurso proferido em 1897 na Universidade de Boston, chamava a atenção de que o dever jurídico e o direito subjetivo outra coisa não seriam senão a predição sobre uma dada decisão dos tribunais[7]. Assim, o direito seria um corpo de dogmas ou predições sistematizadas, estudado para auxiliar as profecias feitas por advogados ou outros operadores profissionais em suas atividades cotidianas. Estudar o direito positivo, incluindo aí os precedentes dos tribunais, seria forrar-se de instrumentos práticos para analisar consequências materiais de uma dada situação concreta visando prever o que sobre ela poderia decidir o tribunal. Numa palavra, seria a profecia daquilo que as cortes efetivamente fariam que se deveria entender como direito[8].

A bem de ver, é inegável que o realismo norteamericano paga um elevado pedágio ao positivismo oitocentista e à redução do discurso científico àquele símile ao das ciências naturais. O que não poderia ser medido, pesado e sentido seria simplesmente incognoscível. Pensar o direito como um conjunto de normas jurídicas seria reduzi-lo a entidades simbólicas abstratas sobre as quais nada se poderia dizer com valor de verdade ou falsidade.

O Direito deveria usar o método das ciências biológicas, tal qual deveria fazê-lo a sociologia. Nem sempre isso é dito claramente pelos luminares do realismo norteamericano, porém os pressupostos epistemológicos utilizados deixam evidenciados essa busca por cientificidade; as proposições da ciência do Direito deveriam ter um valor veritativo, o que seria apenas alcançável se o seu objeto fosse os fatos verificáveis e não entidades metafísicas. Assim, proposições normativas e precedentes apenas seriam meios para predições; o direito real seria, porém, o fato resolvido em concreto pelos tribunais. Não se trataria, pois, de um sonho hegeliano, mas parte integrante da vida dos homens[9]. Jocosamente, Holmes chega a se referir ao teorizar jurídico como semelhante a um teorema de um matemático que ao final do trabalho intelectual diria: "O melhor disso tudo é que poderá nunca ter a menor utilidade para qualquer pessoa vir a fazer um uso qualquer!"[10].

Holmes segue o pragmatismo de William James na rejeição aos conceitos abstratos; rejeição, diga-se, típica da cultura pragmática americana. Tanto Oliver W. Holmes quanto W. N. Hohfeld[11] buscaram oferecer a construção dos conceitos jurídicos em termos empíricos, ou seja, a partir das decisões judiciais concretas, tomadas, portanto, como fatos, como comportamento sociologicamente passível de investigação. O que Holmes chamaria de mundo fantasma ou sobrenatural das entidades jurídicas teria, segundo ele, esvanecido; agora, o realismo propunha em seu lugar o pensar os conceitos jurídicos como preditivos e ligados ao comportamento judicial (judicial behavior). Ou seja, os advogados e práticos deveriam observar as decisões anteriores proferidas em casos concretos - portanto, verificáveis - para tentarem prever para os seus clientes ou interessados o que, diante de uma nova situação concreta, poderiam eventual e probabilisticamente os tribunais decidir.

Poderíamos nos perguntar, sobretudo diante de uma sociedade complexa semelhante à americana, cujo liberalismo econômico é um modo de expressão do capitalismo mais avançado, como poderia ser o direito apenas um conjunto de predições do comportamento judicial, consoante proposto pelo realismo, sem que os institutos jurídicos tivessem uma força normativa para regrar a vida comunitária. Uma das instituições mais caras ao capitalismo, inclusive, é a propriedade, que vista sob a ótica dos direitos subjetivos – conceito típico da dogmática jurídica –, seria oponível erga omnes e estruturada por normas jurídicas, tornando-se uma instituição aceita por todos, como definida por vasta tradição jurídica europeia, desde o direito romano.

Dado o caráter fundante da propriedade privada para a história americana, seria de se estranhar que o realismo jurídico não reconhecesse a sua existência. Um dos nomes mais representativos do realismo estadunidense, Felix Cohen, não se assombra com essa questão fundamental. Segundo ele, partindo dos pressupostos do realismo, o direito é aquilo que o juiz diz que é no caso concreto, porém, mais importante até do que o juiz diz seria o que ele faz[12]. O dizer o direito, a juris dictio, seria apenas uma atividade produtora de enunciados que representariam categorias ideais; importaria ao realismo, no entanto, o agir, o fazer, as relações sociais como elas se dão, conforme interesses econômicos ou de outra natureza, visando sobretudo garantir a paz social. Mais do que a afirmação de se ter o domínio sobre a coisa (material ou imaterial), importam os atos concretos de domínio que contam com a ajuda do poder público em dada situação[13]; assim sendo, a propriedade privada seria um fato, e não uma simples palavra ou conceito ideal e metafísico[14].

Para o realismo, enfim, a própria pergunta sobre o conceito jurídico de propriedade privada já seria, na verdade, sem sentido, porque qualquer definição que se desse sobre um instituto abstratamente considerado estaria desde já fadada ao fracasso, de vez que recairia em enunciados emotivos, ou éticos, ou abstratos; desse modo, a propriedade privada, para o realismo, é na essência não uma coleção de objetos físicos, mas sim a relação social entre homens sobre uma coisa material ou imaterial. É nas relações sociais que a propriedade se apresenta e, em caso de conflitos, conforme as decisões dos tribunais cuidem sobre ela com vistas sempre a uma situação concreta. Com isso, evitar-se-iam o uso de conceitos metafísicos, sobrenaturais e vazios[15].

A essa altura, o realismo estadunidense já bebe da mesma fonte filosófica que o realismo escandinavo, é dizer, do positivismo lógico. Por isso, Felix Cohen sustentará o ataque funcional aos conceitos inverificáveis, que nada mais revelariam do que pseudoproblemas, conforme ensinava o primeiro Wittgenstein[16]. É fundamental sublinhar esse ponto de entrelaçamento entre o tardio realismo americano com o escandinavo, ambos nutridos pelos pressupostos assumidos pelo positivismo lógico.

O método funcional proposto pelo realismo estadunidense é um ataque aos conceitos transcendentais, sendo a coisa não o que ela é (que seria uma questão metafísica sem sentido), mas, sim, o que ela faz: “a thing is what it does”, assevera Cohen, com o consequencialismo em que termina caindo o realismo jurídico. É a soma dessas consequências, então, que irão constituir o inteiro sentido do conceito. Substituem-se, no realismo, as entidades metafísicas, transcendentais, pelos constructos ou funções da linguagem[17].

O que o realismo americano assenta é um afastamento da tradição assimilada pelo direito continental europeu, do império das codificações e do conceitualismo, rejeitando assim a existência das normas jurídicas como significações intersubjetivamente vivenciadas. Os fatos, as decisões judiciais, as consequências das tomadas de decisão nos casos concretos, esses seriam os objetos da preocupação dos juristas e do Direito, visto como um conjunto articulado de proposições assertóricas em face de decisões anteriores: o direito positivo não passaria de predições sobre como os tribunais irão decidir sobre um conflito entre pessoas em dada situação concreta[18].

 

1.1.2. Realismo escandinavo.

Tal qual o seu correlato americano, para o realismo escandinavo as proposições veiculadas nos textos positivos nada mais seriam do que predições sobre como os comportamentos poderiam se dar ou como os tribunais decidiriam a seu respeito, em caso de conflitos. Não existiram valores, como também não existiriam normas, de vez que não seriam objetos físicos, que pudessem ser submetidos à verificabilidade empírica.

A incognoscibilidade das proposições normativas e axiológicas fora também sustentada com firmeza pelo realismo escandinavo, por exemplo, cujos expoentes maiores da sua construção teórica - Hangeström, Alf Ross e Olivercrona -  partiam do entendimento de que todo o conhecimento concerniria apenas ao real, sendo a realidade constituída por objetos situados no tempo e no espaço[19]. A norma jurídica, tomada como significação, seria tão somente uma entidade ideal e sem possibilidade de desafiar qualquer proposição sobre a sua verdade ou falsidade, dado que ela não teria existência no tempo e no espaço; para que a proposição normativa pudesses ser objeto de análise sobre a sua qualidade veritativa, necessário que ela estivesse relacionada a uma situação concreta, real, no sentido que antes nos referimos. Sequer poder-se-ia falar em lógica das proposições normativas, uma vez que a lógica, segundo o realismo escandinavo, resumir-se-ia apenas à apofântica, cujas proposições teriam a valência verdade/falsidade; não teria sentido a valência validade/invalidade porque relativa a idealidades inexistentes no espaço e no tempo, que seriam insuscetíveis de reivindicar uma expressão em linguagem[20].

Noutras palavras, a proposição jurídica não seria em realidade sequer uma proposição, não tendo significado, apenas podendo ser contemplada em sua existência real como uma afirmação que expressaria certos fenômenos psicofísicos, razão pela qual o conteúdo da norma poderia ser definido como um conjunto de representações de ações imaginárias da parte de uma pessoa determinada em uma situação também imaginária. É dizer, aplicar o direito nada mais seria do que tomar essas ações imaginárias como modelos para a conduta todas as vezes em que as situações correspondentes a elas se verificarem na vida real[21].

Em resumo, para o realismo jurídico escandinavo, as normas jurídicas não seriam mais do que impulsos para representações mentais (impulsive phantasms)[22], estímulos para a promoção da paz social. A verificabilidade do direito decorreria da possibilidade de análise da conduta futura dos juízes em razão desses impulsos[23]. O Direito, então, seria um conjunto de proposições preditivas do que os tribunais, em certas circunstâncias, iriam basear a sua decisão; e essa predição feita pelo Direito apenas seria possível sobre a base de um complexo conjunto de fatos sociais (incluindo fatos psicológicos, condutas e atitudes).

É inegável que o realismo escandinavo é a aplicação ao Direito do positivismo lógico de Russell, Carnap, Schlick e do primeiro Wittgenstein.

 

1.1.3. Realismo jurídico genovês: (mais) uma teoria analítica do Direito.

Uma das correntes da teoria do Direito que mais tem hoje influência no meio jurídico nacional é também uma expressão do realismo jurídico, ao menos como ela própria se denomina. Formada por juristas italianos da Universidade de Gênova, a sua preocupação temática é sobretudo a respeito da linguagem do Direito, com particular interesse sobre o papel e limites da interpretação jurídica.

Vou analisar aqui de passagem aspectos do realismo genovês, porém desde logo asseverando que não se trata bem de espécie do realismo jurídico como concebido pelos norteamericanos e escandinavos. É que os seguidores dessa corrente genovesa não se prendem ao direito como fato, a estudar predições de decisões futuras das cortes a partir de decisões pregressas, tomando o agir social de seguir “normas” apenas como impulsos psicofísicos que se dão no espaço e no tempo. Há nos escritos dos autores que se identificam com o realismo genovês uma análise muito mais voltada para o estudo da linguagem jurídica e o processo de construção de sentido dos textos positivos (fontes formais), sem rejeitar - senão muito debilmente - a existência das instituições jurídicas. Essa característica é perfeitamente observável quando algum desses autores escreveram sobre determinado instituto jurídico tratado pelo direito positivo, normalmente passando a examiná-lo sob uma inconsciente abordagem que seria considerada tout court metafísica para o realismo americano ou escandinavo[24].

Riccardo Guastini, o nome mais reluzente da Universidade de Gênova, faz uma releitura do realismo jurídico, para considerá-lo uma conjunção de três teses para ele estreitamente conexas: (a) uma tese ontológica, que responderia a demanda sobre que tipo de entidade é o direito, o que - convenhamos - de saída já seria para o realismo jurídico americano e escandinavo uma questão sem sentido; (b) uma tese metodológica, tendo por objeto a interpretação, para responder a questão de que tipo de atividade é a atividade interpretativa; e (c) a tese epistemológica, que se ocuparia em saber em que consiste o conhecimento científico do direito[25]. Ao tratar do que chama de realismo metodológico, Guastini o define simplesmente como uma teoria cética da interpretação, é dizer, não seria ela, a atividade interpretativa, um ato de conhecimento, mas de atribuição de significado ao texto normativo, o que a faria uma atividade decisória e não de natureza cognitiva[26].

Para que pudéssemos posicionar o pensamento desenvolvido pela escola genovesa dentro do movimento do realismo jurídico, teríamos que ampliar de tal sorte o seu significado que qualquer forma de ceticismo hermenêutico faria já do seu defensor um integrante dessa corrente, como de resto fez Guastini ao incluir Hans Kelsen nesse saco de gatos em que transformaram o uso daquele signo. Para essa transubstanciação da teoria pura do direito em espécie do realismo jurídico qua tale, embutiu-se nessa etiqueta qualquer posicionamento que assumisse metodológica e epistemologicamente a refutação do jusnaturalismo, privilegiando o empirismo e o não-cognitivismo ético.

Ao nosso sentir, porém, Kelsen nunca poderia estar catalogado entre os defensores do empirismo, tomando justamente em conta o núcleo central daquilo que resultou na sua teoria pura do direito, inclusive pela construção teórica da entidade contrafática (diria Oliver W. Holmes, sem rodeios: fantasmagórica) da norma fundamental como fundamento de validade do ordenamento jurídico, além da sua inegável inspiração filosófica advinda do criticismo kantiano, responsável pela adoção da separação mais consequente entre ser e dever-ser de origem humeana. Diversamente, uma abordagem empírica, como a feita grosso modo pelo realismo jurídico americano e escandinavo, reduziria os significados legais àqueles reconhecidos como fatos empiricamente conhecidos através das decisões judiciais, hábeis a permitirem que novas cadeias de eventos sociais viessem a suscitar predições sobre como os tribunais decidiriam em situações imaginativamente símiles[27].

