A vitimação secundária decorrente da avaliação do comportamento da vítima pelo juíz

17/07/2016

Por Pollyana Maria da Silva e Lidia Isabel Lira - 17/07/2016

A palavra vítima tem origem no latim victima ou victimae, cujo significado é “pessoa ou animal sacrificado ou que se destina a um sacrifício”[1]. Atualmente, vítima é quem sofre um ilícito ou, ainda, qualquer tipo de dano, físico, mental ou econômico.

O surgimento da Vitimologia ocorreu após o extermínio de 6 milhões de judeus em campos de concentração nazistas - ocasião em que emergiu a necessidade de um olhar mais profundo às questões e sofrimentos que permeiam as vítimas. Com o surgimento da Vitimologia, surgiram as tipologias, que foram levantadas pelos teóricos considerados criadores da referida ciência: Mendelsohn e Von Hentig. Para Barros[2], o “estudo da vitimização se dá pela análise do fenômeno responsável pela conversão de um indivíduo, ou pessoa jurídica, ou um grupo de pessoas, ou uma coletividade [...] em vítima”. Uma vez que uma pessoa se torna vítima, tal situação pode ser classificada como: Vitimação Primária, Vitimação Secundária e Vitimação Terciária.

A Vitimização Primária é aquela “provocada pelo cometimento do crime, pela conduta violadora dos direitos da vítima”[3]. Ou seja, ocorre no momento em que a vítima sofre o ato delituoso.

A Vitimação Secundária é “gerada a partir da atuação dos órgãos responsáveis pelo controle social, incluindo todo o aparato policial, que receberá os primeiros reclamos relacionados à vítima, até os sujeitos que participarão do processo penal: juízes, promotores, [...][4]. Para Carvalho[5], "a produção da vitimização secundária está normalmente associada à linguagem empregada, frequentemente instrumentalizada por padrões morais de julgamento que ultrapassam a figura do acusado e atingem a forma de ser e o comportamento da vítima".

Já a Vitimação Terciária provém do núcleo familiar e, em um âmbito mais geral, do próprio núcleo social. “A vitimização terciária é levada a cabo no âmbito dos controles sociais, mediante o contato da vítima com o grupo familiar ou em seu ambiente social, como no trabalho, na escola, nas associações comunitárias, na igreja ou no convívio social”[6].

Com a Vitimologia, o comportamento da vítima foi a última circunstância judicial incluída para a dosimetria da pena no direito penal brasileiro, cujo objetivo é verificar a contribuição da vítima na gênese do delito.[7] Surgiu quando da inserção do novo texto advindo da reforma de 1984, no Código Penal. Assim, tem-se no art. 59 que o juiz, na dosimetria da pena, verificará as circunstâncias judiciais, dentre elas o comportamento da vítima.

A análise do comportamento da vítima é feita pelo Juiz que, muitas vezes, faz um juízo de valor acerca da vítima e de sua vida pregressa, entendendo ser esta análise suficiente para admitir que a vítima contribuiu ou não para que ocorresse o crime. E, nas palavras de Carvalho[8], “se é ilegítimo ao juiz produzir uma valoração moralizadora no julgamento do acusado, muito mais o será em relação ao comportamento da vítima”.

Há, historicamente, uma tendência a transportar à vítima a responsabilidade pela sua vitimização. As questões relativas à responsabilização do ato criminoso levaram ao desenvolvimento do conceito de victim precipitation, que foi primeiramente utilizado por Wolfgang em casos de homicídio e que posteriormente foi utilizado por Amir em um estudo bastante criticado sobre o estupro.[9] Para Wolfgang, victim precipitation ocorria quando a violência era primeiramente iniciada pela vítima. Amir, no entanto, considerou victim precipitation os casos em que os homens acreditaram que as mulheres haviam consentido com o ato sexual, mas depois desistiram. Assim, o comportamento da vítima não era tão importante, uma vez que o foco estava na interpretação que o ofensor fazia dos atos das suas vítimas.

Estudos sobre a culpabilização “têm mostrado que a atribuição de responsabilidade às vítimas inocentes é um processo sócio-psicológico”[10]. Em outras palavras, muitas das vezes, as vítimas são responsabilizadas por se encontrarem na situação em que estão, embora não pudessem evitá-la.

Na jurisprudência abaixo observa-se a diminuição da pena do réu devido ao comportamento da vítima. Neste caso, houve uma análise da vida pregressa da vítima, valorando suas condutas em situações anteriores àquela em que fora vítima do delito, o que ensejou a minoração da pena aplicada.

1.APELAÇÃO CRIMINAL - CRIME CONTRA A DIGNIDADE SEXUAL - ESTUPRO TENTADO (CP, ART. 213 C/C ART. 14, II) - AUTORIA E MATERIALIDADE SOBEJAMENTE EVIDENCIADAS - [...] - COMPORTAMENTO DA VÍTMA QUE INFLUENCIOU O RÉU PARA A PRÁTICA DELITIVA - MINORAÇÃO DEVIDA - CAUSA GERAL DE DIMINUIÇÃO DE PENA - TENTATIVA - REDUÇÃO EM 2/3 (DOIS TERÇOS) - ANÁLISE DA EXTENSÃO DO ITER CRIMINIS PERCORRIDO PELO AGENTE - CONDUTA QUE NÃO SE APROXIMOU DA CONSUMAÇÃO. (TJSC, Apelação Criminal (Réu Preso) n. 2010.078632-1, de Urussanga, rel. Des. Salete Silva Sommariva, j. 03-05-2011). [grifo nosso]

 

Já em outro caso, sintetizado na ementa a seguir, a pena do réu não foi diminuída porque não foram encontradas causas que desabonassem a conduta da vítima.

