Coluna semanal: A teoria se aplica na prática
Coordenador: Thiago Minagé
Introdução
Importante destacar nesse início que o objetivo do presente artigo é levantar uma reflexão de cunho prático acerca da necessidade de se arrolar a vítima para que a própria seja inquirida em sede de audiência de instrução e julgamento.
Instrução, no sentido lato, nas lições de Amaral Santos[1]: “é o preparo da causa de elementos adequados a uma decisão de mérito (..) o aparelhamento do processo dos elementos suscetíveis de convencer o juiz sobre as controvérsias de fato e de direito que giram em torno ao thema decidendum, de modo a proferir decisão acolhendo ou rejeitando o pedido.”
Partiremos da análise de seu papel no processo penal, passando pelas duas hipóteses de ação penal, pública e privada, finalizando com nossa reflexão conclusiva.
No mais, optaremos pela terminologia vítima, mesmo sabendo que nosso diploma processual penal prefere utilizar a expressão “ofendido”. Vale lembrar também que nossa legislação autoritária de 1941 só realmente começou a se preocupar com esta importante personagem processual nos idos de 2008, com a minirreforma processual que trouxe, dentre outras mudanças, a reformulação do art. 201 do CPP.
Natureza e Dispositivos Legais
Para Gustavo Badaró[2]: “Em regra, o ofendido não é parte na ação penal condenatória. Somente na ação penal de iniciativa privada o ofendido é parte, sendo o autor da ação penal. De qualquer forma, o ofendido, ainda que não seja parte, inegavelmente tem interesse no resultado do processo. Justamente por isso o ofendido também não pode ser considerado testemunha, que é, por definição, um terceiro desinteressado no processo”.
Tal afirmação do mestre paulista será de suma importância para o desenvolvimento do presente artigo, já que comungamos da premissa de que vítima não é testemunha, em hipótese alguma.
O procurador de justiça aposentado do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, Sérgio Demoro Hamilton, em brilhante artigo científico intitulado “A figura processual do Ofendido”[3], publicado pela Revista da Emerj – Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, assim nos ajuda a aprofundar a temática aqui proposta, nos trazendo outras ponderações sobre o papel da vítima no processo penal brasileiro. Dispõe o autor que:
Assim, ele pode ser parte nos casos de ação penal de iniciativa privada (arts. 30 e 31 do CPP), tomando a designação de querelante, propor a ação civil ex-delicto (art. 63 e seguintes do CPP); intervir como assistente do Ministério Público no decorrer de ação penal pública (art. 268 do CPP); recorrer, tenha ou não ingressado no processo como assistente (apelação subsidiária – art. 598 do CPP) e ingressar com a impropriamente chamada ação privada subsidiária da pública (art. 29 do CPP).
Pois bem. A partir do entendimento adotado pela nossa legislação, e até para não fugirmos do escopo do presente artigo, focaremos na figura da vítima como meio de prova processual, principalmente, em razão da sua contribuição através da oralidade no processo.
O artigo 201 do Código de Processo Penal é o dispositivo destacado para delimitarmos o tema. Em seu parágrafo primeiro, o mandamento legal preconiza que: “sempre que possível, o ofendido será qualificado e perguntado sobre as circunstâncias da infração.” Já no parágrafo seguinte, dando a devida importância a essa personagem processual, o dispositivo permite, ainda, que seja realizada a sua condução coercitiva.
Assim, detalhadamente, este dispositivo legal não exige, em momento algum, que o ofendido seja arrolado para ser ouvido em sede de audiência de instrução e julgamento.
Como nossa intenção é abordar a necessidade de se arrolar ou não este personagem processual, analisemos o conhecido artigo 41 do Código de Processo Penal que traz requisitos mínimos para a deflagração da ação penal. Exige-se, neste sentido: a exposição do fato criminoso, qualificação do acusado, classificação do crime e, quando necessário, rol de testemunhas. Pergunto-lhes: vítima é testemunha? A resposta já foi dada anteriormente. Como interessada na causa, a vítima não pode ser equiparada à testemunha, seguindo, também, as lições do já mencionado professor Badaró. Portanto, igualmente pelo entendimento do artigo 41, percebe-se que a vítima não precisa ser arrolada.
