ABDDPRO #99 - ENTRE DEMOCRACIA E ARBÍTRIO: A METÁFORA DA KATCHANGA E A LUTA CONTRA A CORRUPÇÃO

21/08/2019

Coluna ABDPRO

Credita-se ao saudoso Luís Alberto Warat a autoria da estória da Katchanga, contada e recontada diversas vezes e com fins variados: na primeira oportunidade, serviu-nos como metáfora explicativa da empreitada hermenêutica, na segunda, como denúncia da prática interpretativa despótica, que coloca a jurisdição no plano do arbítrio. Para aqueles que ainda não conhecem o conto a que nos referimos, segue apertada síntese, guiada pela narrativa de Lenio Streck.[1]

Num dado local, existia um Cassino que disponibilizava aos fregueses todos os tipos de jogos. A banca nada declinava: o entretenimento era universal, desde pôquer, até a bocha. Eis que, numa noite qualquer, adentra o estabelecimento um forasteiro e propõe ao croupier (que era também dono do Cassino) uma partida de Katchanga. O croupier, nada obstante não conhecesse o jogo em questão, de pronto aceita o desafio, seguro de que aprenderia as regras no curso das partidas.  O desafiante começa. Retira do bolso um baralho de cartas, distribui dez para cada um e, desde logo, compra duas. Posteriormente, toma para si cinco cartas e devolve três. Antes que o croupier se atrevesse ao próximo movimento, o desafiante coloca suas cartas na mesa e anuncia: Katchanga. Sem mais, recolhe todo o dinheiro apostado. O croupier observou a sequência de cartas montadas pelo forasteiro e, na rodada seguinte, imitou-a, certo de que descobrira o segredo do jogo. Entretanto, o forasteiro novamente atirou suas cartas à mesa, disse “Katchanga” e recolheu o prêmio. Desta vez, as cartas postas não obedeciam em nada o padrão anterior. Conforme as diversas partidas se sucederam, o cassineiro finalmente percebeu que era inútil buscar sequências no carteado. A vitória, ao fundo, seria daquele que primeiro dissesse Katchanga, não importava quais cartas tivesse à mão. Estava claro! Finalmente dominava a regra fundamental.

O cassineiro, então, desafiou o forasteiro à partida final: ou tudo, ou nada. Certo de que ganharia, na primeira oportunidade atirou as cartas à mesa e, orgulhoso, vociferou “Katchanga!”. Estava prestes a recolher o dinheiro, quando, de repente, o desafiante o surpreendeu. Sem mais, atirou suas cartas à mesa e decretou: “Katchanga real”.

Está aí o conto, que, sem sombra de dúvida, esconde uma lição hermenêutica importantíssima: a dogmática jurídica não consegue antever todas as situações, sempre lhe escapa algo. Conforme Lenio Streck, “há sempre um não dito, que pode ser tirado da ‘manga do colete interpretativo’. Esse é o papel da interpretação, para o ‘bem’ e para o ‘mal’”.[2]

Contudo, da estória extraímos um ensinamento político, quiçá mais urgente que a lição interpretativa retro. É inegável o papel criativo da hermenêutica; é evidente que o texto normativo é um produto sempre inacabado, que só encontra seu verdadeiro potencial à luz do caso concreto; que o exegetismo deve ser superado, etc.[3] Entretanto, o potencial criativo da interpretação não pode ser o germe do voluntarismo. Dito de outro modo: a linguagem sempre deixa espaço para a criação, mas também lhe coloca (ou deve lhe colocar) limites. A Katchanga, a princípio projetada como metáfora acerca do papel da linguagem e da necessidade de superação dos modos mais primitivos do positivismo, não pode ser subvertida num álibi para decisões arbitrárias.

