ABDPRO #102 - COMO DEVEMOS INTERPRETAR A CONSTITUIÇÃO?

11/09/2019

Coluna ABDPRO

A discussão a respeito da interpretação no e do direito passa necessariamente pela compreensão de que a linguagem e a interpretação não são apenas ferramentas para explicitarmos o sentido das coisas ou justificarmos nossas posições, mas verdadeiras condições de possibilidade do conhecimento humano.

Ainda que o tema possa ser “novo” para boa parte dos juristas no Brasil, a Filosofia, há mais de meio século, enfrentou a questão ao demonstrar, com Wittgenstein II e, principalmente, com Heidegger e Gadamer, que o sujeito não acessa o mundo em si: antes, constrói-o por meio da linguagem, concebida a partir da historicidade humana. O mundo apenas chega ao homem depois que codificado linguisticamente. Antes disso é mero dado bruto e inalcançável.

Com efeito, a reviravolta paradigmática da Filosofia ocorrida na metade do século XX demonstrou que os filósofos até aquele ponto da história buscavam as verdades diretamente nas coisas (paradigma essencialista/objetivista) ou na razão do homem (paradigma subjetivista/filosofia da consciência), ora fundamentando o processo cognitivo no objeto conhecido, ora no sujeito cognoscente. Por vezes, com objetivo de alcançar a neutralidade, olvidavam-se da peça mais fundamental ao conhecimento – o próprio homem –, ao tempo que davam à linguagem caráter instrumental. Agiam como se possível fosse falar de algo ou construir o conhecimento sobre algo longe do homem, em uma relação da qual ele não participasse, e alheia ao processo linguístico, como se toda a atividade cognoscente não o pressupusesse. À revolução filosófica que desfaz esses enganos dá-se o nome de giro (ou reviravolta) ontológico-linguístico.

Como bem esclarece Georges Abboud, “para mencionar algo precisamos dizer o que esse algo é (...). Ora, quem diz o é do ser é este ente chamado homem, ser humano e que em Heidegger responde pelo nome alemão Dasein, definido por Paul Ricouer como ‘um ser cujo ser consiste em compreender’.”[1].

A revolução desse pensamento consistiu em reconhecer, portanto, que todo o conhecimento só pode ser analisado e compreendido por meio do homem. Dos entes que estão no mundo, o homem é o único capaz de compreender; mais do que isso, é o único cuja própria existência consiste em compreender o mundo e a si. O homem está sempre inserido em um mundo cujos seres já compreendeu, em uma relação circular que se desenvolverá até sua morte.

Em termos mais didáticos, a revolução paradigmática da filosofia no século XX mostrou que as coisas por si não existem para o sujeito, e, na realidade, manifestam-se apenas na pré-compreensão do homem sobre elas, a que Heidegger atribuirá o nome de ser (ente interpretado, pré-compreensão). Essa interpretação, longe do que acreditava a filosofia da consciência, não é livre, e ocorre independentemente da vontade humana, condicionada à historicidade do homem e a um campo comum de conhecimento intersubjetivo.

Vamos ao interessante exemplo que sugere Ernildo Stein para ressaltar o papel do homem na interpretação dos entes[2]. Imaginemos alguém que se depara com um quadro do Volpi, com todos seus atributos. Como sabe que está olhando efetivamente para um quadro e não para um objeto qualquer? Seriam apenas os atributos físicos do quadro que poderiam lhe dizer isso (moldura, desenhos, figuras)?

A resposta a essa pergunta não está especificamente na coisa em si (quadro), mas no “algo a mais” que há na situação e que nos permite compreender, sem que sequer tenhamos nos dado conta, que se trata de um quadro e não de qualquer outra coisa. Esse “algo a mais” é o que se chamou de “ser” do quadro, que, na verdade, não está imediatamente na obra de arte, mas na pessoa que o observa. Esse sujeito observador está situado num dado contexto histórico, em que a ideia do que é um quadro foi construída intersubjetivamente por meio da linguagem. O sujeito só sabe que aquilo é um quadro porque desde sempre tem a preconcepção do que um quadro é, “herdada” do contexto em que está historicamente situado. Daí dizermos que o quadro emerge como objeto já interpretado e pré-compreendido a partir da historicidade humana. Veja-se que é a pessoa, e não a obra de arte, o ponto de partida para que a compreensão seja possível, pois é ele quem detém historicidade. O homem não precisou parar e se perguntar se aquilo seria ou não um quadro, o sentido simplesmente lhe surgiu e lhe surgiu como linguagem, pois já era pré-compreendido. Se não estivesse ali o homem para se deparar com a obra de arte, o quadro não seria um quadro; o quadro não seria nada, posto que despido de existência ou historicidade.