Ao fazer essa separação entre ser e dever-ser e assumi-la na medula da sua teoria pura do direito, Kelsen, embora sem manter-se fiel às consequências que deveria sacar daí, continuou preso ao entendimento de que o conteúdo dos enunciados é incognoscível, nada obstante a simples admissão do dever-ser que é a norma já revelar não ser ela tomada apenas como portando um conectivo sintático, a cumprir uma função meramente lógica. Há o dever-ser sintático, porém há-o semântica e pragmaticamente também. É preso a essa contradição que ele promove todos os esforços para retirar do campo de estudo do Direito o conteúdo das proposições normativas e a sua observância (ou não), resumindo o seu campo objetal apenas ao direito positivo como estrutura formal[28]. Ao reduzir o objeto do Direito a tão angustos limites formais, excluindo da sua preocupação a realização no mundo do ser do dever-ser que são as normas, Kelsen evidentemente não poderia ser posto no seio do empirismo.

A alocação de Kelsen na nominata dos autores do realismo jurídico nos serve de argumento para rejeitar a existência de um realismo genovês, salvo se desfiguramos aquele conjunto de pressupostos que convencionou-se chamar de realismo. De outra banda, os italianos e os seus seguidores não negam a existência da norma jurídica como proposição prescritiva, porém rejeitam possa ser ela uma significação previamente dada no enunciado normativo antes do ato de aplicação atributivo de sentido. Há um compromisso com o não-cognitivismo ético e com o ceticismo, nada obstante seja ele bem mais débil na prática do que afirmado compromissória e teoricamente.

Compreendo a corrente analítica italiana, no plano dos seus postulados teóricos, como uma forma radical de relativismo, em que o sujeito empírico passa a ser o demiurgo a posteriori das normas jurídicas, podendo emprestar aos enunciados normativos qualquer significação. A norma não seria uma significação antecipadamente dada para ser aplicada, ainda que contrafaticamente, porque os sentidos, a rigor, nunca estariam acabados ou prontos, sendo o enunciado veiculado pelas fontes do direito não mais do que uma referência ou uma moldura na construção de sentido; destarte, a norma jurídica não seria objeto do conhecimento, mas produto do ato de interpretação. O direito positivo, em nenhuma instância, seria tomado com conteúdo possível de ser conhecido, mas um fazer-se sempre in fieri, em construção, sem que existisse qualquer critério para estabelecer qual a interpretação correta e aquela interpretação errada[29]. Seria o sujeito quem criaria a norma em concreto quando da sua aplicação; noutras palavras, para o ceticismo à la gènoise o intérprete não erraria nunca, ele prescreveria na medida em que concederia significação ao enunciado positivado[30].

Esse ponto é de sobeja importância: há compromissos assumidos como pontos de partida teóricos pela corrente analítica genovesa - como de resto em todo ceticismo - que são esmaecidos na exposição dogmática e se tornam débeis na sua aplicação prática. É o que se dá com o ceticismo da corrente analítica genovesa.

 

1.2. As normas jurídicas como significações atribuídas aos enunciados prescritivos. A criatividade normativa do intérprete.

1.2.1. A teoria pura do direito e as normas como molduras.

É comum a afirmação segundo a qual Hans Kelsen construiu a sua teoria pura do direito limitando o campo cognoscitivo da Ciência do Direito à sua estrutura formal. Para ele, os enunciados normativos seriam molduras cujo conteúdo seria incognoscível. A rigor et pour cause, não haveria em toda a sua obra uma preocupação mais profunda com a teoria da interpretação, salvo um ou outro texto esparso; nesse sentido, é justa a afirmação de Humberto Ávila de que Kelsen teria sofrido a influências do Círculo de Viena e do seu positivismo lógico[31].

Nada obstante, é necessário acatar cum granus salis a coerência da obra kelseniana na exposição da tese da incognoscibilidade da norma jurídica. Kelsen assere no início da sua principal obra que o ato de enunciar e o significado da enunciação são coisas distintas, de modo que a expressão racional de um ato o liga a um sentido posto pelo enunciante para ser entendido pelos outros[32]. Como o ato ponente de normas expressa uma significação que é um dever-ser, a sua expedição é feita justamente para ser compreendida, é dizer, para fazer a geração de um sentido objetivável que estaria ligado ao próprio ato. A essa altura, porém, Kelsen coxeia na evolução da sua exposição e afirma que a norma funciona como esquema de interpretação[33]. Fosse a norma um esquema ou uma moldura de interpretação não seria a rigor um dever-ser, uma proposição prescritiva dotada de validade e eficácia. Ou bem a norma seria uma moldura - e norma não seria, mas enunciado - ou bem seria a norma um sentido que significaria que algo deve-ser; sentido esse objetivado[34].

Kelsen, no início da sua teoria pura do direito, usa o signo “norma” como significação, como dever-ser, não como enunciado ou texto[35]. Todavia, em um artigo publicado em 1934 e depois incorporado no mesmo ano à sua obra magna, ele assevera que a norma seria uma moldura - é dizer, forma - que admitiria vários conteúdos possíveis. Há aí o uso ambíguo do signo “norma”, tomado como expressão verbal e vontade expressada[36]. A balburdia terminológica não é sem razão, porém. É que o jurista vienense advoga a indeterminação do conteúdo normativo, tomando o ato formal ponente de normas como um ato de vontade cujos sentidos possíveis expressados estão abaetados naquela moldura ou quadro; dado que não haveria apenas um significado correto, interpretar nada mais seria do que buscar o conhecimento dessas várias possibilidades significativas[37]. Em Kelsen, portanto, o aplicador deve/pode usar uma das possíveis significações aceitas pela moldura da norma geral, não havendo um direito preexistente, sendo a escolha da significação a ser adotada no ato de aplicação uma matéria afeta à política, não ao Direito[38].

O ceticismo kelseniano quanto à possibilidade de conhecimento da norma jurídica o faz reduzir o Direito ao estudo da forma, do sistema jurídico como estrutura lógica, o que o impossibilita de levar a sério em suas consequências a distinção kantiana - que domina a sua obra - entre ser e dever-ser, cuja relevância o colocaria diante do enfrentamento da possibilidade da “existência” do dever-ser não apenas como conectivo proposicional sintático, porém também como categoria semântica e pragmaticamente fundamental para o estudo do direito positivo. Há algumas outras questões relevantes que esse approach formalista deixa pendente de solução e sobre as quais Kelsen passou ao largo, como, por exemplo, a análise de como se formaria o consenso sobre a competência de alguém de veste talar para exercer uma função de imperium, cujo papel social desempenhado apenas possuiria sentido jurídico se houvesse uma norma anterior que atribuísse àquela pessoa um plexo de poderes, investindo-lhe em uma autoridade funcional[39]. Diante do conceito de norma como moldura, essa afetação de competência a uma autoridade careceria de sentido, nada obstante Kelsen dê um passo atrás e tome a norma atributiva de poderes como prévia ao ato da autoridade que põe outra norma, tendo aquela como o seu fundamento de validade[40].

A escolha de sentidos possíveis dentro da moldura que seria a norma jurídica, ao contrário do que dito por Kelsen, não é uma questão política, mas substancialmente possui natureza jurídica; a interpretação é matéria afeta à teoria geral do Direito, não podendo ser tratada à margem da teoria jurídica, porque as normas, como proposições deônticas, são voltadas para realizar no ser o seu dever-ser, conformando a conduta humana. É essa a finalidade do direito: regrar a vida em sociedade, as relações intersubjetivas, impurificando-se, como dizia com finura Lourival Vilanova. E outra coisa não é o regramento da vida humana coercitiva e institucionalmente senão aquilo a que chamamos direito.

A teoria pura do direito se esvanece em sua ânsia de asseio da faticidade quando ingressa na análise dos institutos jurídicos fundamentais, como situação jurídica, direito subjetivo, pretensão, dever, propriedade, etc. Enquanto o realismo jurídico estadunidense simplesmente nega a existência de um “direito” de propriedade como entidade abstrata, Kelsen não destoa do tratamento conceitual que os pandectistas alemães lhe emprestaram, gastando não pouca tinta para tratar da correta compreensão dos institutos jurídicos, quando trata da estática jurídica[41], discutindo o conceito de pessoa física e pessoa jurídica como realidades jurídicas criadas pela Ciência do Direito, usadas com utilidade pelo direito positivo. Diante dessa própria exposição dos institutos jurídicos, Kelsen, ao contrário do que sustentado por Guastini, não poderia de modo algum ser catalogado entre os defensores do realismo jurídico, porque eles simplesmente impugnam qualquer incursão no trato do que chamariam jocosamente de entidades fantasmas ou metafísicas, absolutamente estranhas à realidade[42].

 

1.2.2. A norma jurídica como proposição integralmente prescritiva: a semantização do nêustico.

Para Hans Kelsen, a norma (rectius, o enunciado prescritivo) como moldura possui sentidos possíveis, que o aplicador poderá escolher sem que se possa afirmar que ele teria usado ou não um sentido correto. Dentro do quadro significativo que seria a norma jurídica, a escolha da significação seria um ato político, portanto estranho ao estudo da teoria pura do direito. Ora, se há uma moldura de significações, poderiam elas ser conhecidas e escolhidas, o que pressuporia que os sentidos prescritivos seriam passíveis de cognição: se x, y e z fossem significações possíveis dentro dos limites da moldura do enunciado prescritivo, então eles, os sentidos, preexistiriam e seriam conhecidos (ato de cognição) e escolhidos (ato de volição). Em Kelsen, destarte, há a adoção do construtivismo, não porém do relativismo forte. Dizer que existem sentidos passíveis de escolha não é o mesmo que dizer que não existem sentidos, sendo a significação uma criação do intérprete.

O ceticismo jurídico genovês busca tomar a cidadela da teoria pura do direito, indo além de Kelsen no relativismo da indefinibilidade objetiva da norma jurídica, para proclamar que a moldura de que falava o jurista de Viena seria na verdade o texto positivo, o suporte físico que enuncia a proposição prescritiva, nada obstante a norma enquanto tal não estaria ali previamente dada em possíveis sentidos, senão que ela, a norma jurídica, seria a significação atribuída pelo intérprete no ato de interpretação/aplicação do direito. Interpretar, portanto, não seria conhecer a norma jurídica, mas criá-la, construi-la, adscrevê-la, razão porque interpretar um texto positivo seria já e sempre prescrever. Em assim sendo, outra não poderia ser a conclusão lógica senão a afirmação de que a dogmática jurídica não seria apenas constituída de proposições descritivas do ordenamento jurídico, senão que também seria constituída de normas provenientes da interpretação doutrinária, que teria inegável função criadora e adscritiva de normas[43].

Há indagações sérias a serem enfrentadas, sem embargo, para que essa posição relativista do ceticismo interpretativo se ponha de pé argumentativamente: (a) o relativismo jurídico admitiria a distinção entre juízos cognitivos e juízos não-cognitivos, entre proposição descritiva e proposição prescritiva?; (b) se o ceticismo admitisse que aquela distinção procederia, então seria de se perguntar: o juízo dogmático sobre a parte da norma que descreve fatos relevantes para o direito seria cognitivo ou não-cognitivo?; e (c) se se admitisse que o enunciado descritivo do antecedente da estrutura lógica da norma jurídica poderia ser conhecido como enunciado de fato, seria legítimo perguntar: como sustentar que a norma, ao menos naquela parte do descritor, não seria cognoscível e objeto de juízos descritivos, comuns às ciências naturais, por exemplo?; e (d) em sendo eventualmente todas as questões anteriores admitidas, então o ato de interpretação teria a função de descobrir o significado do suporte fático ou descritor da norma e adscrever, constituir, criar, o significado do seu preceito ou prescritor, dada a bimembridade da estrutura lógica da norma jurídica.

Os aspectos problemáticos suscitados por essas questões não são de simples trato. Diante das suas não poucas dificuldades, Giovanni Tarello buscou um meio de desbastá-las a partir da sua própria origem, afirmando que todo o enunciado do texto positivo, mesmo na parte descritiva de fatos relevantes, teria também natureza prescritiva[44]. Essa assertiva, porém, esbarraria em um impedimento muito bem observado por Kelsen: do ser não dimanaria nunca um dever-ser; haveria uma descontinuidade entre as duas esferas autônomas. Tarello, então, buscou com perspicácia contornar essa premissa epistemológica fundamental da teoria pura do direito, valendo-se da distinção originalmente proposta por R. M. Hare entre o frástico e o nêustico das proposições[45].

Giovanni Tarello chama asserções às proposições cognoscitivas e prescrições às proposições prescritivas. Assim, chama de enunciados assertóricos aqueles que expressam asserções e enunciados prescritivos os que expressam prescrições[46]. De um modo geral, as proposições seriam estruturas complexas unidas por uma cópula, compostas de uma mesma característica que semantizaria algo pertencente à experiência, seja um estado de coisas ou um comportamento, no caso de asserções, ou apenas comportamentos, no caso de prescrições. Então, duas orações poderiam se referir exatamente a um mesmo comportamento, porém uma poderia o estar descrevendo e a outra poderia estar determinando que ele devesse ocorrer. Esse aspecto da oração de referir-se a algo no mundo, inclusive um comportamento, chamar-se-ia frástico; quando, porém, a análise da função do enunciado estivesse em causa - se seria ele portador de uma asserção ou um comando -, estaríamos diante do nêustico[47].