Para melhor compreender a segunda função metafórica da Katchanga, quiçá seja recomendável uma sutil alteração na estória. Imaginemos que o cassineiro conhecia e ofertava em seu estabelecimento a Katchanga. Propagandeava-a, inclusive, como o jogo mais difícil do Cassino. Um forasteiro, experiente em todos os tipos de jogos, é atraído pelo desafio, comparece à casa e chama o croupier para uma partida. O desafiante se senta à mesa, primeiro como expectador, convencido de que poderia aprender o jogo ao observá-lo em prática.

Mesmo após acompanhar algumas rodadas, nada parecia fazer sentido: o croupier atirava à mesa sequencias de cartas completamente aleatórias, gritava “Katchanga!” e recolhia para si o dinheiro. De repente, o desafiante compreende que aquele jogo em particular não tinha regras; a única regra fundamental era ter em mãos um punhado de cartas, coloca-las na mesa e anunciar “Katchanga” antes que o oponente.

Para se certificar de que entendera corretamente, o forasteiro consulta outros fregueses, mais experientes no jogo, que confirmaram sua teoria. O desafiante se sente pronto para enfrentar o croupier. Chama-o para uma única partida: ou tudo, ou nada.

Ansioso, na primeira oportunidade, o forasteiro atira as cartas sobre a mesa, grita “Katchanga” e se prepara para receber o prêmio. É, inclusive, aplaudido pelos presentes, que, pela primeira vez, veriam a banca perder. Contudo, antes que o desafiante pudesse tocar num só centavo, o croupier se levanta, olha-o nos olhos, atira sua mão à mesa e afirma “Katchanga real. Não conhece a Katchanga real? É um princípio implícito do jogo. Infelizmente, o Senhor perdeu”.

A essa altura da narrativa, duas assunções igualmente preocupantes despontam: i) a Katchanga real passou de um produto interpretativo sempre possível – aquele que jaz na sobra da linguagem e que não necessariamente é antevisto no enunciado in abstrato –, a um álibi hermenêutico, que serve para possibilitar a tomada de qualquer decisão no jogo; ii) num contexto onde é possível a criação de regras (ou princípios) ad hoc para além daquelas compartilhadas pelos players e reiteradamente aplicadas pelo “intérprete autêntico”, a vontade da banca (que detém o poder político), por mais arbitrária e irascível que seja, sempre prevalece.

Contudo, a essas conclusões o próprio Lenio Streck apontou, em texto disponível no Conjur[4]  desde junho de 2012.  Perderia o sentido reviver a metáfora da Katchanga, se não tivéssemos novas camadas a acrescentar – e temos! –, úteis ao labor jurídico contemporâneo.

Pois bem: parece-nos que a estória da Katchanga real flerta diretamente com aquilo se denomina conceito performático, “espécie linguística” que já foi objeto de nossas pesquisas[5] e que ainda nos causa perplexidade, dada a recorrência com que é utilizada pelo Poder Judiciário brasileiro.

Os enunciados performáticos ou performativos constituem parte fundamental da teoria dos atos de fala, desenvolvida pelo filósofo da linguagem John L. Austin e registrada na obra How to do things with words: The William James lectures delivered at Harvard University in 1955.[6]  O conceito performático melhor se explica quando defronte a seu antônimo, o enunciado constativo[7]: enquanto este se presta à descrição ou constatação de algo, no que está sujeito a um juízo de falsidade ou veracidade, aquele não se destina a descrever, reportar ou constatar coisa alguma, e, por isso mesmo, não responde ao binômio verdadeiro/falso.[8]

O traço distintivo de um conceito performático é a sua finalidade, vez que se destina a um fazer, não a um explicar[9]-[10], e, por isso mesmo, não cabe avaliar se seu conteúdo é ou não mentiroso. Dito de outro modo, os performativos são indiscutíveis, o que é suficiente para concluir que não poderiam constar da fundamentação de qualquer pronunciamento judicial, uma vez que blindam a decisão contra qualquer sorte de crítica e lhe extirpam a sua função democrática, que é a possibilidade de controle por parte dos jurisdicionados.