E para que não restem dúvidas sobre nossas argumentações legais, vejamos, na íntegra, o artigo 400 do Diploma Processual Penal, que norteia o devido processo legal da audiência de instrução e julgamento. Apesar de ser uma disposição referente ao procedimento comum ordinário, inegavelmente os demais procedimentos o utilizam como norte.
Pela importância, copiamos:
Na audiência de instrução e julgamento, a ser realizada no prazo máximo de 60 (sessenta) dias, proceder-se-á à tomada de declarações do ofendido, à inquirição das testemunhas arroladas pela acusação e pela defesa, nesta ordem, ressalvado o disposto no art. 222 deste Código, bem como os esclarecimentos dos peritos, às acareações e ao reconhecimento de pessoas e coisas, interrogando-se, em seguida, o acusado.
Veja-se que o dispositivo acima colacionado orienta que sejam ouvidas as testemunhas arroladas, já que as declarações do ofendido, frise-se, interessado no deslinde da causa, serão ouvidas, quando possível, conforme se depreende do artigo 201, §1º do CPP.
Em conclusão ao presente tópico, o próprio Código de Processo Penal diferencia testemunha, de ofendido. Vejamos o artigo 217 do CPP que enfatiza a diferenciação de ambos os personagens ao afirmar que: “Se o juiz verificar que a presença do réu poderá causar humilhação, temor, ou sério constrangimento à testemunha ou ao ofendido..”. Ou seja, tal distinção legal não dá margens a dúvidas. De um lado testemunhas, do outro, ofendido.
Assim, a interpretação da legislação não pode ser isolada, como uma verdadeira colcha de retalhos, como são nossas pontuais reformas. Precisamos sempre analisar institutos de forma harmônica e sistemática. Para a presente reflexão, todos os artigos processuais foram trazidos e, em nenhum deles, exige-se que o titular da ação penal, seja ele o Ministério Público ou o Querelante, arrole a vítima. Passemos a análise das duas ações penais – iniciative pública e privada.
Ação Penal Pública
Na denúncia ministerial, é comum o órgão oficial arrolar a vítima, quando possível, para ser ouvida em audiência de instrução e julgamento. Entende-se até compreensível tal cuidado, já que estamos diante de órgão oficial que atua como titular da ação penal e que, neste caso, não se confunde com a vítima. Todavia, duas ponderações precisam ser feitas.
Em primeiro lugar, não há dispositivo legal algum que exija tal obrigatoriedade e, em segundo lugar, imaginemos que o Ministério Público, pela complexidade da causa, veja a necessidade de ouvir 8 (oito) testemunhas – número esse máximo do procedimento comum ordinário. Evidentemente que a vítima não seria uma das colaboradoras a se inserirem nesse rol limítrofe, permitindo, portanto, todas as 8 (oito) testemunhas, e ainda a vítima, já que está mais do que pacificado o entendimento de que esta e a testemunha têm papeis distintos dentro do processo penal brasileiro.
Por outro lado, eventual opção ministerial em arrolar a vítima para ser ouvida no âmbito do processo, ensejaria obrigatoriedade do querelante em assim o fazer enquanto titular da ação penal privada?
Ação Penal Privada
Em uma queixa-crime, em que a figura do querelante e da vítima se confundem, a necessidade de se auto arrolar beira, no mínimo, à estranheza.
E porque nossos tribunais exigem, em sede de ação penal privada, que a vítima seja arrolada para ser ouvida? Não faz o mínimo de sentido.
Vejamos um singelo exemplo prático. Pensemos em uma queixa-crime que, imputando diversos crimes contra a honra, extrapola a competência do Juizado Especial Criminal. O querelante, representado por seu advogado privado, apresenta a peça exordial perante uma das Varas Criminais e, ao final, arrola as suas respectivas testemunhas. Qual seria o fundamento legal para se exigir que o ofendido, titular da ação penal, se auto arrole para ser ouvido em audiência? Pois esse é um exemplo ocorrido em um caso concreto, motivador da escrita do presente artigo.