Para Hare, um enunciado descritivo possuiria o mesmo frástico de um enunciado prescritivo; o que diferenciaria um do outro seria apenas o nêustico: naquele haveria uma asserção; nesse, uma prescrição. Se o frástico é comum ao enunciado descritivo e prescritivo, mudando a sua função conforme seja o nêustico, não haveria diferença metodológica de aproximação do enunciado, fosse ele descritivo ou prescritivo[48]. Em miúdos, Hare simplesmente rejeita a existência de diferenças no frástico entre enunciados descritivos e prescritivos[49], o que na prática igualaria a natureza dos enunciados do direito positivo e da Ciência do Direito, nada obstante fossem diferentes quanto à sua função ou, mais precisamente, quanto ao seu nêustico: prescritiva aquela; descritiva, essa. A Ciência do Direito faria menção à linguagem do direito positivo, tendo ambos, Direito e direito, eventualmente o mesmo frástico, porém com nêusticos distintos.

Essa conclusão a que chegou Hare não satisfaria a corrente analítica italiana, porque igualaria a cognoscibilidade das proposições dos enunciados da dogmática jurídica e dos enunciados prescritivos, porém em um sentido absolutamente invertido àquele sustentado pelo ceticismo genovês: ambas as proposições poderiam ser predicadas como verdadeiras ou falsas, o que trariam os valores e as normas para o campo objetal idêntico aos objetos físicos ou aos estados de coisa. Giovanni Tarello, então, busca uma solução para essa armadilha da tese de Hare, sustentando que, sendo a estrutura lógica do enunciado normativo formada por uma proposição que descreveria fatos relevantes para o direito e uma outra que lhes prescreveria efeitos jurídicos, não apenas essa última teria um nêustico prescritivo, mas também o teria de igual modo o seu suporte fático ou descritor. É dizer, haveria a incidência do nêustico prescritivo sobre a semântica da parte descritiva da estrutura lógica do enunciado normativo.

Para sustentar que o suporte fático não seria apenas descritivo de fatos, lembra Tarello que as proposições do descritor normativo são também compostas de palavras ou expressões criadas pela doutrina jurídica ou pelo próprio direito positivo em outras normas, como “demanda”, “relação jurídica”, “obrigação”, etc., de modo que o frástico do descritor normativo conteria já a conjunção do nêustico descritivo e prescritivo a um só tempo. É dizer, seriam qualificações jurídicas atribuídas àquelas expressões através de prescrições distintas, que constituiriam definições, regras de uso, projetos de interpretação, propostas da doutrina jurídica, etc.[50]. No final das contas, Tarello percebeu o sério problema que a célebre distinção hareana entre frástico e nêustico trouxera para a rejeição da cognoscibilidade das proposições prescritivas, porém a saída que buscou para superá-la resultou em um outro problema não menos grave para o seu ceticismo interpretativo: misturar menção e uso de uma expressão como fossem a mesma coisa. Se uma norma menciona um instituto jurídico - definido por outra - em seu suporte fático, a prescritividade daquela primeira norma definitória geraria o nêustico prescritivo na que a mencionou. No final, Tarello toma os institutos jurídicos mencionados pelo descritor normativo como um dado entitário criado anteriormente, ou seja, como um conceito posto antecipadamente por outra norma, pela doutrina ou pelo costume[51]

Todo esse esforço argumentativo do mestre italiano, sem embargo, tem uma razão de ser: ao deslocar o nêustico também para o seio do enunciado descritivo da estrutura lógica da norma jurídica, estaria agora apto a sustentar que tanto o suporte fático quanto o preceito teriam o nêustico prescritivo e, como tal, desafiariam uma interpretação como ato de vontade e não como ato de conhecimento, de modo que a norma jurídica qua tale nada mais seria do que a significação atribuída ao texto pelo intérprete; é dizer, a natureza da interpretação seria constitutiva do sentido do texto, sendo ele, o texto, nada mais do que marcas gráficas ou suportes físicos predispostos pela autoridade competente, no caso do direito positivo. Sem esconder o psicologismo que forra o seu pensamento, Giovanni Tarello fez a diferença entre interpretação-atividade e interpretação-produto, sendo aquela “un fenomeno mentale, come l'attribuire un significato a un documento”[52]. Para Tarello, desse modo, a interpretação seria uma atividade de atribuir um significado a um documento, que poderia consistir tanto em um ato de vontade (uma volição) como ato de conhecimento (uma intelecção)[53]. Competiria ao intérprete, então, decidir-se a atribuir ou propor ao documento um particular significado, é dizer, “o significato non è affatto precostituito all'attività dell'interprete, ma ne è anzi il risultato”[54]. Sendo a norma jurídica a significação de um documento positivo, conclui Tarello que “'norma' significa semplicemente il significato che è stato dato, o viene deciso di dare, o viene proposto che si dia, a un documento che si ritiene sulla base di indizi formali esprima una qualche direttiva d'azione”[55]. Ora, resta claro que a corrente analítica defendida por Tarello pretende assentar a premissa de que o intérprete é livre na atividade de atribuir sentido a um texto legal, cuja significação, que é a norma jurídica, seria sempre um posterius, um resultado da sua atividade mental criativa, dos seus sentimentos pessoais, da sua vontade, enfim.

Há dois aspectos que deveriam, porém, ser respondidos por Tarello. Se a interpretação fosse um ato de vontade do intérprete, como ele assevera, a norma nada mais seria que o produto de uma vontade subjetiva de um sujeito psicologizado. Sendo assim, como a atribuição de sentido prescritivo por um sujeito qualquer poderia ter uma função prescritiva (nêustico) de conformar a conduta humana, é dizer, de ser uma “direttiva d'azione”? Sendo o sentido atribuído livremente pelo intérprete, como a norma jurídica teria o condão de vincular um universo de pessoas à prática comum, por exemplo, de observar o sinal vermelho ou os sinais de trânsito nas vias públicas? Essa questão da (improvável) vinculação das pessoas a uma significação atribuída livremente por um intérprete abre uma segunda questão relevante: como seria possível controlar a validade da norma jurídica diante de um caso concreto? Ora, como a significação seria sempre produto dos sentimentos ou da vontade de quem interpreta, como saber a diferença entre uma interpretação séria e uma interpretação não-séria, uma interpretação vinculante e uma não-vinculante?[56]

Tarello resolve a questão com sinceridade em face das premissas que abraçou: não haveria meios. Para o jurista peninsular, o controle social não se faria sobre os procedimentos intelectuais do intérprete, havendo, quando muito, um controle formal por meio dos órgãos que disponham dessa competência[57]. Mas aí, penso eu, teríamos um novo problema, assim ao infinito: qual seria o órgão competente para interpretar autoritativamente?; por que meios a atividade interpretativa seria validamente exercida? As respostas demandariam que se fizesse uma interpretação de uma norma de competência. E quem teria competência para fazê-la, de modo que aquela interpretação fosse vinculativa para os demais? Note-se, assim, como a visão cética, levada às últimas consequências, esvazia a própria função do direito como processo de adaptação social ou ordenador da sociedade humana.

 

2. A interpretação como ato ponente de norma e a prescritividade da linguagem da Ciência do Direito: entre o relativismo jurídico (forte) e o construtivismo jurídico.

2.1. Atividade interpretativa, tipos de interpretação e funções da interpretação.

Vimos, com Tarello, que interpretar seria o ato ou a atividade atributiva de sentido ao texto positivo. Toda e qualquer interpretação, por conseguinte, teria sempre como produto uma significação prescritiva, fosse ela o resultado de uma atuação da autoridade competente ou mesmo da dogmática jurídica. A norma, como proposição prescritiva, não seria nunca mencionada, mas apenas usada efetivamente pelo próprio ato de interpretar, ainda quando o intérprete imaginasse estar se referindo a algo que existiria antes da sua interpretação. A rigor, a norma jurídica não seria um ente, um algo-aí para ser conhecido. O ser-algo-aí da norma (o seu ser-no-mundo-como-tal) é o que denomino de sua natureza algoica[58], que pressupõe a sua condição entitária, é dizer, o ser ela uma significação prescritiva dada e possível de ser conhecida e vivida intersubjetivamente, influenciando a zona material das condutas humanas. Essa algoidade não existiria para o ceticismo em tese da corrente analítica italiana: ela, a norma, seria sempre criada e recriada tantas vezes fosse interpretada, é dizer, a norma como norma só existiria em uso, nunca em menção[59].

Levando ao extremo, poderíamos dizer que o relativismo cético rejeita a existência de normas, uma vez que o pronunciamento decisório resolveria aquele conflito, e somente aquele, pondo fim ao tal-como-é do caso. E o tal-como-é do caso não seria sequer o dito pela decisão, porém o que sobre ela se entendeu e se executou no plano da faticidade, como acontecimento, ainda que o seu produto seja um estado de coisas. Assim, não existiria sequer norma individual e concreta, porém atos reais de execução. Nesse sentido, haveria por via oblíqua uma volta ao realismo jurídico na forma defendida por Félix Cohen: o direito não seria o que o juiz decide, mas o que ele faria acontecer (“But what the judges do is more important than what they say”) O tal-como-é do caso seria o fusionamento do dever-ser com o ser, a execução do que fora decidido no modo como compreendido e aplicado em atos materiais, no tempo e espaço. Antes desses atos materiais praticados haveriam fatos sobre os quais as partes discordariam; depois dos atos materiais, restariam os fatos resolvidos pelo fazer, pelo acontecer. O tal-como-é do caso se esfumaria na execução através de atos materiais, entre o antes e o depois, porque ele só existe em ato, em uso, aqui e agora, no momento punctual ou instântico do acontecer da fusão entre ser e dever-ser.

Esse relativismo jurídico forte, típico do realismo jurídico, não é o adotado na prática pelo “ceticismo em tese” genovês. Na verdade, as linhas gerais da escola italiana - nada obstante as suas muitas contradições - poderiam levá-la a ser catalogada como espécie de construtivismo jurídico (relativismo débil)[60], em que o conhecimento é possível, porém dentro de um esquema conceitual e construído socialmente. A verdade não existiria, tampouco a realidade, senão como construção social a partir de um dado contexto e através da linguagem. Aliás, a linguagem para o construtivismo teria um papel demiúrgico da própria realidade social, de modo que, da mesma forma que as instituições e outras formações sociais não seriam naturais, mas produções humanas, se poderia inferir que nada seria relevante fora da seletividade e constitutividade das interações sociais, não sendo dado qualquer relevo à realidade não construída (é dizer, lá fora) e à verdade como qualidade de um juízo sobre algo no mundo[61].

Para o construtivismo, diferentemente do relativismo forte, as instituições jurídicas existiriam como constructos, como entidades criadas por meio das interações sociais[62]. Em que medida elas existiriam é o que devemos tentar compreender. Tomemos como exemplo de trabalho um conceito jurídico de uso corriqueiro e importante, expressado pelo termo “obrigação”, que exprime a subordinação de determinada esfera jurídica a uma outra no seio de uma relação jurídica. Estar obrigado é estar premido a realizar algo em face de alguém na intimidade de uma relação jurídica eficacial. A extensão e o conteúdo da obrigação são definidos pela norma jurídica, que qualifica determinados fatos por ela previstos, fazendo-os jurídicos. Dessarte, a obrigação é efeito de um fato jurídico prévio, do qual ela dimana. É desse modo que a dogmática jurídica, grosso modo, dá tratamento conteudístico ao signo “obrigação”.

Muito bem. Ao falarmos sobre “obrigação” estamos mencionando o sentido que emprestamos àquele termo jurídico; quando, porém, afirmamos que “A tem obrigação de algo perante B” estamos usando o termo discursivamente, fazendo o seu emprego direto. Podemos apenas fazer menção a algo que está-aí e sobre o qual nos referimos. O ser-algo-aí, já o dissemos, expressa a sua natureza algoica, é dizer, há a possibilidade de um mencionar, de uma virada intencional para a coisa (objeto, estado, ideias, sentimentos, sons, sinais, etc.). Agora, vejamos: quando dizemos existir uma obrigação estamos mencionando que ela se põe como tal ao menos para os dois polos da relação jurídica. O seu existir como entidade jurídica pressupõe que haja uma norma anterior que a preveja como efeito de um determinado fato jurídico. A inobservância ou descumprimento da obrigação significa violação da norma jurídica de que ela mediatamente proveio.

Quando uso o termo “obrigação” estou fazendo a sua aplicação em ato; quando menciono o termo “obrigação”, estou falando sobre algo que aí se encontra, que se põe para ser conhecido. Assim, quando há menção, a “obrigação” está posta na linguagem-objeto, sendo tratada pela metalinguagem. Para o construtivismo jurídico levado a sério, “obrigação” só existiria em uso, nunca sendo mencionada, de vez que inexistiria fora do ato de aplicação, é dizer, no instântico da incidência. Para fugir dessa aporia, haveria apenas aquele meio empregado por Tarello: toda menção à norma seria já e sempre o seu uso, de modo que a doutrina expediria sempre linguagem prescritiva (o nêustico prescritivo cobriria a inteireza frástica da proposição normativa), mesmo quando descrevesse fatos do mundo.

Se teoricamente essa exposição de Tarello pode ser palatável, a sua aplicação prática traz imensos problemas, sobretudo a impossibilidade de explicação da própria função da linguagem prescritiva. Guastini, talvez premido por essa constatação, não leva às últimas consequências o seu ceticismo, admitindo a algoidade da obrigação jurídica. Para ele, os enunciados nos quais o termo “obrigação” é usado pelo legislador exprimiriam normas, diretamente prescrevendo. De outra banda, nos enunciados em que “obrigação” é signo só mencionado, como em textos doutrinários a cotio encontramos, não haveria prescrição, fazendo-se apenas referência ao que o legislador havia prescrito. Conclui, então, o autor peninsular, que o termo "obrigação", embora normalmente seja portador de sentido normativo, também poderia ser usado no discurso cognitivo[63].

