A Vulnerabilidade da Condenação Penal Embasada em Meros Indícios

30/07/2022

O processo, em linhas gerais,  é o meio legal que o Estado ou um particular busca para fazer valer o que determinada lei prevê, é a forma que se pode utilizar para fazer valer um direito ou o cumprimento de uma obrigação.

Sabe-se que, dentro de um processo além de ser demostrado em argumentos convincentes que a parte tem razão no direito que pretende tutelar, é preciso provar que o direito da parte se enquadra naquele caso concreto, por meio da aplicação lógica da lei e por meios probatórios.

No processo, em geral, são admitidas a produção das provas documentais, periciais, e testemunhais, tidas como relevantes para se chegar à justa e perfeita solução da lide pelo estado-juiz, sendo essa caracterizada por uma pretensão resistida.

Igualmente, o sistema processual penal brasileiro admite amplos meios de provas para se confirmar a veracidade de uma alegação trazida aos autos do processo, alegação essa que pode ser da acusação ou da defesa.

É por intermédio da prova, via de regra, que se determina a existência e a veracidade de um fato, e, com essa demonstração, o juiz formará seu convencimento e decidirá se acolhe ou não o pedido que lhe foi endereçado pelas partes que formam a triangulação processual, ous eja, as partes litigantes no processo judicial.

José Frederico Marques conceitua a prova como sendo o "elemento instrumental para que as partes influam na convicção do juiz e o meio de que este se serve para averiguar sobre os fatos em que as partes fundamentam suas alegações".[1] 

Na mesma vereda, mas  se utilizando-se de outras palavras, Scarpinella Bueno leciona que a prova é “tudo que puder influenciar, de alguma maneira, na formação da convicção do magistrado para decidir de uma forma ou de outra, acolhendo, no todo ou em parte, ou rejeitando o pedido do autor”.[2]

Nessa linha de pensar, Guilherme de Souza Nucci conceitua a prova da seguinte forma:

O termo prova origina-se do latim – probatio –, que significa ensaio, verificação, inspeção, exame, argumento, razão, aprovação ou confirmação. Dele deriva o verbo provar – probare –, significando ensaiar, verificar, examinar, reconhecer por experiência, aprovar, estar satisfeito com algo, persuadir alguém a alguma coisa ou demonstrar.[3] 

Observa-se que a doutrina é uniforme no sentido de que a prova é tudo aquilo que possa influenciar na convicção do julgador da causa, sendo considerado “o meio objetivo pelo qual o espírito humano se apodera da verdade”.[4]

No processo penal brasileiro o princípio adotado sobre a apreciação da prova pelo julgador é o do livre convencimento motivado, que diz respeito à liberdade que o juiz tem quando aprecia a prova e determina o seu valor sobre determinado fato. 

Contudo, não é qualquer tipo de prova que pode ser usada dentro do processo, uma vez que nos termos do artigo 157 do Código de Processo Penal (CPP) são inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais.

Ainda que o legislador tenha concedido ao julgado  formar sua convicção livremente, este não poderá fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, com exceção  as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas, conforme previsão legal contida no artigo 155 do Código de Processo Penal.

Pois bem, em se tratando de provas no processo penal, salienta-se que a previsão legal que disciplina a temática se inicia no artigo no artigo 155 e termina no artigo 239 do Código de Processo Penal (Lei nº. 3.689/1941). 

Apesar da busca e apreensão se encontrarem dentro do Título VII do CPP, que trata das provas, entende-se, salvo posicionamento contrário, que  a busca e apreensão não se tratam de provas, mas sim, de meios de se obter a prova, como sento o instrumento que se destina a levar ao processo um elemento ou informação a ser utilizada pelo julgador da causa. 

No mais, muito embora o CPP preveja diversos meios de provas, tais como as documentais, periciais, e testemunhais, existem entendimentos doutrinários e jurisprudenciais que sustentam ser possível condenar uma pessoa apenas por meios de indícios.

Nesse sentido, Júlio Fabbrini Mirabete doutrinador citado em acórdão do Tribunal de Justiça do Pernambuco que julgou a apelação de um acusado que buscava a revisão de uma sentença condenatória do júri fundada em indícios, sustenta que quando houver mais de um indício concatenado, múltiplos, e cobertos de credibilidade, e quando não há qualquer hipótese favorável ao acusado, existe a possibilidade de uma condenação por indícios.[5]

Mas, antes de se aprofundar na temática,  que neste artigo não será esgotada, veja-se o que dispõe o artigo 239, caput, do Código de Processo Penal sobre o que vem a ser indício:

Art. 239. Considera-se indício a circunstância conhecida e provada, que, tendo relação com o fato, autorize, por indução, concluir-se a existência de outra ou outras circunstâncias. (g.f.)