É necessário advertir: o fato de o giro ontológico-linguístico atentar para o papel do sujeito no processo de conhecimento não o equipara à filosofia da consciência. Nessa, o sujeito é um verdadeiro senhor de sentidos, que os constrói arbitrariamente. O que aqui introduzimos é uma outra visão, na qual o processo cognitivo se dá a partir do sujeito, é verdade, mas de maneira intersubjetiva, histórica e com referência ao objeto, que também lhe impõe limites.

Em suma – e feitas essas necessárias reservas –, o ponto principal dessa revolução operada na filosofia é que, a partir de então, a linguagem deixa de ter caráter instrumental e secundário no conhecimento humano, para se tornar sua condição de possibilidade, sem a qual a própria existência do homem não é possível. Nas palavras de Manfredo A. de Oliveira, “todo pensar já se movimenta no seio da linguagem, ou seja, se articula numa abertura, num espaço linguisticamente mediado, no qual se abrem para nós a perspectivas para a experiência do mundo e das coisas[3].

E o que essa questão filosófica tem a ver com o direito e a interpretação da Constituição? Tudo.

Quando compreendemos que o mundo é feito de linguagem e de entes sempre já (pré) compreendidos/interpretados/conhecidos pelo homem, com sentidos que a ele se adiantam antes mesmo de qualquer questionamento, não podemos negar que o mesmo acontece com o direito e, mais precisamente, com a Constituição.

É dizer, quando nos deparamos com a Constituição ou com os direitos e garantias lá assegurados, há um sentido que já se antecipa antes mesmo de qualquer interpretação, sentido esse que nos é dado pela própria historicidade humana e que nos obriga a conhecer a Constituição a partir de uma intersubjetividade histórica já pré-compreendida.

No caso de nossa Constituição, devemos interpretá-la não a partir de “métodos próprios de interpretação”, mas a partir da Hermenêutica Filosófica, levando em consideração o paradigma do Estado Democrático (e Social) de Direito e da evolução do constitucionalismo e do processo civilizatório no mundo e no Brasil.

Sobre o tema, Lenio Streck esclarece que “mais do que uma classificação ou forma de Estado ou de uma variante de sua evolução histórica, o Estado Democrático de Direito faz uma síntese das fases anteriores, agregando a construção das condições de possibilidades para suprir as lacunas das etapas anteriores, representadas pela necessidade do resgate das promessas da modernidade, tais como igualdade, justiça social e a garantia dos direitos humanos fundamentais”[4]. Possui, assim, um viés transformador, dotado de plena autonomia.

Veja-se, nesse sentido, que essa característica transformadora pode ser verificada já no artigo 3º da Constituição Federal, ao prever que o Brasil visa construir uma sociedade livre, justa e solidária, erradicar a pobreza e atingir a justiça social.

Ocorre que, caso renegado ao papel de mera instrumentalidade formal, a um mero “texto jurídico”, o Direito perde sua capacidade transformadora, em clara afronta ao apregoado pela própria Constituição: a construção do Estado Democrático (e Social) de Direito.

Nesse cenário, fica a lição geral de que o constitucionalismo se insere em todo um movimento maior de civilização e de racionalização do poder, estruturando-se como elemento fundamental para a salvaguarda dos direitos fundamentais frente às maiorias eventuais e os arbítrios do Estado e de parcela sociedade[5], elemento hermenêutico este que jamais pode ser ignorado quando nos voltamos a interpretar nossa Constituição Federal.

Ocorre que, muito em razão da deficiência técnica do ensino de Direito no país e do uso tacanho que se faz do direito no nosso dia-a-dia, a nossa “pré-compreensão” (ilegítima, é verdade, não no sentido de efetiva pré-compreensão a que alude Gadamer), justamente por ignorar esse elemento hermenêutico irrefutável, leva-nos a resultados catastróficos no dia-a-dia, tolhendo a efetividade de nossa Constituição e dos direitos fundamentais por ela protegidos.

É claro que seria ingenuidade acreditar que a nossa Constituição, sozinha, por melhor que ela seja, teria o condão de resolver todas as mazelas do Brasil.[6]

Contudo, ao analisarmos que nosso texto Constitucional é muito mais rico e generoso do que as leis fundamentais de países como Alemanha, Reino Unido e Estados Unidos da América, talvez a culpa para que não tenhamos atingido o patamar de democracia desses países não esteja na Constituição que temos (como muitos pregam irresponsavelmente), mas, sim, em nossos intérpretes[7].

Ainda hoje o nosso ensino jurídico trata a linguagem (e o direito) como mero instrumento, nega a normatividade da Constituição (por expedientes como as normas de mero caráter programático, por exemplo), deixa de compreender a diferença entre texto e norma, ainda defende a máxima de que casos fáceis prescindem de interpretação, acredita que a decisão judicial seja ato de vontade, tolera que ela venha antes do fundamento, crê na subsunção do fato à norma, prega a criação de súmulas e “precedentes vinculantes” como solução de diminuição de conflitos, entre outras graves convicções que partem de uma incompreensão do Direito enquanto fenômeno hermenêutico.