Fundamentação jurisdicional que gravita em torno de conceito performático é pseudofundamentação, simulacro de fundamentação, fundamentação fraudulenta, ou, em resumo, uma não fundamentação: é motivação na forma, mas não no conteúdo.  Por isso é seguro afirmar que o direito, na sua acepção democrática, rechaça argumentações escoradas em conceitos performáticos.

Nada obstante isso, abundam exemplos de enunciados performativos, reiteradamente utilizados na prática jurídica. Vale notar que muitos não são, na sua gênese, enunciados performativos. Entretanto, o modo como o juiz os emprega os corrompe, esvazia-os de conteúdo, transforma-os num mero álibi argumentativo, que dá a justificativa formal mínima para um agir. É o que acontece com a dignidade da pessoa humana, a proporcionalidade, o sentimento popular, o interesse público, dentre outros. 

Recentemente, a grande mídia nos instigou a revisitar a metáfora da Katchanga, quando divulgadas, pelo The Intercept[11], conversas que reportam indícios de uma relação promíscua entre Ministério Público e Poder Judiciário no curso das operações Lava-Jato. Não é nossa intenção examinar o conteúdo propriamente dito destas conversas. Nossa análise se detém muito antes disso e se centra na (in) possibilidade de aproveitamento da prova ilícita, uma vez que existe suspeita de que os diálogos tenham sido obtidos por um hacker.

O Poder Público, representado na figura do ex-Juiz Sérgio Moro (atual Ministro da Justiça), a respeito do levantamento do sigilo da interceptação telefônica entre o ex-presidente Lula e a então presidenta Dilma, opinou, em rede nacional, que o modo de captação e divulgação do diálogo (cuja  licitude era questionável) perdia a importância:  relevante era o conteúdo do diálogo, que escancarava a tentativa dos partícipes de fraudar à justiça.[12]

Por outro lado, o pacote de medidas contra a corrupção, apresentado ao Legislativo pelo MPF, pretendia excluir a ilicitude da prova, quando, por exemplo, obtida em estrito cumprimento do dever legal, com a finalidade de obstar a prática atual ou iminente de crime ou fazer cessar sua continuidade ou permanência.[13]

O que se nota é que as autoridades públicas, para processar e punir crime de corrupção, têm insinuado a relativização de garantias processuais básicas (i.e. proibição de prova ilícita).

Combate à corrupção é a nova Katchanga real, um performativo capaz de transformar o processo penal num verdadeiro vale-tudo (desde que contra o réu). Observe que, agora, quando se cogita da utilização das provas para a) punir Juiz e Procurador, acusados de corromper a essência de suas funções e desnaturar as regras básicas de qualquer processo acusatório; ou b) inocentar o réu prejudicado, o argumento é subvertido: as conversas foram obtidas ilicitamente, logo, não podem produzir qualquer efeito no processo.

A defesa esbravejou: “Katchanga! Prova ilícita pode ser utilizada, o que importa é o conteúdo”, afinal, era esse o discurso entoado anteriormente. Mas a banca, reforçada por setores da opinião pública e da comunidade jurídica[14], retorquiu: “Katchanga real! A ilicitude da prova só será relativizada para reforçar o combate à corrupção, nunca para enfraquecê-lo”.  No mérito, já se ouve o coro: “Katchanga real! É absolutamente comum o agir estratégico acertado entre acusação e juiz. Acontece todo o tempo”.

É isto. Em Cassino de Katchangas, estamos sempre despidos de qualquer garantia e completamente à mercê do cassineiro: a banca sempre vence, não há previsibilidade, coerência, integridade ou segurança jurídica. Não há razão de ser de um processo (civil ou penal). É o fim do Estado Democrático de Direito.   

 

 

Notas e Referências

[1]Para a versão completa, ver: https://www.conjur.com.br/2012-jun-28/senso-incomum-katchanga-bullying-interpretativo-brasil

[2] STRECK, Lenio. A Katchanga e o bullying interpretativo no Brasil. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2012-jun-28/senso-incomum-katchanga-bullying-interpretativo-brasil. Acesso em: 25.06.2019.

