O Presidente da ABDPro, Eduardo José da Fonseca Costa, convida-me para fazer a coluna inaugural aqui no Empório. Com muita honra, aceito. Para dizer algumas coisas simples. Por exemplo, por que luto contra o solipsismo, o realismo e todas as formas de protagonismo antidemocrático.
Há muitas coisas para tratarmos. Quando falo na “preservação do grau adequado de autonomia do Direito”, quero mostrar preocupação com os predadores externos e internos do Direito. Todos sabem quais são os predadores externos e internos. Tenho escrito muito sobre isso.
Por estes dias ou meses – especialmente na fase pós-CPC/15 – é impossível não relacionar o fenômeno dos “precedentes” (no modo como tem sido defendido pelos defensores de Cortes de Vértice ou Corte de Precedentes), propositalmente entre aspas, com aquele, também combatido por mim, que passei a chamar de febre dos enunciados[1]. Por duas razões, sendo uma invariavelmente relacionada à outra:
Primeiro, porque ambos têm uma relação diretíssima, uma vez que têm características similares;
Segundo, e mais importante, porque ambos
(i) correspondem à mesma (falha) tentativa de se chegar a respostas antes mesmo das perguntas e,
(ii) na mesma medida, pretendem-se elucidativos e, mais que isso, pretendem-se soluções a problemas interpretativos, quando, em verdade, como foi visto ao longo desta obra, essa pretensão em si mesma está atrelada a paradigmas filosóficos superados já há muito.
Vejamos: a Crítica Hermenêutica do Direito (que se abebera da filosofia hermenêutica e da hermenêutica filosófica) bem diz que uma proposição não é o lugar da verdade; ao contrário, a verdade é o lugar da proposição. Essa questão é igualmente muito bem trabalhada por Ernildo Stein. Isto quer dizer que, no plano dos paradigmas filosóficos, o enunciado (do tipo preconizado pela comunidade jurídica) e o precedente não podem ser o lugar da verdade.
Vou além: a verdade de que falo é, ainda, uma verdade fundamentada, para a qual se tem critérios através dos quais será possível dizê-la ou não. Afinal, então, como se pode fazer, ou mesmo pretender fazer, proposições “adivinhatórias”, prospectivas? Como posso até mesmo buscar verdades correspondenciais se sequer explicito o que exatamente desejo fazer corresponder? Isso é sempre contingencial. Ora, é a facticidade. Não é difícil perceber que, desprendida do contexto em que se insere, a proposição – seja ela proposta por meio de enunciado ou precedente – é vazia. É um conceito sem coisa.
Em relação à pretensão dos juristas de se fazer enunciados e precedentes (no modo como essa questão vem sendo posta como Cortes de Vértice ou Cortes de Precedentes, que fazem “teses” a partir de um ato de vontade), Ernildo Stein nos lembra – e bem – que não é a realidade que é contraditória; os nossos discursos sobre a realidade é que são contraditórios. Por isso temos de ter cuidado para não confundir a estrutura dos nossos discursos com a estrutura da realidade. Como dizia Heráclito: o logos das coisas é um; o dos filósofos – intérpretes –, outro. Por isso a simetria entre os dois logos será sempre ideal. Ou ilusória. Veja-se o personagem Roquentin, de La Nausée (A Náusea), de Sartre, que espera que a realidade, para ser descrita, já deveria possuir as próprias estruturas da própria linguagem; isso também estava em Wittgenstein, no Tratactus, em que a comunidade da forma lógica seria a precondição para a adequação representacional. Ou seja, a pretensão de isomorfia é ilusória. Impossível.