Se em algum lugar do mundo isso pode não ser predatório, para o Brasil, país cujo regime democrático é jovem, esse diagnóstico é fatal. Ao não reconhecer a revolução introduzida pela virada ontológico-linguística de Heidegger e Gadamer, insistimos em objetificar o Direito e, assim, fechamos os olhos para a sua função social, para seu papel histórico de limitação ao poder e para o processo de concretização do Estado Democrático de Direito[8]. Em síntese, negamos efetividade à maior conquista da civilização brasileira enquanto povo, nossa Constituição cidadã de 1988.

Com o alerta de Georges Abboud, a Constituição não se concretizará sozinha, sem a ajuda dos agentes políticos e da sociedade. Em suas palavras, “(...) já passou da hora de a Constituição receber, principalmente dos juristas, a importância que ela merece”, dado que precisamos amadurecer intelectual e politicamente para “aceitar que nem tudo pode ser como gostaríamos que fosse, ou ainda, que nossa visão de mundo não pode ser imposta à força para os demais segmentos da sociedade”[9], tudo ao arrepio da Constituição.

A Constituição Federal comemora seu trigésimo aniversário, o que foi e está sendo lembrado e comemorado por muitos juristas, políticos e até mesmo jornalistas. Nesse cenário, o único alerta que fica é o de que não podemos ser como os familiares da D. Anita[10] e ficar bajulando a aniversariante com fins espúrios. De nada adianta desejar-lhe parabéns pessoalmente mas destratá-la pelas costas. A Constituição, assim como aquela acanhada senhora, tem que ser levada a sério e – para nosso bem – muito antes de completar seus 89 anos de vida (se tivermos a sorte de vê-la chegar lá com saúde e integridade).

 

Notas e Referências

ABBOUD, Georges. Processo Constitucional Brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2ª ed., 2018.

_______. Cinco mitos sobre a Constituição Federal brasileira de 1988. São Paulo: Revista dos Tribunais (Impresso), v. 996, p. 27-51, 2018

LISPECTOR, Clarice. Todos os Contos. São Paulo: Rocco digital, 2016, 1ª ed.

OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta Linguístico-Pragmática na Filosofia Contemporânea. São Paulo: Edições Loyola, 2006 (3ª ed.).

STEIN, Ernildo. A Caminho do Paradigma Hermenêutico. Ensaios e Conferências. Injuí: Unijuí, 2017, 2ª ed.

STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica e Jurisdição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2017.

_______. Hermenêutica, Constituição e Autonomia do Direito. In: Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito (RECHTD), v. I, n. I, pp. 65-77, janeiro-junho de 2009. São Leopoldo: Unisinos, 2009. Disponível em: http://revistas.unisinos.br/index.php/RECHTD/article/view/5137. Acesso em 17/07/18.

_______. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica: Perspectivas e Possibilidades de Concretização dos Direitos Fundamentais-Sociais no Brasil. In: Revista Novos Estudos Jurídicos v. 8, n. 1, maio/agosto. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 261

[1] ABBOUD, Georges. Processo Constitucional Brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2ª ed., 2018, p. 190

[2] STEIN, Ernildo. A Caminho do Paradigma Hermenêutico. Ensaios e Conferências. Injuí: Unijuí, 2017, p. 109-110.

[3] OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta Linguístico-Pragmática na Filosofia Contemporânea. São Paulo: Edições Loyola, 2006 (3ª ed.), p. 206.

[4] STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica: Perspectivas e Possibilidades de Concretização dos Direitos Fundamentais-Sociais no Brasil. Revista Novos Estudos Jurídicos, v. 8, n. 2, maio/agosto. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 261.

[5] ABBOUD, Georges. Processo Constitucional Brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2ª ed., 2018, p. 56-57.

[6] Cf. nesse sentido: ABBOUD, Georges. Cinco mitos sobre a Constituição Federal brasileira de 1988. São Paulo: Revista dos Tribunais (Impresso), v. 996, p. 27-51, 2018.

[7] Idem, p. 61.

[8] Hermenêutica, Constituição e Autonomia do Direito. In: Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito (RECHTD), v. I, n. I, pp. 65-77, janeiro-junho de 2009. São Leopoldo: Unisinos, 2009, p. 68. Disponível em: http://revistas.unisinos.br/index.php/RECHTD/article/view/5137. Acesso em 17/07/18.

[9] ABBOUD, Georges. Processo Constitucional Brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2ª ed., 2018, p. 60 e 62.

[10] Referência aqui à personagem central do conto “Feliz Aniversário” de Clarice Lispector. In: LISPECTOR, Clarice. Todos os Contos. São Paulo: Rocco digital, 2016, 1ª ed.

 

 

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