Como se pode notar, indício é toda circunstância conhecida e provada e apta a conduzir um raciocínio sobre a existência de outra ou outras circunstâncias, utilizando-se as regras de raciocínio lógico.

Como dito antes, a doutrina é clara ao dispor que os indícios podem sustentar e servir de fundamento para uma condenação penal, aliás, defende Luís Fernando Manzano que “não há dúvida de que uma condenação possa se lastrear somente em prova indiciária, evidentemente, contando de esta seja suficiente, apta à persuasão racional do juiz acerca da culpabilidade”.[6]

Nesse mesmo pensamento, Fernando da Costa Tourinho Filho ensina que “tendo o legislador admitido os indícios como meios de prova, não se pode negar possa o juiz, mormente no sistema do livre convencimento, proferir um decreto condenatório apoiando-se na prova indiciária”.[7]

Tanto nas lições do doutrinador Luís Fernando Manzano,  como no entender de Tourinho Filho, apresenta-se a palavra “possa”, a forma conjugada do verbo poder,  como uma faculdade do julgador para proferir uma sentença condenatória baseada em indícios.

Contudo, necessário dizer que apenas meros indícios não seriam suficientes para condenar o acusado, por um ato tido pela legislação penal como criminoso, sem demais provas robustas aptas a comprovar a materialidade e autora da prática delitiva. Não pode ocorrer, no entanto, que o julgador se revista do manto do livre convencimento para proferir um decreto condenatório, porque, por indução conforme prevê o artigo 239 do CPP, considerou ser necessária a condenação do acusado.

No mesmo entendimento, mas em outras palavras, Moacyr Amaral Santos tem ensinado que:

Nem pode o juiz, na apreciação dos fatos controvertidos, guiar-se, para nortear e fazer gerar a sua convicção a respeito deles, apenas pela sua consciência, por suposições, impressões pessoais, ou usar de processos ou medidas que correspondam a atentados a direitos legítimos e merecedores de amparo da própria Justiça.[8]

Em verdade, o entendimento jurisprudencial dos tribunais pátrios é no sentido de que, inexistindo provas seguras do envolvimento do acusado na prática do crime, meros indícios não podem sustentar uma condenação, de modo que a absolvição do acusado é medida que se impõe. Senão veja-se:

APELAÇÃO CRIMINAL – RECEPTAÇÃO – ABSOLVIDO - RECURSO MINISTERIAL - PUGNA PELA CONDENAÇÃO – INADMISSIBILIDADE - AUTORIA NÃO EVIDENCIADA DE FORMA ROBUSTA NOS AUTOS. ÔNUS DA PROVA. INDÍCIOS INSUFICIENTES PARA ENSEJAR UM JUÍZO CONDENATÓRIO. Meros indícios se mostram insuficientes para externar um Juízo condenatório, especialmente em razão de que o ônus da prova compete à acusação, pois em favor do acusado milita a presunção da inocência. Manutenção da absolvição. Recurso improvido. (TJ-SP - APR: 15039673020208260114 SP 1503967-30.2020.8.26.0114, Relator: Paulo Rossi, Data de Julgamento: 15/06/2021, 12ª Câmara de Direito Criminal, Data de Publicação: 15/06/2021)

APELAÇÃO CRIMINAL. Receptação. Sentença absolutória. Ministério Público busca a condenação nos termos da denúncia. Impossibilidade. Conjunto probatório de extrema fragilidade. Impossível a correlação da res apreendida com delito anterior. Meros indícios não são suficientes a sustentar édito condenatório. Sentença mantida. Recurso improvido.[9]

APELAÇÃO CRIMINAL. ROUBO. ABSOLVIÇÃO. NECESSIDADE. MEROS INDÍCIOS DE AUTORIA. ELEMENTOS DE PROVA INSUFICIENTES PARA SUSTENTAR A CONDENAÇÃO. ABSOLVIÇÃO NECESSÁRIA - Não se colhendo elementos de prova suficientes para a condenação, outra solução não há senão a prolação de um decreto absolutório com base no princípio do in dubio pro reo.[10]

Registre-se que, se para configuração conduta criminosa exige-se prova cabal e perfeita de sua autoria e materialidade, e havendo dúvidas em relação à participação do agente na infração penal decide-se em favor do acusado, conforme o princípio constitucional do indubio pro reo

Aliás, o Constituinte Originário de 1998, inclusive, deixou estampado de forma cristalina no artigo 5º, inciso LVII, da CF, que “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.