A admissão de que possa haver no Direito um discurso cognitivo deixa em aberto a tensão entre o ceticismo defendido em tese e o cognitivismo praticado na abordagem das entidades jurídicas, ambos presentes na extensa obra do jurista genovês. Esse tencionamento não é tematizado e, por isso mesmo, resta irresolvido, como fica evidente na distinção que faz entre interpretação cognitiva (ato de conhecimento), interpretação decisória (ato volitivo de escolha entre mais de uma possibilidade de significação) e interpretação criativa (ato volitivo de emprestar sentido além daqueles presentes na moldura do enunciado e descobertos pela interpretação cognitiva). Além dessas três espécies de interpretação, haveria ainda para Guastini o que denominou de construção jurídica (criação de norma inexpressa a partir de normas explícitas)[64], cuja distinção da interpretação criativa é feita através de uma tênue membrana retórica tão imperceptível que se torna simplesmente inútil.

Ao se admitir que a interpretação é (também) um ato cognitivo do que aí se encontra expresso no enunciado normativo, Guastini torna débil a afirmação apodítica de que o ato de interpretar seria sempre ato de atribuir sentido que antes ali não estava. Outrossim, nos casos em que haveria mais de uma significação “descoberta” pela interpretação cognitiva do enunciado, o ato de escolha da melhor solução para o caso concreto seria uma interpretação decisória; é dizer, escolher-se-ia um sentido a partir de sentidos preexistentes. E, finalmente, a interpretação criativa seria aquela que iria além das significações descobertas na moldura da norma para atribuir um novo sentido antes não apreendido. Só se poderia logicamente falar em novo sentido porque possíveis de serem conhecidos os preexistentes, que não saturariam as possibilidades deônticas do enunciado perante o caso concreto posto.

Para Guastini, então, a interpretação cognitiva seria uma definição informativa sobre o conteúdo do enunciado, a interpretação decisória seria uma redefinição volitiva (escolha) e a interpretação criativa seria uma estipulação pura (atribuição de novo sentido)[65]. A interpretação cognitiva teria função de verdade ou falsidade; as decisória e criativa, função adscritiva, não sendo verdadeiras ou falsas[66].

Tanto a escolha entabulada pelo aplicador entre uma pluralidade de significados, como a criação de um novo significado no instântico resolutivo do tal-como-é do caso, seriam causadas pelas exigências decisórias do contexto em que o enunciado normativo se inseriria, das teses dogmáticas elaboradas pelos juristas independentemente daquele enunciado normativo determinado e da multiplicidade de técnicas interpretativas[67]. Nada obstante o ato de interpretação ser para Guastini a escolha entre sentidos possíveis e também a atribuição de novo sentido pelo intérprete, ele entende haver um limite para a controvérsia interpretativa, que nem seria eterna nem tampouco privada de solução, sendo ordinariamente comum a sua mitigação. A interpretação de uma dada disposição, assim, poderia vir a se tornar estabilizada[68] ou, na expressão de Humberto Ávila, um núcleo de significados para as interpretações futuras.

Uma questão legítima, então, seria o saber o que seria esse núcleo de significados ou essa interpretação estabilizada que garantiriam, ao menos, elementos para a atividade interpretativa em movimento, instântica, no aqui e agora dos atos materiais de execução, é dizer, no tal-como-é do caso. Guastini deixa essas pontas do problema da interpretação totalmente soltas, como um modo de franquear margem para o movimento de ida e vinda conceitual que marca as suas obras, dissimulando as não poucas contradições existentes entre as premissas teóricas assumidas e as soluções práticas encontradas.

 

2.2. Núcleos de significados, significados intersubjetivados, conexões axiológicas e decisão interpretativa: a teoria da interpretação em Humberto Bergman Ávila.

O ceticismo - moderado ou forte - não se preocupa em responder o que seria a significação de um enunciado ou mesmo a relação que eventualmente possuíssem o significante e o significado como entidades linguísticas. No campo da teoria jurídica, por exemplo, as correntes céticas tomam sempre os enunciados normativos como destituídos de alguma significação neles involucrada, rejeitando possam ser portadores de um conteúdo preexistente. Essa, ao menos, é uma asserção não problematizada que seria facilmente aceita pelos defensores do construtivismo jurídico, como mostramos anteriormente[69].

Quando, porém, nos aproximamos da aplicação concreta daquele postulado teórico pelos seus defensores, vemos claudicar a coerência entre a teoria e a prática. Se a norma é a atribuição de sentido feita pelo intérprete a uma disposição normativa, como se poderia falar em princípio da legalidade, por exemplo, vinculando o agir da Administração Pública ao denominado bloco da legalidade? Ou há proposição prescritiva prévia, que limita e condiciona a validade do ato administrativo, ou simplesmente não há meios de se falar, senão de uma forma muito débil e destituída de operatividade deôntica, em vinculação do administrador à lei, tout court. Mais severa ainda fica evidenciada a aporia do ceticismo jurídico quando se vai tratar do princípio da legalidade penal, que vincularia de modo forte o juiz quando da aplicação da norma e fixação da pena. Ou bem se admite que o juiz está amarrado ao mastro da lei nas águas revoltas do mar das significações incontroláveis, com ouvidos moucos para diversionismos retóricos e para arroubos de criatividade judicial lassa, ou bem há de se admitir que o Estado-juiz está livre de peias para punir o cidadão, podendo até mesmo alargar in malam partem, por exemplo, o sentido aceito pela comunidade do discurso para aquela norma jurídica de direito estrito. Diante desse dilema, percebemos que a teoria da interpretação jurídica termina necessariamente caindo em uma opção ideológica em favor das garantias e direitos fundamentais do cidadão ou, de modo diverso, em favor da tirania do Estado-juiz, cujos limites de atuação seriam fátuos[70].

A corrente analítica genovesa obviamente não se preocupa em analisar a questão da significação sob o ponto de vista do seu estar-no-mundo-como-tal, da sua algoidade. É que as entidades ideais, como são de resto os institutos jurídicos, geram sempre uma abordagem problemática quando se busca utilizar metodologicamente o positivismo lógico, que a rigor apenas poderia ser utilizado pelo Direito nos moldes de um realismo jurídico exigente, como aquele de cariz estadunidense e escandinavo, caindo inexoravelmente em típico behaviorismo[71].  Sendo a significação de um enunciado algo que estaria fora do texto, para o positivismo lógico não haveriam meios de indagar com seriedade sobre ela, porque nada a seu respeito poderia ser dito, senão apenas como uma entidade mental[72].

Se se toma a interpretação como a atribuição de sentido feita pelo sujeito aplicador ao texto positivo, tal como o fazem o realismo jurídico e - em tese - o mentalismo da teoria analítica genovesa, parece evidente que não se poderia admitir a existência de técnicas interpretativas, cuja finalidade não seria outra senão a de descobrir o verdadeiro sentido embutido no texto. A hermenêutica, tal como a conhecemos após a obra de Hans-Georg Gadamer, rejeita a teoria da interpretação clássica (o realismo americano diria: rejeita a doutrina austiniana[73]), justamente porque a “verdade” não seria nunca alcançada pelo método[74]. Guastini, sem embargo, em sua contraditória exposição teórica, que perpassa os seus escritos, sustenta em tese ser a interpretação a atribuição de sentido ao texto, para, em seguida, admitir que pode ser ela descritiva de sentidos preexistentes, sem que esclareça esse evidente choque de ideias. A interpretação decisória, nesse contexto, termina sendo a escolha entre sentidos encontrados na moldura do enunciado prescritivo, é dizer, também preexistentes ao ao ato de escolha. Primeiro, o intérprete faria a intelecção das significações existentes para só então fazer a sua escolha diante do caso concreto.

Esse problema da infidelidade aos pontos de partida assumidos em tese termina contaminando todo o esforço teórico desprendido para demonstrar a inexistência de relação biunívoca entre texto e significado, sobretudo quando se admite à boca cheia a possibilidade da interpretação intelectiva.

De uma forma bem mais elaborada, Humberto Ávila busca superar o irracionalismo interpretativo que ostensivamente renega, através da adoção de um construtivismo soft, apontando para a possibilidade de controle a posteriori da interpretação pela comunidade do discurso. Há que considerar, nesse passo, a existência de uma preocupação sincera do jurista gaúcho com o descontrole da atividade criativa da interpretação, sem embargo de não promover ele os meios de compreensão de como essas limitações hermenêuticas se dariam, em que elas consistiriam e como poderiam ser observadas nos casos concretos em que fossem desafiadas.

Há, é certo, uma influência dos pressupostos teóricos assumidos em tese pela corrente analítica genovesa atuando sobre pensamento de Ávila, para quem haveria uma desvinculação entre o texto e os seus sentidos, razão pela qual o significado não seria algo incorporado ao conteúdo das palavras, porém algo que dependeria do seu uso e interpretação[75]. Diferentemente de Guastini, todavia, não cede o jurista brasileiro ao psicologismo - ao menos em tese -, afirmando que, embora o significado dependa do uso, não surgiria de um que fosse específico e individual, de vez que existiriam significados mínimos incorporados ao uso ordinário ou técnico da linguagem[76]. Pois bem, o uso dos signos em situações concretas, dentro de uma vivência simbólica intersubjetivamente mediada, geraria núcleos de sentidos preexistentes aos novos processos individuais de aplicação, cuja demarcação positiva dos seus possíveis usos não seria dada de antemão, restando para o intérprete limitações negativas, indicando ao menos quais as situações em que certamente não se poderia utilizar determinado sentido na interpretação da disposição normativa[77]. Embora sem explicitamente fazer essa distinção, Ávila separa o ato de uso do produto do uso: o uso seria o ato concreto do sujeito individual na atribuição de sentido ao enunciado, enquanto o produto do uso, o sentido de dever-ser que é a norma jurídica, passaria a fazer parte daquele núcleo de sentidos que preexistiria aos novos atos de aplicação como significados intersubjetivados, não precisando a toda situação serem novamente fundamentados.

É certo que Humberto Ávila não ingressa em uma análise mais aprofundada da cognoscibilidade desse núcleo de sentido, bem assim do que seriam os significados intersubjetivados enquanto algo-aí que se põe em seu ser-no-mundo-como-tal, como idealidades que transcendem o conhecimento de um único sujeito empírico e se inserem em uma vivência comum simbolicamente constituída.

Com essas premissas embauladas na mente, logo se vê que o projeto teórico de Humberto Ávila é mais ambicioso do que aquele produzido por Riccardo Guastini, porque há uma preocupação ali de amarrar as pontas soltas no processo de construção de sentido, com a pretensão nítida de acrisolar eventual queda para o irracionalismo ou o relativismo desbragado no ato de interpretação. Nada obstante seja essa uma preocupação que percorre o pensamento de Ávila, há uma persistente influência da teoria analítica do direito em aspectos decisivos, que termina por enfatizar o papel demiúrgico do sujeito no processo de criação da norma jurídica; exemplo disso é quando afirma que dispositivo algum conteria de antemão uma regra ou um princípio, dado que essa qualificação normativa sequer seria prévia ao ato de interpretação. Para ele, essa distinção entre regras e princípios seria construída pelo próprio intérprete, não estando a sua natureza jurídica e a sua significação incorporada ao texto, não lhe sendo pertencentes; a interpretação de um enunciado como expressando regra ou princípio seria dependente das conexões axiológicas feitas pelo intérprete quando do ato de aplicação[78]. Essa é uma afirmação capital que desafia a nossa reflexão.

O que seriam as conexões axiológicas, feitas pelo intérprete no momento da dação de sentido ao texto em uso no caso concreto, que estariam na medula da decisão interpretativa? Em primeiro lugar, seria conveniente compreender o que seriam os valores na visão de Ávila. Não encontramos em sua obra uma análise da relevante questão, salvo as pistas postas na afirmação da sua subjetividade intrínseca, é dizer, os valores dependeriam da apreciação subjetiva, sendo ateoréticos, não tendo significação objetiva, tampouco sendo verdadeiras ou falsas as proposições sobre eles[79]. Ora, se as conexões axiológicas são feitas pelo intérprete a partir da sua experiência pessoal e dos seus sentimentos, apetites e visão de mundo, parece-me que há um deslizamento para o irracionalismo quando Humberto Ávila afirma que o modo de aplicação não estaria determinado pelo texto objeto da interpretação, e, sim, que seria decorrente “de conexões axiológicas  que são construídas (ou, no mínimo, coerentemente intensificadas) pelo intérprete, que pode inverter o modo de aplicação havido inicialmente como elementar”[80]. É dizer, o controle da adequada aplicação da norma jurídica deixaria de ser substancialmente feito a partir das disposições normativas, ficando aprisionado à análise das razões subjetivas do aplicador, escolhidas a partir dos seus valores individuais e próprios, que por sua vez seriam operados pelas conexões axiológicas subjetivas intensificadas por ele, o aplicador.

É natural, então, que o intérprete jogue aí um papel central para a construção da norma jurídica, dada a natureza egoica (euidade) da interpretação; noutras falas, Ávila deixa de lado o algo que é a norma jurídica (a sua natureza algoica, a sua algoidade) e se prende ao constructo que ela seria após a atuação do sujeito atributivo de sentido (a natureza egoica da interpretação, a euidade no processo de dação de sentido). Esse deslocamento do interesse do objeto para os instrumentais argumentativos do sujeito cognoscente amplifica o relativismo da interpretação, já não sendo de se estranhar que o intérprete possa simplesmente desconsiderar as significações mínimas da norma e, mediante a expedição de razões contrárias ou razões superiores, criar novos sentidos prescritivos a partir dos fatos concretos. Por isso mesmo, poderia o Poder Judiciário “desprezar os limites textuais ou restringir o sentido usual de um dispositivo”. Poderia, inclusive, “fazer dissociações de significado até então desconhecidas”. Noutras palavras, a própria dimensão do peso das normas jurídicas não pertenceria a elas, mas ao aplicador. Em suma, “a atribuição de peso depende do ponto de vista escolhido pelo observador”[81].