 

2.PROCESSO PENAL. REVISÃO CRIMINAL (CPP, ART. 621, I, II, III). CRIMES CONTRA A LIBERDADE SEXUAL E CONTRA A PESSOA. ESTUPRO E ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR (CP, ARTS. 213 E 214, C/C ART. 71, NA FORMA DO ART. 69). LESÕES CORPORAIS NO ÂMBITO DOMÉSTICO (CP, ART. 129, § 9º). [...]COMPORTAMENTO SEXUAL DESREGRADO DA VÍTIMA NÃO COMPROVADO À ÉPOCA DO FATO CRIMINOSO. PRETENSÃO DE REEXAME DE PROVA PARA DIMINUIR A PENA. INVIABILIDADE. UNIFICAÇÃO DA CONDUTA. MATÉRIA AFETA AO JUÍZO DA EXECUÇÃO PENAL (LEI 7.210/1984, ART. 66, I, E VERBETE 611 DA SÚMULA DO STF). REVISÃO PARCIALMENTE CONHECIDA E INDEFERIDA.   (...)  (TJSC, Revisão Criminal n. 2013.016363-2, de Araranguá, rel. Des. Carlos Alberto Civinski, j. 29-10-2014). [grifo nosso]

Desta forma, em ambos os casos, tem-se um julgamento moral das vítimas. Para Chaves Junior e Cabral[11]:

(...) o fato de a vítima andar com roupas sensuais, de conduzir o veículo com as janelas abertas em ambiente reconhecidamente violento, de deixar a porta de casa sem trancas de modo algum deve ser utilizados para atenuar a ação delituosa [...], não sendo plausível minimizar a gravidade de determinada ação por conta de tais situações.

Para os autores, pode-se beneficiar o acusado quando há provocação explícita, induzimento ou qualquer forma de instigação por parte da vítima. Embora o comportamento da vítima seja circunstância judicial a ser levada em consideração quando da fixação da pena base, a análise sua vida pregressa ou forma de vestir, especialmente em um crime de natureza tão grave, como o estupro, é uma forma de vitimação secundária. Neste sentido, tem-se que os tribunais brasileiros, via de regra, não tem aplicado tal circunstância.

Tal entendimento vem ao encontro dos anseios sociais exteriorizados em movimentos como "A Marcha das Vadias" e "Eu não mereço ser estuprada", por exemplo, que levantam a questão de que algumas roupas utilizadas pelas mulheres não servem como “justificativa” para um crime de estupro.

Não foi fácil o caminho percorrido pela vítima até ter seus direitos resguardados e muito ainda há que ser feito para que possam ter sobre si um olhar mais humano, que não busque justificar um estupro, por exemplo, na vida pregressa da vítima.


Notas e Referências:

[1] PIEDADE JR., Heitor. Vitimologia: evolução no espaço e no tempo. Rio de Janeiro: Biblioteca Jurídica Freitas Bastos, 1993, p. 86.

[2] BARROS, Flaviane de Magalhães. A participação da vítima no processo penal. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008, p. 69.

[3] KONVALINA-SIMAS, Tânia. Profiling Criminal: Introdução à análise comportamental no contexto investigativo. Lisboa: Rei dos Livros, 2014, p. 190.

[4] BARROS, Flaviane de Magalhães. A participação da vítima no processo penal. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008,  p. 70.

[5] CARVALHO, Salo. Penas e Medidas de Segurança no Direito Penal Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 122.

[6] BARROS, Flaviane de Magalhães. A participação da vítima no processo penal. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008, p. 72.

[7] CARVALHO, Salo. Op. Cit.

[8] Ibid, p. 379.

[9] MORIARTY, Laura J. Controversies in Victimology. Newark: Lexis Nexis, 2 ed. 2008.

[10] CORREIA, Isabel Falcão. Concertos e desconcertos na procura de um mundo concertado: crença no mundo justo, inocência da vítima e vitimização secundária.  Lisboa: Fundação CalousteGulbenkian, 2003, p. 1.

[11] CHAVES JUNIOR, Airto; CABRAL, Rodrigo Leite Ferreira. Circunstâncias judiciais objetivas (circunstâncias e consequências do crime e o comportamento da vítima) In BUSATO, Paulo César (coord.). Teoria da Pena. Curitiba: Juruá, 2014, p. 99.


Pollyana Maria da Silva. Pollyana Maria da Silva é Mestre em Ciências Criminais pela PUC/RS. Professora de Direito Penal no Universitário de Brusque – Unifebe e na Universidade do Valei do Itajaí – UNIVALI. E-mail: pms.br@hotmail.com . .


Lidia Isabel Lira. Lidia Isabel Lira é Graduada em Direito pelo Centro Universitário de Brusque - Licenciada em Letras pelo Centro Universitário de Brusque - Unifebe. Pós-graduada em Língua Inglesa: Metodologia de ensino e tradução pela PUC/PR. E-mail: lidia_kieds@hotmail.com. .


Imagem Ilustrativa do Post: Celine Nadeau // Foto de: stop violence // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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