Repito: vítima não é testemunha. O Código de Processo Penal não possui qualquer disposição no sentido de que o próprio ofendido precise ser arrolado. Se o Ministério Público, titular da ação penal pública, arrola a vítima para ser ouvida em audiência, em postura de prudência, isso não pode ser exigido em sede de ação penal privada, em que o titular da queixa-crime é o próprio ofendido, representado por seu advogado.
Assim é o pensamento do já citado professor e ex-membro do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, Sérgio Demoro Hamilton:
No entanto, situa-se no art. 201 do CPP todo o roteiro que possa servir de base para o estudo da figura processual do ofendido. O dispositivo em tela determina que “sempre que possível” o ofendido será ouvido. A primeira conclusão a que se pode chegar é a de que a parte não está obrigada a arrolar o ofendido para que ele preste declarações. É dever jurídico do juiz colher a sua palavra.
Inimaginável pensar, neste sentido, no âmbito de processo que verse sobre imputação de crime contra a honra, situação em que a vítima não possa externar oralmente (e não apenas por escrito) sua mágoa, angústia, e seu sentimento acerca das ofensas perpetradas pelo querelado. Afirmar que sua versão já está carreada em exordial (como ocorreu no mencionado caso concreto, motivador da escrita do presente artigo) é de uma insensibilidade que merece ser repudiada pelo processo penal, que carece cada vez mais de humanidade.
Em sentido contrário, e por amor ao debate, citamos o entendimento do professor Norberto Avena[4] ao comentar o artigo 201 §1º CPP, entendimento este que vai de encontro ao que é defendido no presente artigo, demonstrando, assim, que ainda há controvérsia acerca do tema. Defende o membro do parquet gaúcho: “Em que pese esta redação, não há, para o juiz, o dever jurídico de proceder, no curso do processo criminal, à oitiva do ofendido caso não seja arrolado por qualquer das partes. Trata-se de ato discricionário do juiz, segundo seu prudente arbítrio.”
Com todo o respeito ao professor, seus ensinamentos dão a entender sobre a necessidade de se arrolar o ofendido. Indaga-se: Qual seria o fundamento legal para este ponto de vista?
Conclusões
Conclui-se, portanto, que a desnecessidade de arrolar a vítima em uma exordial merece prevalecer em ambas as modalidades de ação penal. A prudência ministerial em arrolar a vítima para ser ouvida é até compreensível, por se tratar de distinções óbvias entre titular da ação penal e terceiro interessado na demanda. Por outro lado, exigir que tal escolha seja reprisada na ação penal privada, em que as figuras de querelante e vítima se confundem, é, no mínimo, incompreensível.
Primeiro porque não há, como exposto, exigência legal para tal, e segundo, porque a figura da vítima (ofendido) não se confunde com a da testemunha, estas sim, devendo ser arroladas.
A busca pela verdade processual deve orientar o processo penal brasileiro, e ouvir a vítima, quando possível, é um dos caminhos para tanto, mesmo que esta não esteja formalmente (e desnecessariamente) arrolada.
Notas e referências:
BADARÓ, Gustavo. Processo Penal. 8ª edição. Editora Revista dos Tribunais. 2020.
AVENA, Norberto. Processo Penal Esquematizado. Editora Gen Método. 2015.
AMARAL SANTOS, Moacyr. Primeiras linhas de direito processual civil, vol.
II, 10ª ed., São Paulo: Saraiva, 1985.
DEMORO HAMILTON, Sérigo. A figura processual do ofendido. Revista 46_69 – Emerj chrome extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://www.emerj.tjrj.jus.br/revistaemerj_online/edicoes/revista46/Revista46_69.pdf
[1] AMARAL SANTOS, Moacyr. Primeiras linhas de direito processual civil, vol.
II, 10ª ed., São Paulo: Saraiva, 1985.
[2] BADARÓ, Gustavo. Processo Penal. 8ª edição. Editora Revista dos Tribunais. 2020.
[3] chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://www.emerj.tjrj.jus.br/revistaemerj_online/edicoes/revista46/Revista46_69.pdf
[4] AVENA, Norberto. Processo Penal Esquematizado. Editora Gen Método. 2015.
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