Ora, adotando o pensamento de Ávila, teríamos que admitir o totalitarismo do intérprete que, a rigor, não teria limites no processo de interpretação, sequer estando preso ao uso da norma e aos seus sentidos preliminares, não havendo vinculação alguma aos núcleos de significação. Não teríamos ainda como falar seriamente em significados intersubjetivados, porque a norma seria qualquer sentido prescritivo atribuído pelo aplicador através de razões justificadoras e superadoras do próprio sentido preliminar do texto, sobrepondo-se até mesmo às condições de uso da linguagem. A argumentação seria o locus da normatividade, cujo controle, na prática, se torna impossível, dado que as razões superiores que venham de ser invocadas para construir sentidos contrários àqueles admissíveis sem gerar tensões interpretativas, nada mais seriam do que fruto da subjetividade do aplicador.  Ao fim e ao cabo, termina essa teoria da interpretação sendo autorizadora de qualquer decisão interpretativa, como aquela em que o STF entendeu cumprido o princípio da anterioridade da lei que institui ou aumenta imposto, mesmo apenas circulando o Diário Oficial da União no dia 2 de janeiro do ano seguinte[82]. É dizer, os sentidos preliminares intersubjetivados dos signos “ano” e “anterioridade” foram esvaziados por razões superiores suscitadas pelo aplicador[83].

Sem nesse momento aprofundarmos o consistente arsenal teórico usado por Humberto Ávila ao tratar da teoria dos princípios e da própria dinâmica da interpretação, podemos deixar explicitado que a sua crítica ao descritivismo da teoria do Direito é consequente com o ceticismo e relativismo da sua teoria da interpretação, bem como do acentuado valor outorgado à subjetividade do intérprete. E, inegavelmente, essa concepção é justificadora de todas as decisões judiciais, levando o Direito para um elevado grau de irracionalismo promotor da tirania hermenêutica, deixando o cidadão indefeso diante da juris dictio do Estado.

 

3. A segurança jurídica, o relativismo hermenêutico e adscritividade da Ciência do Direito.

Como controlar a legitimidade das decisões judiciais se o intérprete teria absoluta margem de criatividade, bastando alicerçar os seus fundamentos em razões superiores estribadas em conexões axiológicas, que poderiam superar as razões justificadoras presentes na edição da disposição normativa interpretada, cuja aplicação poderia ser por isso mesmo negligenciada caso per caso?

Noutra obra robusta, Humberto Ávila trata especificamente desse tema, já agora com uma compreensão mais preocupada com a irracionalidade interpretativa. Segundo ele, para haver segurança de orientação seria preciso que, “além de o destinatário saber a norma a que deve obedecer, saiba qual é o valor da norma a que deve obedecer”[84]. Ora, se o destinatário deveria conhecer as normas que regulam a sua atividade, bem como o valor que as anima, é porque norma e valor não poderiam ser postos no plano da subjetividade apenas. E o mesmo deve ser dito para os efeitos decorrentes do descumprimento da norma jurídica, como acentua muito bem Ávila: “se o destinatário, mesmo que saiba qual é a norma aplicável, não souber minimamente os efeitos atribuídos ao seu não cumprimento, não há cognoscibilidade do Direito”[85]. Essa exigência de controle dos sentidos normativos é adiante sublinhada quando se trata da questão da tipicidade em matéria tributária, no sentido de que “as hipóteses normativas devem ter notas fixas, sob pena de um dos elementos do princípio da segurança jurídica - a cognoscibilidade -  não poder ser minimamente realizado”[86].

O valor seria uma realidade mental ou existiria em uma instância própria, como uma idealidade? O estado de coisas desejável é o valor ou o valor qualifica como desejável um estado de coisas? O que seria um sistema de valores?[87] Humberto Ávila não se dedicou ao conceito de valor para nos indicar como se dariam as conexões axiológicas feitas pelo intérprete e a sua controlabilidade no momento da aplicação da norma.

É certo que a concepção argumentativa da interpretação, conforme defendida por Ávila, não cede tamanho apreço por uma determinação da normatividade, defendendo a segurança jurídica como determinabilidade, adotando uma versão débil da cognoscibilidade, confiabilidade e calculabilidade normativa[88], menos voltada à certeza do direito do que à sua previsibilidade.

O que me interessa nesse passo é apenas provisoriamente demonstrar que o construtivismo jurídico, ainda quando afirmado dentro de uma concepção argumentativa, é entabulado em um discurso monológico, em que o sujeito cognoscente psicologizado joga um papel central no processo interpretativo, sendo a sua subjetividade fundamental para a atribuição de sentido que tem a norma jurídica como seu produto final.

Embora aqui e ali Ávila faça menção à intersubjetividade, o que avulta sempre em seus textos é a centralidade do sujeito cognoscente, as suas ponderações valorativas, as conexões axiológicas que faz a partir dos seus sentimentos e concepções, bem como as razões superiores que podem, segundo o seu sentir, se sobrepor às razões justificadoras da norma jurídica conforme posta pelo legislador. E esse caráter demiúrgico do intérprete é tão marcante, que Ávila entende que a natureza normativa das regras e dos princípios apenas pode ser definida a posteriori, segundo a aplicação e a intensificação que seja feita pelo aplicador de uma ou outra característica atribuída às regras para separá-las dos princípios. É dizer, a maior ou menor saturação de sentido deôntico da disposição normativa não é um balizador para o intérprete, mas uma constatação após a realização da atividade interpretativa, que decidirá se o intérprete está diante de uma regra ou um princípio[89].

Se as decisões interpretativas ocorrem no tal-como-é do caso através da atribuição de sentido feita pelo intérprete e se, outrossim, a distinção entre princípios e regras apenas surge nesse momento dinâmico mediante as intensificações das razões e valores feitas por ele, típicas questões da dogmática jurídica sofreriam um abalo severo. Como poderíamos comodamente discutir sobre a tipicidade das normas penais e tributárias?, ou como trataríamos dos contornos da discricionariedade administrativa? Diz-se, por exemplo, que a atividade do fisco é vinculada, razão pela qual o fiscal não poderia deixar de lavrar um auto de infração sob a alegação de que o sentido da norma que ele adotou seria outro, ou que a interpretação  usualmente aplicada pelo fisco seria inconstitucional (o que implicaria sempre uma correlação entre a interpretação da disposição ordinária com aquela da constitucional, ou a intensificação de razões superiores às razões justificativas da norma disposição em questão), ou mesmo adotando um extensão de um termo posto em lei mais larga do que aquela semanticamente aceita na prática tributária[90]. Se até a doutrina emitiria enunciados prescritivos, por que negar que o fiscal possa fazer - ou efetivamente faça - o mesmo?

Os direitos fundamentais ficariam desprotegidos diante do relativismo hermenêutico, porque a legalidade seria apenas formal, já que a moldura dos enunciados normativos toleraria qualquer significação prescritiva estribada em razões superiores, por exemplo, do Estado frente aos cidadãos. A admissão da legalidade material seria infirmar, na prática, a própria tese do enunciado legal como moldura. Diante de uma crise econômica do país, seria lícito o abrandamento do princípio da anterioridade, intensificando-se o alegado interesse público em manter os serviços públicos funcionando regularmente?; seria de se admitir a postergação do princípio da anterioridade da lei penal em face das razões superiores de combate ao terrorismo, e.g.?; seria adequada a supressão da nulidade de provas obtidas por meios ilícitos em razão das razões superiores de combate à corrupção na administração pública?[91]

A descritividade ingênua da Ciência do Direito seria aquela fundada na cognoscibilidade das normas jurídicas pelo sujeito transcendental, utilizando-se dos métodos clássicos de interpretação para encontrar o sentido presente no enunciado prescritivo. Ingênua é aí a descritividade porque não atenta para a intersubjetividade da construção de sentido, o plano do pensamento como realidade objetivável fora do mentalismo do sujeito que pensou. A confusão entre o ato de pensar e o pensamento aniquila justamente aquele tesouro comum que está além da subjetividade e aquém da objetividade: as entidades que compõem o plano do pensamento, o mundo 3 de Popper, a proposição em si de Bolzano, as mônadas intersubjetivas de Husserl.

É nesse diapasão que podemos compreender a severa crítica que Humberto Ávila faz à tese descritivista do solipsismo da Ciência do Direito, típica da exegese clássica, que sustentava caber ao intérprete compreender e conhecer a norma jurídica veiculada pelo ordenamento jurídico. E, dada essa busca pelos sentidos prescritivos previamente estabelecidos pela positividade do direito, houve todo o esforço doutrinário no estabelecimento de técnicas interpretativas para a consecução desse objetivo em busca da cognoscibilidade do ordenamento jurídico. Assim, o caminho que levou o jurista a sustentar uma severa crítica à descritividade do Direito[92], teria que ser a mesma senda que o levaria a rejeitar a menção a qualquer das técnicas de interpretação, sejam as clássicas ou outras desenvolvidas mais recentemente. De fato, a interpretação gramatical parte do texto pressupondo que ele traga em si um sentido passível de conhecimento; e a inserção desse sentido em uma rede de sentidos prescritivos é que promove a necessidade de uma interpretação sistemática. Justamente por isso, Eros Roberto Grau, cioso do seu irracionalismo jurídico, talvez tenha dito, com inequívoca fidelidade aos pontos de partida que assume em suas obras, que a exposição dessas técnicas nada mais seriam - segundo o seu sentir - do que uma visão morta e ultrapassada da teoria da interpretação[93]. Daí o porquê de ter dito, no início desse meu texto, que Guastini nesse particular não se libertou da antiga teoria da interpretação, continuando a fazer uso daquelas clássicas técnicas, absolutamente divorciadas do seu ceticismo jurídico[94].

Parece-nos que, nesse passo, Ávila não poderia sustentar adequadamente o seu estruturalismo argumentativo pagando tributo às lições de Riccardo Guastini que, consoante mostramos, admite exista a interpretação descritiva, que não haveria como ser sustentada com coerência em face das premissas assumidas pela corrente analítica genovesa e pelo construtivismo aviliano.

Há uma série de relevantes questões, por outro lado, que merecem uma análise mais detida sobre a distinção entre princípios e regras e a importante questão dos valores e razões presentes no momento da criação de sentido pelo intérprete. Sem embargo, essas questões desbordam dos limites do presente texto, mas guardam a utilidade desejada de mostrar como a questão da descritividade da Ciência do Direito não pode ser tomada como não-problemática ou como crendice dos teóricos dogmáticos do Direito, sobretudo quando levamos em conta que a irracionalidade do ceticismo jurídico nos leva também para uma série de aporias, já agora no outro extremo da descritividade ingênua sustentada acriticamente por alguns.

As limitações da teoria descritiva da interpretação são hoje mais enfaticamente evidenciadas pelos avanços da teoria da linguagem. Não se pode, porém, perder-se de vista que a distinção entre descritividade e prescritividade feita pelos seguidores da corrente analítica do Direito, desconsidera toda a evolução da distinção entre ciência cultural e ciência natural, como levada a efeito por Heinrich Rickert, por exemplo, em que se mostra os limites da descritividade da própria ciência natural. Há, nada obstante e mesmo na linha de pensamento exposta pelo jurista gaúcho, um meio termo entre aquele descritivismo ingênuo e o ceticismo jurídico, em suas mais diversas formas. Não é possível se falar em segurança jurídica sem que existam rédeas para controlar os galopes dos sentidos, que, se não admitem o aprisionamento nas cercas da única interpretação correta, tampouco podem andar nos prados abertos da livre criação de sentidos pelo intérprete.

A Ciência do Direito não possui uma função eminentemente descritiva do ordenamento, é certo, porém não tem ela natureza normativa, adscritiva de sentidos prescritivos[95]. Parece-me mais justo que falemos em uma criptonormatividade da Ciência do Direito, cujos contornos não lhe emprestam a função deôntica, senão como menção. As distinções entre linguagem-objeto e metalinguagem, uso e menção, frástico e nêustico, são importantes ferramentas teóricas para superar o enleio conceitual promovido pelas correntes relativistas que dominam o senso comum teórico dos juristas na atualidade.

 

4. À guisa de conclusão.

Humberto Ávila não é um autor que possa ser identificado apenas com o Direito Tributário. Embora tenha ali o seu interesse de reflexão, os seus escritos possuem uma dimensão mais profunda, voltados para aspectos fundamentais da Teoria Geral do Direito e da Filosofia do Direito. As necessidades do prático provocam a sua reflexão teórica, gerando uma interessante intersecção entre a construção dogmática e a práxis jurídica.

Um dos aspectos que Ávila tem enfatizado em seus escritos teóricos é o fato de que a Ciência do Direito não apenas descreve, mas reconstrói, adscreve e cria significados[96]. Não apenas a Ciência do Direito, diria eu, mas todo e qualquer discurso que tenha pretensão científica, mesmo no âmbito das ciências naturais.

O sentido do mundo não é o mundo. O mundo é a realidade que independe dos sujeitos que pensam e se comunicam sobre ele, buscando entendê-lo mediante a racionalização discursiva dos acontecimentos, eventos ou estados de coisa. Se a água é colocada em um recipiente e posta no fogo, em dado momento começará a se converter em vapor. Esse é o acontecimento observável; o dizer que a água, em situações normais de temperatura e pressão, entra em ponto de ebulição a 100 graus célsius é já uma racionalização sobre o acontecimento, o transformá-lo em linguagem e, por indução, dizer o que costumeiramente ocorrerá. O acontecimento bruto é o fato empírico; a sua explicação em linguagem, a sua descrição. Note-se: não se descreve que a água virou vapor colocada no fogo, porém que a substância H2O atinge o ponto de ebulição a 100 ºC. A análise desses eventos, a significação a eles atribuída, a linguagem que sobre eles é produzida, enfim, é já fato cultural. Há aí, nas ciências naturais, muito mais do que descrição, no sentido ingênuo que Humberto Ávila tomou como objeto da sua incisiva crítica.