Outrossim, André Puccinelli Júnior afirma que “a alocação da presunção de inocência no altiplano da topologia jurídica replete a própria reformulação conceitual do processo penal, que transcende a condição de mero instrumento de materialização da pretensão punitiva para assumir o status de garantia indispensável à tutela da liberdade”.

Este autor assinala ainda que referido princípio do indubio pro reolargamente aplicado no campo probatório, atribui ao órgão de acusação o ônus de provar a veracidade dos fatos imputados ao réu, advindo daí a regra a qual o os casos duvidosos devem ser aplicados em favor do réu (in dubio pro reo).[11]

 Assim, entende-se que o julgador, no dever de garantir a preservação da justiça e da paz social, não deve formar a sua convicção apenas por suposições ao decidir, porque além de tudo, o Código de Processo Penal dispõe de tantos meios de provas que se pode utilizar para provar a existência da autoria criminosa, materialidade e culpabilidade do acusado, que meros indícios não poderiam ser considerados suficientes para sustentar a condenação penal.

Destarte, o Estado-Juiz tendo o dever preservar os princípios elencados no ordenamento jurídico e de assegurar os direitos constitucionalmente garantidos, de modo que uma condenação fundada em meros indícios não pode ser admitida dentro de um Estado Democrático de Direito, uma vez que se trata de condenação naturalmente frágil de elementos probatórios suficientes a comprovar, de fato, que o réu é culpado do crime que lhe esteja sendo imputado.

Notas e Referências

AMARAL SANTOS, Moacyr. Prova Judiciária no Cível e Comercial, 4ª ed. vol. 1, 1971, Editora:  Max Limonad

Brasil, Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. Apelação nº 10707190038240001, Des. Rel. Guilherme de Azeredo Passos (JD Convocado), Data de Julgamento: 10/03/2020.

Brasil, Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco. Apelação nº 2852546, Des. Rel. Gustavo Augusto Rodrigues De Lima, 4ª Câmara Crimina, Data de Julgamento: 10/07/2013. 

Brasil, Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Apelação nº 00134097420168260554, Des. Rel. Andrade Sampaio, 9ª Câmara de Direito Criminal, Data de Julgamento: 21/06/2018. 

MALATESTA, Enricco. “A Lógica das Provas em Matéria Criminal”, Ed. Bookseller, 1996, vol. I, preâmbulo. 

MANZANO, Luís Fernando de Moraes. Curso de processo penal. São Paulo: Editora Atlas, 2010, p. 402. 

TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. 20ª Ed. São Paulo: editora Saraiva, 1998, v. 3, p. 348. 

MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual penal. Campinas: Ed. Bookseller, 1997, v. II. p.  253. 

NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal, 8ª ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 388. 

PUCCINELLI JÚNIOR, André. Curso de direito constitucional, 5ª ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2015, p.128-129.

SCARPINELLA BUENO, Cassio. “Curso sistematizado de direito processual civil”. São Paulo: Saraiva, 2010. Vol 2, Tomo I. 3ª ed. p. 261. 

 

[1] MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual penal. Campinas: Ed. Bookseller, 1997, v. II. p.  253.

[2] SCARPINELLA BUENO, Cassio. “Curso sistematizado de direito processual civil”. São Paulo: Saraiva, 2010. Vol. 2, Tomo I. 3ª ed. p. 261.

[3] NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal, 8ª ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 388.

[4] MALATESTA, Enricco. “A Lógica das Provas em Matéria Criminal”, Ed. Bookseller, 1996, vol. I, preâmbulo.

[5] Brasil, Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco. Apelação nº 2852546, Des. Rel. Gustavo Augusto Rodrigues De Lima, 4ª Câmara Crimina, Data de Julgamento: 10/07/2013.

[6] MANZANO, Luís Fernando de Moraes. Curso de processo penal. São Paulo: Editora Atlas, 2010, p. 402.

[7] TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. 20ª Ed. São Paulo: editora Saraiva, 1998, v. 3, p. 348.

[8] AMARAL SANTOS, Moacyr. Prova Judiciária no Cível e Comercial, 4ª ed. vol. 1, 1971, Editora:  Max Limonad.

[9] Brasil, Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Apelação nº 00134097420168260554, Des. Rel. Andrade Sampaio, 9ª Câmara de Direito Criminal, Data de Julgamento: 21/06/2018.

[10] Brasil, Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. Apelação nº 10707190038240001, Des. Rel. Guilherme de Azeredo Passos (JD Convocado), Data de Julgamento: 10/03/2020. 

[11] PUCCINELLI JÚNIOR, André. Curso de direito constitucional, 5ª ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2015, p.128-129.

 

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