[3] Sobre o tema, ver: ABBOUD, Georges. Processo constitucional brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016; ABBOUD, Georges; CARNIO, Henrique Garbellini ; OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Introdução à teoria e à filosofia do Direito.3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015; STRECK, Lenio. Hermenêutica jurídica e(m) crise. 11ª ed., rev., atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014; STRECK, Lenio. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 5ª ed. rev., modificada e ampl. São Paulo: Saraiva, 2014. 

[4] https://www.conjur.com.br/2012-jun-28/senso-incomum-katchanga-bullying-interpretativo-brasil

[5] SCAVUZZI, Maira Bianca. O deficit democrático das decisões judiciais fundadas no critério da justiça: a justeza como subterfúgio performático para o ativismo. Mestrado em Direito. PUC-SP/2017; ABBOUD, Georges; SCAVUZZI, Maira Bianca. A relativização da coisa julgada material injusta: um estudo à luz da teoria dos enunciados performativos de John L. Austin. In: Revista de Processo, vol. 284/2018, p. 77-113.

[6] AUSTIN, John L. How to do things with words:The William James lectures delivered at Harvard University in 1955. 2ª ed. J.O. Urmson and Marina Sbisà; Oxford: Clarendon Press, 1975

[7] Idem, p.3.

[8] Idem, p.3.

[9] Idem, p.6.

[10] Luis Alberto Warat trata do propósito ou da instância performativa da linguagem, admitida pela Filosofia da Linguagem Ordinária: “A Filosofia da Linguagem Ordinária, apesar de admitir uma ampla gama de propósitos que possam levar um emissor a empregar um termo (persuadir, dominar, interrogar, suplicar, fazer rir, etc.), reduz teoricamente todas estas intenções, conforme os autores, a três ou quarto instâncias ou usos básicos: informativo, emotivo, diretivo e performativo. Não se trata de uma classificação rígida, sendo empregada como um critério de orientação. Constitui-se uma classificação artificial, pois os usos concretos mostram sempre a presença, em graus diversos, de mais de uma instância funcional. A intenção é um dado psicológico e quando não conta com uma teorização adequada da relação entre os signos lingüísticos, os dados do mundo e as categorias psicológicas, o seu valor metodológico torna-se discutível.

Desta forma: a) a instância informativa veiculiza um sentido articulável com os objetos do mundo; b) a instância emotiva indica as conexões valorativas e as emoções que os termos podem transmitir; c) a instância diretiva refere-se às palavras que cumprem a função de provocar conexões de sentido, destinadas a atuar sobre o comportamento future do receptor; d) a instância performativa refere-se às palavras cuja característica principal é a de serem empregadas para fazer algo e não para dizer algo sobre algo. Constituem situações fáticas. Pressupõe a existência de um órgão dotado de autoridade para significar e de um corpo normativo que habilita o emprego desses termos com a função de constituir situações fáticas”. WARAT, Luis Alberto. O direito e sua linguagem. 2ª versão. Porto Alegre: Fabris, 1984, p. 66. Sobre o tema, ver também: FLORES, Teresa Mendes. Agir com palavras: a teoria dos actos de linguagem de John Austin, p. 3.

[12] Entrevista concedida à Pedro Bial, no programa “Conversa com Bial”, exibido pela Rede Globo. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=e2aon3Ub-xE. Acesso em: 25.06.2019.

[13] “Art. 157. São inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação de direitos e garantias constitucionais ou legais. § 2º Exclui-se a ilicitude da prova quando: (...)VI – obtida em legítima defesa própria ou de terceiros ou no estrito cumprimento de dever legal exercidos com a finalidade de obstar a prática atual ou iminente de crime ou fazer cessar sua continuidade ou permanência;”

[14] Ver, neste sentido: https://oglobo.globo.com/brasil/sao-nulas-as-provas-obtidas-com-ilicitude-afirma-ex-ministro-do-stf-sobre-dialogos-de-moro-23743273 .

 

 

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