A linguagem nos possibilita colocar ordem nos eventos caóticos do mundo que, sem os sentidos e as relações que lhes dá a inteligência humana, seriam impossíveis de serem compreendidos, assimilados e racionalizados pela (e na) cultura. Ela não muda os eventos; expressa o que sobre eles se entendeu e discursivamente os torna partilhável e comum a todos. Os eventos ou estado de coisas estão ali postos para serem conhecidos e pensados. A coisa que se põe para os sujeitos cognoscentes é já e sempre um ser-outro, com a sua natureza algoica que reivindica a aproximação intelectiva. O ordenar as coisas racionalmente é exercício do poder nomotético do espírito humano no seio do discurso vivido intersubjetivamente, vertendo-se em linguagem o que se apreendeu dos fenômenos; é nesse sentido que Kant pôde dizer ser o homem o legislador da natureza. É dizer, o homem não criaria o mundo; ordenaria-o e faria-o cognoscível pela linguagem, nos limites da sua capacidade de expressão.

O desenvolvimento metodológico e os resultados obtidos pelas ciências naturais significaram uma mudança na forma de ver e pensar o mundo. Agora, dados os resultados práticos obtidos com as especulações da física mecânica, o padrão de cientificidade desse olhar intencional para o mundo passou a ser a busca de regularidades universais, que permitissem o controle do homem sobre a natureza e a predição dos eventos futuros na ordem das coisas. É aí que o positivismo nasce como pretensão de colocar para todas as áreas de conhecimento um único padrão científico, naturalmente com as ferramentas de investigação desenvolvidas pela ciência da natureza. É nesse ambiente que nasce o historicismo, sobretudo após os dissabores e desilusões da I Guerra Mundial, em que o homem como sujeito histórico passa a ter relevo fundamental para a construção das ciências do espírito, que embora reivindicassem o seu status de cientificidade, tinham em seu objeto aspectos específicos que desafiavam uma nova metodologia, próxima àquela das ciências da natureza e rejeitando toda a visão metafísica, que deveria ficar afeta a teologia e que tais.

Para que possamos desmistificar o relativismo extremado que grassa hoje na teoria da interpretação, sobretudo a lassidão hermenêutica criada pela teoria dos princípios jurídicos, convém previamente situar as discussões atuais no contexto da separação entre ciências naturais e ciências sociais, desenvolvida pelo historicismo alemão. É nela que está a raiz do debate sobre se a Ciência do Direito seria descritiva ou prescritiva, ou mesmo adscritiva.

O que nos parece pertinente enfatizar, a título de conclusão, é que o debate sobre a descritividade e prescritividade da Ciência do Direito como posto tem como ponto de partida a teoria da interpretação, o que desloca o problema para aspectos de menor relevo, hoje já estabilizados: a natureza constitutiva da linguagem. Na verdade, o cerne da questão, parece-nos, está em saber se a constitutividade da linguagem esvazia de sentido a distinção entre descritividade e constitutividade do discurso científico em relação ao seu objeto e, no caso do Direito, se a constitutividade tornaria a linguagem doutrinária uma proposição deôntica.

Como já demonstramos ao expor o pensamento de Tarello, há grave erro em advogar a tese da prescritividade do discurso da Ciência do Direito. Cumpre-nos, porém, noutra oportunidade, demonstrar que essa conclusão também se sustenta a partir da distinção entre ciências naturais e ciências culturais.

 

Notas e Referências

[1] TARSKI, Alfred. “A concepção semântica da verdade e os fundamentos da semântica”, In: A concepção semântica da verdade, São Paulo: Unesp, 2007, esp. pp.170 ss.

[2] MIRANDA, F.C. Pontes de. Tratado de direito privado, tomo I, 4ª ed., São Paulo: RT, 1977, p.21; VILANOVA, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo, São Paulo: RT, 1976, pp.46 e 154, passim; RUBINO, Domenico. La fattispecie e gli effetti giuridici preliminari, Milão: Giuffrè, 1939, pp.42 ss; LEHMANN, Heiinrich. Direito civil - parte geral, vol.1, Madri: Editorial Revista de Direito Privado, 1956, p.115; THON, August. Norma giuridica e diritto soggettivo: indagni di teoria generale del diritto. Padova: Cedam, 1951, pp.11 ss.

[3] Sobre o apriorismo das normas frente aos fatos: HABERMAS, Jürgen. “Teorías de la verdad”.  Teoría de la acción comunicativa: complementos e estudios previos. Madri: Cátedra, 1994, pp.129 ss; VILANOVA, Lourival. Causalidade e relação no direito. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1989, p.41 ss; e, mais genericamente, MÁYNEZ, Eduardo García. Lógica del raciocinio jurídico.Cidade do México: Fontamara, 2007, pp.7 ss.

[4] HABERMAS, Jürgen. “Teorías…”, cit., p.129; VON WRIGHT, G. H. La diversidad de lo bueno. Madri: Marcial Pons, 2010, p.183, passim. As normas retroativas, que apanham os fatos no passado e lhes atribui efeitos no passado ou presente ou futuro do diploma positivo, é juridicamente possível nos sistemas que as toleram, nada obstante expressem um sem-sentido deôntico. Afinal, como prescrever seja proibida, obrigatória ou permitida uma conduta já realizada no passado da positividade da norma? No Brasil, um exemplo concreto dessa absurdidade deôntica são determinadas normas veiculadas pela LC 135, conhecida como Lei da Ficha Limpa, que, por exemplo, apanhou a renúncia de um parlamentar e prescreveu a sua proibição alcançando renúncias já consumadas, cujo functor deôntico vigente à época era o permitido.

[5] Nesse sentido, SEARLE, John R. La construzione della realtà sociale. Milão: Edizioni di Comunità, 1996, pp.40 ss, passim; adotando o conceito e colocando o fato institucional para além do direito, MacCORMICK, Neil. “Il diritto come fatto instituzionale”. In: MacCORMICK, Neil e WEINBERGER, Otta.  Il diritto come instituzione. Milão: Giuffrè, 1990, pp.59 ss; e tratando o fato institucional dentro da teoria do sistema autopoiético, LUHMANN, Niklas. Los derechos fundamentales como institución: aportación a la sociología política. Cidade do México: Universidad Iberoamericana, 2010, pp.103 ss.

[6] Vide, no mesmo sentido: ANSCOMBE, G.E.M. “On Brute Facts.” In: The Collected Papers of G.E.M. Anscombe, Volume 3. Oxford, Basil Blackwell, pp. 22-25: "o fato de que alguém envia um pedaço de papel é um fato bruto em relação ao fato de que alguém envia um projeto de lei. O primeiro apenas pode ser adequadamente considerado como o último se o contexto institucional é apropriado". Também: HINDRIKS, Frank. "Constitutive Rules, Language, and Ontology", in: Erkenntnis (Sep.2009), Vol. 71 Issue 2, p.253.

[7] HOLMES, Oliver Wendell. “The path of the law”. Collected Legal Papers, Nova York: Harcourt Brace and Company, 1920, pp. 168-169: "Os direitos e deveres primários com os quais a jurisprudência se ocupa são nada além de profecias…".

[8] HOLMES, Oliver Wendell. The path..., cit., p.173. No mesmo sentido, um outro clássico: LLEWELLYN, Karl N. “Some Realism about Realism: Responding to Dean Pound”. Harvard Law Review, Vol. 44, No. 8 (Jun., 1931), pp. 1222-1264.

[9] HOLMES, Oliver Wendell. The path..., cit., p.194.

[10] HOLMES, Oliver Wendell. “Law in science and science in law”. Collected Legal Papers, Nova York: Harcourt Brace and Company, 1920, p.210: “The best of it all is that it can never by any possibility be made of the slightest use to anybody for anything.”.

[11] HOHFELD, W. N. Conceptos jurídicos fundamentales, 2ª ed. Cidade do México: Fontamara, 1992.

[12] Essa frase é atribuída ao Chief Justice Hughes, para quem “that the Constitution is what the judges say it is”. Cohen completa, então, que: “But what the judges do is more important than what they say”. COHEN, Felix S. “Dialogue on private property”. In: Rutgers law review. Vol.IX, nº 2 (1954), p.379.

[13] COHEN, Felix S. “Dialogue…”, cit. pp.371-372: “the existence of private property presupposes not only sovereignty but some predictable course of sovereign action, so that the so-called property owner can count on state help in certain situations”.

[14] COHEN, Felix S. “Dialogue…”, cit. pp. 378: “Private property is a fact, and not simply a word”.

[15] COHEN, Felix S. “Transcendental nonsense and the functional approach”. In: Columbia Law Review. Vol.XXXV, nº 6 (Junho, 1935), p.823: “Nosso sistema legal está cheio de conceitos sobrenaturais, ou seja, conceitos que não podem ser definidos em termos de experiência e a partir dos quais todos os tipos de decisões empíricas devem fluir. Contra estes conceitos não verificáveis, a Ciência do Direito moderna apresenta um ultimato. Qualquer palavra que não pode pagar-se na moeda dos fatos deve ser declarada falida...”.

[16] COHEN, Felix S. “Transcendental…”, cit., p.823 “É uma consequência do ataque funcional a conceitos não verificáveis que muitos dos problemas tradicionais da ciência, direito e filosofia são revelados como pseudoproblemas desprovidos de significado”.

[17] COHEN, Felix S. “Transcendental…”, cit., p.826. A diferença as entidades metafísicas e os constructos está em que aqueles teriam uma existência ideal, empiricamente não verificável, enquanto esses seriam construções de sentido pessoais para explicar algo que a linguagem ordinária não daria conta, influenciado o comportamento nesse mundo articulado. O conceito de constructo foi desenvolvido por KELLY, Georg. The psychology of personal constructs: A theory of personality. Vol.1, Nova York: Routledge, 1991, pp.74 ss.

[18] Para um resumo do realismo norteamericano, há uma ótima exposição de TARELLO. Giovanni. Diritto, enunciati, usi: Studi di teoria e metateoria del diritto, Bolonha: Il Mulino, 1974, pp.51 ss, esp. pp.75-79. No sentido do que afirmei sobre o objeto da Ciência do Direito para o realismo, vide CORBIN, Arthur L. “Legal analysis and terminology”. (1919). Faculty Scholarship Series. Paper 2881, p.164: “Uma declaração de que existe uma relação jurídica entre A e B é uma previsão quanto ao que a sociedade, agindo através de seus tribunais ou agentes executivos, vai fazer ou não fazer para uma [parte] e contra a outra. Se A invade a casa de B, somos capazes de prever que a polícia o retirará. Haverá uma sentença em que um tribunal condenará por danos e que vai se realizar a execução".

[19] PECZENIK, Aleksander. “The Passion for Reason”, In: WINTGENS, Lue J. (ed.). The Law in Philosophical Perspectives. Dordrecht:  Kluwer, 1999, pp.173-174, ao tratar do realismo escandinavo, afirma sobre a sua base teórica: “Todo o conhecimento diz respeito a algo real. Apenas uma realidade existe e inclui objetos localizados no tempo e no espaço. Um ser humano é, portanto, real, uma vez que existe durante um determinado período de tempo e sempre ocupa uma posição no espaço. Existem processos mentais porque eles estão indiretamente relacionados ao tempo e ao espaço: as pessoas os experimentam como existentes no tempo e no espaço”. De fato, outra não é a posição de ROSS, Alf. Hacia una ciencia realista del derecho: critica del dualismo en el derecho. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1961, p.88, passim, para quem “validez (valor o deber) no es nada objetivo o concebible, no tiene significado, es una mera palabra”.

[20] É inegável a influência do positivismo lógico na medula do realismo escandinavo. No fundo, as proposições com sentido seriam aquelas, e somente aquelas, passíveis de verificação no mundo empírico, é dizer, as proposições protocolares ou as proposições lógicas. A impossibilidade cognitiva de juízos normativos está já bem assentada no tópico 6.4 de WINTTGENSTEIN, Ludwig. Tratactus logico-philosophicus. 2 ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1995, pp.138-139. Na proposição 6.421, afirma o filósofo: “É óbvio que a Ética não se pode pôr em palavras.”. No mesmo sentido, FARRELL, Martin Diego.  La metodologia del positivismo lógico: su aplicación al derecho. Buenos Aires: Astrea, 1979, p.145, passim.

[21] ROSS, Alf. Hacia…, cit., 114. Outrossim, idem. “Sulla natura logica delle proposizioni valutative”. In: Critica del diritto e analisi del linguaggio, Bologna: Il Mulino, 1982, p.99; OLIVECRONA, Karl. Lenguaje jurídico y realidad. 3ª ed., Cidade do México: Fontamara, 1995, pp.20-27; Idem, Il diritto come fatto, Milão: Giuffrè, 1967, p.24, passim.

[22] PECZENIK, Aleksander. “The Passion…”, cit., p.174: “The law is the same as legal impulsions ("emotions"). Legal rules are mere "impulsive phantasms", i.e. projections of shared legal impulsions.”. Traduzo o termo “phantasms” em um dos seus sentidos atribuídos pelo dicionário online Merriam Webster, mais compatível com o contexto do realismo escandinavo, como representação mental de um objeto real (“a mental representation of a real object”).