Não paremos por aí. Falemos da fundamentação – ou, melhor, do problema que está na ausência defundamentação. Quando a proposição se desprende do contexto, seu fundamento único (e último) é o sujeito que põe a proposição (o enunciado, o precedente). É ou não um verdadeiro retorno à relação sujeito-objeto? Os juristas enuncialistas e precedentalistas – em termos de fundamento filosófico, comportam-se de forma semelhante – são pura personificação da filosofia da consciência e seu problema da semântica. Um sujeito propõe. De que lugar? Qual é a fundamentação (no caso, do enunciado ou do precedente)? Uma outra palavra ou um conjunto de palavras. Uma analítica que se autofunda. Ou, como diz Rosemiro Leal, uma Tópica sem Tópica. Trata-se do fetichismo das palavras, que se, de um lado, cai no problema semântico, de outro, cai também no convencionalismo. Algo como “antes dos conceitos, nada existe ou, se existe, não tem a relevância suficiente para alterar o conceito que formularei”.
Quando um conjunto de atores (sujeitos) propõe algo, através de um enunciado ou um precedente, propõe nada senão um conjunto de palavras que pretende abarcar o mundo – o ponto é que isso é feito sem que se saiba, contudo, de que mundo se trata. Pois vejamos: se este neoproposicionismo não está assentado no cogitocartesiano, ou no Ich denke kantiano, ou em algum tipo de afirmação da subjetividade, então a outra explicação é a de voltar à cartografia do mito do dado da pré-modernidade.
Sem se darem conta, os adeptos dos enunciados e “cortes de precedentes” querem uma volta às cartografias pré-explicativas do mundo. A partir de Heidegger, Gadamer e Stein, pode-se dizer que a verdade é necessariamente transcendental – e, veja, para além de um sentido kantiano. Os precedentes e os enunciados representam um retorno ao sujeito que objetifica a realidade que, por sua vez, deseja retornar ao assujeitamento das cartografias que pretendem conter a completude do mundo em si. A mixagem de paradigmas superados das metafísicas em seu sentido ontoteológico moderna e clássica opera mais uma vez.
Enunciados, precedentes vinculantes inautênticos, positivismo jurídico, solipsismo, sujeito da modernidade, metafísica clássica, relação sujeito-objeto. Tudo isso está interligado à luz da mesma insistência em fechar os olhos ao giro ontológico-linguístico.
E para além disso encerro com um alerta: em termos psicanalíticos, a compreensão do mundo é da ordem do não-todo; o Real é de impossível acesso (falo, por óbvio, da tricotomia Real-Imaginário-Simbólico, de Lacan). E em termos gadamerianos, o esgotamento do significado (de um texto, da arte, do mundo), jamais chega a um fim em algum lugar; é, ao contrário, um processo infinito. Assim, quando a caminhada rumo ao fim da interpretação dá seu primeiro passo atrás, o sucesso de se aprisionar o mundo em palavras, porque impossível, se afasta dois passos; dá-se mais dois, e o propósito de um sentido último afasta-se quatro. E por aí vai, e, antes que percebamos, estaremos regredindo em constância. Se, como o célebre Eduardo Galeano disse certa vez, a utopia que se afasta no horizonte é o que faz com que caminhemos, a eternamente infrutífera tentativa de se aprisionar o mundo em proposições é o que nos fará retroceder ad infinitum.
Notas e Referências:
[1] Cf. STRECK, Lenio Luiz. Enunciado cancela enunciado; uma “jurisdição enunciativa”? Quo vadis? Consultor Jurídico. São Paulo, 14 set 2017. Disponível em: < http://www.conjur.com.br/2017-set-14/senso-incomum-enunciado-cancela-enunciado-jurisdicao-enunciativa-quo-vadis>. Acesso em: 22 set 2017; STRECK, Lenio Luiz. A febre dos enunciados e a constitucionalidade do ofurô! Onde está o furo? Consultor Jurídico. São Paulo, 10 set 2015. Disponível em: < http://www.conjur.com.br/2015-set-10/senso-incomum-febre-enunciados-ncpc-inconstitucionalidade-ofuro>. Acesso em: 22 set 2017; STRECK, Lenio Luiz. Os enunciados do Fonacrim, os falsos dilemas e o problema das prisões. Consultor Jurídico. São Paulo, 24 ago 2017. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2017-ago-24/senso-incomum-enunciados-fonacrim-falsos-dilemas-problema-prisoes>. Acesso em: 22 set 2017.
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