[23] ROSS, Alf. O concepto de validez y el conflicto entre el positivismo jurídico y el derecho natural. El concepto de validez y otros ensayos. Cidade do México: Fontamara, 1997, p.27. Trata-se da aplicação ao Direito do que sustentado por SCHLICK, Moritz. “Positivismo e realismo”. In: SCHLICK, Moritz e CARNAP, Rudolf. Coletânea de textos - Os Pensadores, São Paulo: Nova Cultural, 1988, p.49: “A única coisa que o pesquisador procura são as normas que regem as conexões das ocorrências, normas essas que permitem prever essas últimas.”. Para uma exposição didática do tema, ver FARRELL, Martin Diego.  La metodologia…, cit., pp.39-51, passim.

[24] Para uma crítica do uso da qualificação de realismo para essa corrente, por todos: BARBERIS, Mauro. “Un poco de realismo sobre el realismo ‘genovés’”, In: BELTRÁN, Jordi Ferrer e RATTI, Giovanni B. (eds.). El realismo jurídico genovés, Madri: Marcial Pons, 2011, pp.209 ss.

[25] Vide GUASTINI, Riccardo. “Il realismo giuridico ridefinito”, Revus - European Constitucionality Review, (2013), nº 19, Kranj/Eslovênia: Klub Revus, pp.97-111.

[26] GUASTINI, Riccardo. “Il realismo…”, cit., p.98. Essa tem sido uma afirmação repetida ad nauseam por Guastini em suas diversas obras sobre interpretação, porém sem dela sacar todas as suas consequências, como adiante demonstrarei.

[27] GREEN, Michael Steven. “Hans Kelsen and the logic of legal systems”, Alabama Law Review, (2003), Vol.54 nº 2, p.382.  Contra, entendendo que a teoria pura do direito paga elevado pedágio ao empirismo do Círculo de Viena, ÁVILA, Humberto. “Função da ciência…”, cit., p.22. Em uma posição intermediária, com boa exposição das influências do Círculo de Viena sobre Kelsen: JABLONER, Clemens. “Kelsen and his circle: the viennese years”. European Journal of International Law 9 (1998), pp.378 ss.

[28] KELSEN, Hans. “On the borders bettween legal and sociological method”. In: JACOBSON, Arthur and SCHLINK, Bernhard (eds). Weimar: A Jurisprudence of Crisis. Berkeley: University of California Press, 2000, p.57 ss.

[29] Nesse sentido, sem meias palavras, afirma GUASTINI, Riccardo. Teoría e ideologia de la interpretación constitucional. 2ª ed., Madri: Trotta, 2010, p.42: “Desafortunadamente, no existe ningún criterio para distinguir entre la interpretación correcta y las incorrectas”. Faltou dar um passo dedutivo além e afirmar ainda mais claramente: não existindo critério algum, não haveria interpretação correta e incorreta, sendo todas possíveis e admissíveis, como muito perto chegou Kelsen de afirmar, furtando-se em fazê-lo ao esconder-se na falácia das normas como significações prescritivas limitadas pela moldura textual.

[30] Essa é uma questão capital para o controle das decisões judiciais e para a sua legitimação. A decisão produziria uma norma em um novo texto, que ao ser interpretado produziria uma nova norma e um novo texto, assim ao infinito, transformando a prescritividade em um vazio de sentido. Há aqui uma aporia insolúvel dos infinitos sentidos que sentido algum teria na prática. Como já dizia Bobbio, lacuna não é ausência de norma, mas o excesso delas, a falta de um critério expletivo de decidibilidade. Assim, vide BOBBIO, Noberto. Teoria geral do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p.279.

[31] ÁVILA, Humberto. “Função da ciência…”, cit., p.22.

[32] KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 4ª. ed., São Paulo: Martins Fontes, 1994, p.3.

[33] KELSEN, Hans. Teoria pura…, cit., pp.4-5. A rigor, não seria a norma uma moldura, mas o conteúdo da disposição normativa que a conteria emoldurada.

[34] KELSEN, Hans. Teoria pura…, cit., pp.5, assere: “A circunstância de o ‘dever-ser’ constituir também o sentido objetivo do ato exprime que a conduta a que o ato intencionalmente se dirige é considerada como obrigatória (devida), não apenas do ponto de vista do indivíduo que põe o ato, mas também do ponto de vista de um terceiro desinteressado…” (p.8).

[35] KELSEN, Hans. Teoria pura…, cit., p.6, afirma: “‘Norma’ é o sentido de um ato através do qual uma conduta é prescrita, permitida, ou, especialmente, facultada, no sentido de adjudicada à competência de alguém. Neste ponto importa salientar que a norma, como o sentido específico de um ato intencional dirigido à conduta de outrem, é qualquer coisa de diferente do ato de vontade cujo sentido ela constitui. Na verdade, a norma é um dever-ser e o ato de vontade de que ela constitui o sentido é um ser.”

[36] Essa confusão entre texto e norma em Kelsen não deixou de ser sublinhada por GUASTINI, Riccardo. “Hans Kelsen sull’interpretazione”, in: GUASTINI, Riccardo e COMANDUCCI, Paolo (Org.). L’analise del ragionamento giuridico, vol.II, Turim: Giappichelli, 1989, pp.121 ss,

[37] KELSEN, Hans. Teoria pura…, cit., pp.390 ss.

[38] KELSEN, Hans. Teoria pura…, cit., pp.392-93.

[39] Sobre o problema das normas de competência para o realismo jurídico, vide: TUSSEAU, Guillaume. “La théorie des normes de compétence d’Alf Ross”. Revus - revue de théorie constitutionnelle et philosophie du droit, 24 (2014), Kranj/Eslovênia: Klub Revus, pp.115-140.

[40] A vasta obra do autor vienense é prenhe de contradições, justamente porque ele não toma em sério os pontos de partida assumidos ao separar as categorias do ser e do dever-ser, sobretudo quando o encontramos diante de questões de fronteira, nas quais a higidez das proposições teóricas passa a ser mais desafiada. Se alguém tem competência para editar normas, tal competência apenas pode provir de uma norma prévia que insira aquela pessoa em um plexo de atribuições e poderes. Assim, os legisladores possuem “the capacity of creating legal norms because a legal norm, namely the constitution, has accorded to them quality”. É essa significação normativa prévia que separa o comando emanado do legislativo daquele emanado de uma quadrilha: “The legislative function of parlament is based upon the constution; the decision of the criminal gang is not.” (KELSEN, Hans. “Value judgments in the science of law”, What is justice?: justice, law, and politcs in the mirror of science. Berkeley: University of California Press, 1971,  p.220).

[41] KELSEN, Hans. Teoria pura…, cit., pp.140-213.

[42] Sobre a posição do realismo jurídico americano, por todos: GRAY, John Chipman. The nature and sources of the law. Nova York: Columbia University Press, 1909, p.9: “O perigo em lidar com conceitos abstratos, seja na lei ou em qualquer outro departamento do conhecimento humano, é o de tirar os pés da terra real”. Adiante, na clássica obra, Gray critica fortemente o conceito de “direito subjetivo” e demais institutos jurídicos (pp.11 ss., passim).

[43] Assim, aproximando-se do ceticismo genovês, ÁVILA, Humberto. “A função da ciência…”, cit., pp.194-195: “A constatação de que toda interpretação envolve inevitavelmente uma escolha estruturada por métodos, baseada em argumentos e fundada em teorias, impede a defesa de que cabe à Ciência do Direito apenas descrever significados suscetíveis de conhecimento.”. E adiante: “a Ciência do Direito, por exigência do seu próprio objeto, não deve apenas descrever, mas também adscrever e criar significados…”. Essa é uma afirmação que parte de um pressuposto não tematizado: a de que as ciências sociais construiriam o seu objeto, enquanto as ciências naturais teriam como objeto o dado.

[44] TARELLO, Giovanni. “La semántica del néustico: observaciones sobre la ‘parte descriptiva’ de los enunciados prescriptivos”. In: BELTRÁN, Jordi Ferrer e RATTI, Giovanni B. (eds.). El realismo jurídico genovés, Madri: Marcial Pons, 2011, pp.15-39.

[45] Sobre o tema, HARE, Richard M. A linguagem da moral. São Paulo: Martins Fontes, 1996, pp.19-30, passim.

[46] TARELLO, Giovanni. “La semántica…”, cit., p.16.

[47] TARELLO, Giovanni. “La semántica…”, cit., p.18; HARE, Richard M. A linguagem…, cit.,p. 21.

[48] HARE, Richard M. A linguagem…, cit., p.24: “Tanto imperativos como indicativos têm de se referir ao estado de coisas a que dizem respeito. Isso significa que os imperativos, como os indicativos, podem sofrer da enfermidade para a qual chama a atenção a denominada teoria da verificação do significado; pois essa enfermidade, sendo uma enfermidade da frástica, nada tem que ver com as afirmações como tais; os que pensavam assim enganaram-se.”.

[49] No mesmo sentido, SCARPELLI, Uberto.  Contributo alla semantica del linguaggio normativo. Milão: Giuffrè, 1985, p. 124: “Asserzioni e norme si riferiscono a fatti e hanno in comune la designazione dei fatti nel frastico; ma il neustico delle asserzioni dice che i fatti sono o saranno, il neustico delle norme dice che devono essere, che i destinatari delle norme non terranno, ma devono tenere certi comportamenti.”.

[50] TARELLO, Giovanni. “La semántica…”, cit., p.32-33. Quero mais uma vez sublinhar que o realismo jurídico rejeita a existência de institutos jurídicos como os mencionados por Tarello, a exemplo do signo “relação jurídica”, porque os toma como entidades metafísicas ou fantasmagóricas; como o jurista italiano não os rejeita, embora sem tematizar o problema, terá que fazer concessões do psicologismo que o anima em favor de um certo convencionalismo mal explicado. Aliás, é a mesma aporia em que incide ÁVILA, Humberto. “Função da ciência…”, cit., p.195, que caminha de um solipsismo na atribuição de sentido do aplicador/intérprete/criador da norma ao convencionalismo de um controle a posteriori pela comunidade do discurso.

[51] Alguns autores não se dão conta desse aspecto conflituoso do pensamento de Tarello e, similiter, da corrente analítica italiana de matriz genovesa, ainda mais quando é consabido que ele defende uma concepção expressiva da norma, que seria o resultado de um ato linguístico que atribui ao enunciado um sentido prescritivo. Sobre o tema, MUFFATO, Nicola. “ Il concetto di neustico in Hare e Tarello”. Relazione per l’VII Seminario dei ricercatori di Filosofia del diritto. Girona: Universitat de Girona, 2008, p.5.

[52] TARELLO, Giovanni. L'interpretazione della legge, vol. I, t.2, Milão: Giuffrè, 1980, p.39. Outrossim, TARELLO. Giovanni. Diritto, enunciati, usi…, cit., p.403 ss.

[53] TARELLO, Giovanni. L'interpretazione..., cit., pp.61-62.

[54] TARELLO, Giovanni. L'interpretazione..., cit., p.63. No mesmo sentido, GUASTINI, Riccardo. Nuovi studi sull'interpretazione. Roma: Aracne, 2008, p.170.

[55] TARELLO, Giovanni. L'interpretazione..., cit., p.64

[56] Esse é um drama para qualquer expressão do relativismo jurídico. Quando, por exemplo, Riccardo Guastini se propõe questões concretas a serem resolvidas sobre temas muito delicados, como a segurança jurídica e os limites à atuação da atividade jurisdicional, encontramos uma linha absolutamente contrária à abordagem cética que ele faz teoricamente. Para ele, a atividade jurisdicional seria sempre vinculada, advertindo que, frente a uma uma norma cujo conteúdo legal não fosse predeterminado, não se poderia sequer falar em jurisdição. E assevera: “Insomma, che la legge debba predeterminare il contenuto dei provvedimenti giurisdizionali è cosa pacifica”, porque “‘Giudicare’ è, per definizione, dedurre un precetto singolare e concreto da una norma generale e astratta preconstituita” (GUASTINI, Riccardo. Il giudice e la legge. Turim: G. Giappichelli Editore, 1995, p.47). O que o autor italiano defende é um ceticismo em tese, que naufraga quando se encontra com os rochedos do mundo da vida.

[57] TARELLO, Giovanni. L'interpretazione..., cit., p.67. Ao fim e ao cabo, Tarello põe o controle social da interpretação apenas no campo da argumentação jurídica, no dever de fundamentar (Ibidem, pp.71-72). Mas não sem desqualificar o papel da lógica jurídica, especialmente da lógica deôntica (Ibidem, pp.75-85), e da nova retórica de Parelman (Ibidem, pp.85-99).

[58] Criei a expressão “algoico” para fazer referência à condição de objeto, de um dado que se põe à intencionalidade do sujeito transcendental (Husserl) ou da comunidade do discurso (nesse caso, como pensamento ou como proposição em si, consoante Bolzano, Frege e Popper) para ser conhecido. Aquilo que só existe enquanto usado, em que a menção é já um uso, não poderia ser objeto do conhecimento, sendo o inefável wittgensteiniano. Essa natureza algoica da coisa (a sua algoidade) não existiria para a norma jurídica e para os valores, por exemplo, se adotássemos a teoria analítica, o construtivismo ou o realismo jurídico. Em outros textos meus, esse ser-algo-aí da coisa foi por mim chamado de istidade (hecceidade, “thisness”), no sentido de “isto aí sobre o que estou falando”. Deixei, contudo, de usar a expressão pelo sentido filosófico que ela possui, desde Duns Scotus, substituindo-a por uma expressão mais precisa para o contexto do meu pensamento.

[59] Adotando esse entendimento, porém de modo soft, ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 15ª ed., São Paulo: Malheiros, p.51: “o significado não é algo incorporado ao conteúdo das palavras, mas algo que depende precisamente do seu uso e interpretação.”. Ávila não se refere a uso como ato de usar apenas, mas sobretudo como produto do ato de usar, que constituiria núcleos de sentido preexistentes à interpretação (Idem, p.34: “núcleos de sentido, que são, por assim dizer, constituídos pelo uso, e preexistem ao processo interpretativo individual”). - Cursiva original.

[60] Nesse sentido, VILLA, Vittorio. Il positivismo giuridico: metodi, teorie e giudizi de valore. Turim: G. Giappichelli Editore, 2004, p.175 ss., esp. p.180.

[61] Nesse sentido, GAUTHIER, Gilles. “La vérité: visée obligée du journalisme”. Les cahiers du jornalisme (2004) nº 13, pp.167 ss. No mesmo sentido sobre o construtivismo, NOVAK Michael. The experience of nothingness. Nova York: Harper and Row, 1970, apud: MARTIN, Stéphanie. “Vérité et objectivité journalistique: même contestation?”, Les cahiers du jornalisme (2004) nº 13, p.152, para quem: “there are non facts ‘out there’ apart from human observers. Events are not events until they are interpreted by human beings”.

[62] KELLY, Georg. The psychology…, cit., pp.9 ss.

[63] GUASTINI, Riccardo. Distinguendo: studi di teoria e metateoria del diritto. Turim: G. Giappichelli editore, 1996, p.95: “Ecco dunque che il termine ‘obbligo’, sebbene ordinariamente sia portatore di senso normativo, può essere usato anche nel discorso conoscitivo”. Impressiona que, diante da aporia a que se chega com o ceticismo jurídico, Guastini tenha exposto brevemente o que chamou de “teoria preditiva” (realismo jurídico) e de “teoria normativa” (positivismo), sem contudo apresentar um terceiro caminho em que seria possível trafegar com o seu construtivismo (ibidem, pp.96-97). Noutra oportunidade, em estudo prenhe de contradições (“Juristenrecht”, in: Distinguendo ancora. Madri: Marcial Pons, 2013, p.48), Guastini faz a separação do termo interpretação de norma expressa e inexpressa do que chamou de “construção jurídica”, voltando a asserir: “La formulazione di tale norme [refere-se à norma expressa], da parte dei giuristi, è frutto di un’operazione meramente cognitiva”. Ora, se há uma distinção necessária entre interpretação e construção jurídica, então aquela haveria de nada construir nem tampouco adscrever (reconstruir), é de se supor.

[64] GUASTINI, Riccardo. Interpretare e argumentare. Milão: Giuffrè, 2011, pp.27-33.

[65] GUASTINI, Riccardo. Interpretare…, cit., p.31.

[66] GUASTINI, Riccardo. Interpretare…, cit., p.35. Adotando integralmente essas distinções, ÁVILA, Humberto. “A função da ciência…”, cit., pp.184-5.

[67] GUASTINI, Riccardo. L’interpretazione dei documenti normativi. Milão: Giuffrè, 2004, pp.50-1. Do mesmo modo: Interpretare..., cit., pp.27 ss.; Le fonte del diritto e lìnterpretazione. Miláo: Giuffrè, 1993, pp.325 ss.; Teoria e dogmatica delle fonti. Milão: Giuffrè, 1998, pp.6 ss.

[68] GUASTINI, L’interpretazione…, cit., p.53.

[69] Por todos, GUASTINI, Riccardo. Il giudice…, cit., pp.18-9: “una cosa come il significato ‘proprio’ della parole semplicimente non existe: il significato delle parole è una variabile dipendenti del modo de usarle e di intenderle. Sicchè ogni menssaggio linguistico può avere o il significato che vi ha incorporato l’emittente, o il significato che gli attribuisce il fruitore.”.

[70] Não seria o caso de aqui tratar desse aspecto ideológico por detrás do ceticismo jurídico, que termina concedendo ao Estado um poder supremo sobre o cidadão. Essa, sem dúvida alguma, é uma concepção inimiga das sociedades abertas. A terrível experiência do fascismo na Itália e do nazismo na Alemanha faria corar os que defendessem a discricionariedade judicial em sentido forte. GUASTINI, Riccardo. Il giudice…, cit., pp.52, que firmemente assere em nível teórico que as disposições normativas não carregam embutida consigo a significação prescritiva, fica em situação desconfortável quando tem que se manifestar sobre a interpretação judicial do texto positivo penal. Se noutras oportunidades ele afirma que a atividade jurisdicional é vinculada à lei, enfatizando ser assim apenas “si si fa astrazione della discrezionalità interpretativa”, diante da lei penal, contudo, ele perde muito do seu entusiasmo com aquelas certezas céticas que costuma sustentar em nível teórico: “in materia penale, il legislatore ha precisamente l’obbligo di sopprimere - o, almeno, di ridurre fin dove è possibile - la discrizionalità che inerisce all’interpretazione e perciò alla giurisdizione.”.

[71] SPAAK, Torben. “Naturalism in Scandinavian and american realism: similarities and differences”. In: Ratio juris 11, pp.33-83.

[72] Na verdade, para o positivismo lógico a significação seria uma qualidade da linguagem com referência a algo real no mundo (Carnap), cumprindo uma função linguística em dada oração. Como deixa claro RAMSEY, F.P. “Universals”, (1925) Mind 34 (136): pp. 401-417, estaria superada a questão vetusta da existência dos universais, agora tratados como sujeito ou predicado de uma oração, não como ideias a se stante. Para Carnap, em uma radicalização do empirismo, só existiria o fato atômico enunciado por proposição protocolar e passível de verificação. RUSSELL, Bertrand. An inquiry into meaning and truth. Londres: Georg Allen and Unwin Ltd., 1956, pp.310 e 341 ss., tempera o reducionismo de Carnap e Schlick, entendendo ele que as ocorrências não-verbais também poderiam ser objeto do conhecimento através do hábito e da memória, cuja falibilidade admitiria a complementação pela percepção: “there will be a kind verification which existence-proposition expressing a memory-belief. The kind of verification, however, in view of the fallibility of memory, is inferior to that by perception, and we shall always endeavour, as far as we can, to supplement it by perceptive verification”. O que fica claro, então, é que (a) a significação seria uma qualidade da sentença; (b) poderia se referir a ocorrências não-verbais conhecidas pela mente (psicologismo, solipsismo) e “lembradas” pelo hábito; e (c) as entidades metafísicas não poderiam ser tematizadas e conhecidas. Sobre esse tema, há uma alentada exposição em STEGMÜLLER, Wolfgang. A filosofia contemporânea: introdução crítica. 2ª ed., Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012, pp.257 ss.

[73] Por todos, defendendo Austin dos ataques advindos da cidadela do realismo, BROWN, W. Jethro. The austinian theory of law. Londres: John Murray, 1906.

[74] Nesse sentido, GADAMER, Hans-Geor. Verdad y método. 13ª ed., Salamanca: Ediciones Sígueme, 2012, pp. 13-4, passim. Quanto à inaplicabilidade dos métodos interpretativos para a criatividade do intérprete: GMELIN, Johann Georg. “Dialecticism and technicality: the need of sociological method”. In: BRUNCKEN, Ernes et al (orgs.). Science of legal method: select essays by various authors, vol.9, Boston: The Boston Book Company, 1917, pp.97-8: “we can guarantee the formal correctness of procedure but never the correctness of the results”. Também, STELMACH, Jerzy e BROZEK, Bartosz. Methods of legal reasoning. Dordrecht: Springer, 2006, que não tratam daqueles clássicos métodos interpretativos da escola de Savigny no quadro das correntes argumentativas, analíticas, hermenêuticas, etc.

[75] ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios…, cit., pp.52; e “Função da ciência…”, cit., passim.

[76] ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios…, cit., pp.52-53.

[77] Ibidem, p.53.

[78] Ibidem, p.55, passim.

[79] Ibidem, p.87.

[80] Ibidem, p.66.

[81] Ibidem, cit., p.84. Em sentido diverso, há manifestações na mesma obra, como quando da análise de um caso concreto: ÁVILA, Humberto. “Parecer: Conflito entre o Dever de Proteção à Saúde e o Dever de Proteção à Liberdade de Comunicação e Informação no Caso da Propaganda Comercial de Tabaco. Exame De Constitucionalidade da Lei Nº 9.294/96”. REDAE - Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico (2011) nº 25, Salvador: Instituto Brasileiro de Direito Público: “O importante, nesse aspecto, é que as regras constitucionais que atribuem ou limitam a competência do Poder Público, quando utilizam palavras específicas, como ‘comunicação social’, ‘propaganda comercial’, ‘advertência’, estabelecem conceitos, cujos núcleos de significado não podem ser desprezados pelo intérprete, nem mesmo a pretexto de prestigiar algum valor constitucional, supostamente de maior hierarquia”.

[82] Ibidem, cit., pp.84. Em sentido diferente: AgR no REsp nº 753.469/SP, 1ª T., Rel. Min. Luiz Fux, DJ 27.3.2006, p.203.

[83] Dando maior densidade aos conceitos normativos, porém: ÁVILA, Humberto. “Parecer: Conflito…”, cit.: “A previsão de conceitos constitucionais pode ser feita de duas formas. De um lado, de modo direto, nos casos em que a Constituição já enuncia expressamente as propriedades conotadas pelos conceitos que utiliza. De outro, de modo indireto, nas situações em que o poder constituinte, ao escolher expressões cujas propriedades já eram conotadas em conceitos elaborados pelo legislador infraconstitucional à época da promulgação da Constituição, opta por incorporá-los ao ordenamento constitucional. Em qualquer dessas hipóteses, a Constituição fixa balizas que não podem ser ultrapassadas pelo legislador ordinário sob a sua vigência”.

[84] ÁVILA, Humberto. Segurança jurídica: entre permanência, mudança e realização no Direito Tributário. São Paulo: Malheiros, 2011, p.318. Cursiva original.

[85] ÁVILA, Humberto. Segurança jurídica…, cit., p.318. Adiante, diz Ávila: “O essencial para a existência de cognoscibilidade do Direito é que haja regras e exceções…, perceptíveis com base em critérios minimamente objetivos e controláveis.” (ÁVILA, Humberto. Segurança jurídica…, cit., p.319).

[86] ÁVILA, Humberto. Segurança jurídica…, cit., p.325.

[87] ÁVILA, Humberto. Segurança jurídica…, cit., p.108.

[88] ÁVILA, Humberto. Segurança jurídica…, cit., pp.170-1.

[89] Em sentido diverso, porém, entendendo que o aplicador está vinculado à natureza normativa, afirma ÁVILA, Humberto. “Parecer: Conflito…”, cit.: “A verificação da dimensão normativa de regra das normas acima mencionadas traz consequências para o aplicador. Com efeito, a característica dianteira das regras é a previsão de um comportamento a ser adotado ou de um efeito atribuído a um ato praticado ou fato ocorrido, como demonstrado. Diante de uma regra, o aplicador deve verificar se o ato praticado ou o fato ocorrido se encaixa no conceito da previsão normativa, como se passa a demonstrar”. Ainda mais enfaticamente, assevera adiante: “Tendo sido instituídas regras, que descrevem os meios a serem utilizados pelo Poder Legislativo, o aplicador está vinculado à descoberta do significado mínimo das palavras usadas pela Constituição. Ainda que exista alguma margem de indeterminação na linguagem, o intérprete está adstrito aos seus significados mínimos, pois ele, como diz o Supremo Tribunal Federal, ‘... não deve ir além dos limites semânticos, que são intransponíveis’.” (Cursivo nosso).

[90] STF: “O conteúdo político de uma Constituição não é conducente ao desprezo do conteúdo vernacular das palavras, muito menos ao do técnico, considerados os institutos consagrados pelo Direito.” (RE nº 166.772-9-RS, Rel. Min. Marco Aurélio, DOU 12.05.94).

[91] “Argumentos de necessidade, por mais relevantes que possam ser, não devem prevalecer sobre o império da Constituição. Razões de Estado, ainda que vinculadas a motivos de elevado interesse social, não podem legitimar o desrespeito e a afronta a princípios e valores sobre os quais tem assento o nosso sistema de direito constitucional positivo.” (STF: RE nº 150.764, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, 16.12.92).

[92] ÁVILA, Humberto. “Função…”, cit., pp.183 ss. Outrossim: "Ciência do Direito Tributário e Discussão Crítica", in: Revista de Direito Tributário Atual, 32, São Paulo: IBDT, 2014, pp.159-197.

[93] GRAU, Eros Roberto. “ Prefácio”, In: ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios…, cit., p.23: “Uma das conferências que assisti em um ainda recente congresso versava sobre a distinção entre os métodos de interpretação, gramatical, teleológico, etc. De repente percebi que quem palestrava tinha mais de duzentos anos, um autêntico morto sem sepultura…”.

[94] GUASTINI, Riccardo. L’interpretazione…, cit., pp.139 ss.; Idem, Le fonti del diritto…, cit., pp.359 ss.

[95] HAGE, Jaap. “What is a norm?, Studies in legal logic, Dordrecht: Springer, 2005, pp.159 ss., esp. pp.201-202.

[96] ÁVILA, Humberto. "Ciência do Direito Tributário…", cit. p. 169: "A função descritiva da Ciência do Direito supõe um sentido pré-constituído no produto legislado, tanto que - expressa e insistentemente - mencionam que o discurso doutrinário não interfere no objeto nem o modifica; a Ciência do Direito, contudo e como visto, não apenas descreve, mas reconstrói, adscreve e cria significados. A reconstrução de significados, a escolha de um significado entre os vários admissíveis por um dispositivo e a con­cretização de princípios por meio da criação de regras implícitas, entre outros exemplos, comprovam que os conteúdos normativos não podem ser simplesmente descritos, sem qualquer interferência, tal como  se  apresentam,  como defende Carvalho".

 

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