A VISITA DO “AMIGO AMERICANO” E A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

26/09/2020

Coluna Por Supuesto / Coordenador Pietro de Jesús Lora Alarcón

Assiste  razão ao Presidente da Câmara dos Deputados quando na sua nota do 18 de setembro afirma - citando a Constituição Federal, especialmente os princípios de independência, autodeterminação dos povos, não intervenção e defesa da paz, que notadamente marcam as relações internacionais no artigo 4º -, que “ (...) a visita do Secretário de Estado dos Estados Unidos às Instalações da Operação Acolhida, em Roraima, junto á fronteira com a Venezuela, no momento em que faltam 46 dias para a eleição presidencial naquele país não condiz com a boa pratica diplomática internacional e afronta as tradições de nossas políticas externa e de defesa”. 

Como também assiste razão a todos os ex-chanceleres da República, que em pronunciamento ao país afirmam, com total responsabilidade, condenar “(...) a utilização espúria do solo nacional por um pais estrangeiro como plataforma de provocação e hostilidade a uma nação vizinha” e exigem que o Congresso e o STF “exerçam com plenitude as atribuições constitucionais de velar para que a política internacional do Brasil obedeça rigorosamente, no espirito e na letra, os princípios estatuídos no Artigo 4º da Constituição Federal”.

A visita, num país confinado pelo cenário de uma pandemia desde o começo mal gerenciada pelo Executivo da União, com impeachment em curso no Rio de Janeiro, no meio de uma campanha eleitoral para prefeitos – que, logicamente, conta no cumulado político para daqui a dois anos - debatendo sobre o retorno das atividades escolares presenciais, com notícias constantes sobre a calamidade ambiental, militarizado nas esferas civis e que discute uma desastrada proposta de reforma administrativa, parece ser mais um detalhe.

Porém, o certo é que, observada no contexto da América Latina, é um acontecimento singular, especialmente se levamos em conta o que talvez por aqui não se diz com a clareza que merece ou que passa inadvertido.  O fato é que, dentre outras coisas, já se realizam exercícios militares desde países limítrofes a Venezuela pelos Estados Unidos[1]; que há uma retomada do Tratado de Rio de Janeiro de Assistência Recíproca – TIAR – de 1947; que existem acordos entre o Brasil e a Organização Militar OTAN,[2] e que há uma vigilância e monitoramento não só ao país do Orinoco, senão a outros que apresentam situações delicadas, de redefinição do seu regime político, como o caso da vizinha Bolívia. 

Convém lembrar, pelo prisma constitucional, que quando se trata de relações internacionais e de política externa, nos termos da Carta, encabeçadas pelo Presidente, estas não podem ser realizadas de qualquer maneira, senão que estão subordinadas a uma interpretação jurídica, que nasce na sua dimensão textual com a letra da Constituição de 1988 e na sua dimensão normativa com a necessária interpretação dos fatos, tendo como norte o conceito constitucionalizado de interesse nacional.

Por isso, a política externa não é uma roda solta dentro da engrenagem do Estado, senão uma política pública, exercida por funcionários públicos. Isto é: a diplomacia é um serviço público que deve seguir orientações constitucionais. Nem sequer antes de 1988, e aqui haveria muito a ser dito, se sustentaria a afirmação de que o Brasil foi um país à deriva em termos de política externa. O Itamaraty tem uma história que passa por momentos importantes como a Reforma na gestão de Afonso Arinos de Mello Franco, consubstanciada na Lei nº 3.917, de 14 de julho de 1961, e construiu ao longo dos anos um selo de preparo diplomático e compromisso com a solução pacífica das controvérsias.

Conceitualmente, o interesse nacional é portador de uma identidade de propósitos que foi levada em conta no momento de desenhar a Carta de 1988. Esse interesse brasileiro, como muito bem ilustram três reconhecidos autores, pode ser definido como o conjunto de interesses compartilhados pela sociedade em suas interações com o mundo. Não pode ser reduzido a objetivos estabelecidos por um pequeno grupo de tomadores de decisão ou equiparado a consensos conjunturais de opinião pública. Deve abarcar valores fundamentais da sociedade, que traduzam a herança histórica e os condicionamentos políticos e geoeconômicos. Os valores essenciais da sociedade brasileira traduzem um juízo fundacional do que somos e daquilo a que aspiramos como coletividade. O exame da história nacional revela cinco valores permanentes: o desenvolvimento, a autonomia, a estabilidade do seu entorno, o respeito à diversidade cultural e a democracia”. [3]

Parece-nos que esse deve ser o ponto de partida para ir determinando o conteúdo jurídico, as valorações e a teleologia constitucional quando se realiza a interpretação dos princípios do artigo 4º, bem como dos artigos 3º, II; 5º, parágrafos II e III; 20, V, VI, VII, VIII, e parágrafos 1º e 2º; 170; 172; 174, parágrafo 1º, 225, dentre outros que constam na Carta de 1988.  

Vistas assim as coisas, as relações internacionais não são largadas ao acaso. Atravessaram tanto na sua concepção teórica como na sua implementação um processo de transformação. Basta dizer que notadamente, no final do século passado, vários cursos de Relações Internacionais foram fundados no país, levando em conta o incremento do conhecimento, a descoberta de afinidades, as possibilidades de cooperação entre Estados, sociedades e culturas. Por sua vez, a atividade de Internacionalista passou a ser valorizada a partir da criação de perfis profissionais diversos, conforme as necessidades impostas por uma demanda crescente de atenção aos temas internacionais.

Nesse contexto e juridicamente constitucionalizadas, a relação entre o Direito e as RI se tornou cada vez mais evidente, conjugando-se interdisciplinarmente na análise dos direitos humanos, da efetividade das convenções internacionais em áreas tão sensíveis como na proteção das minorias e grupos vulneráveis, e em particular no contexto nacional, ligados aos dramas ocasionados pela migração forçada e o refúgio, dentre outros assuntos econômicos e culturais.  

Dentro da informação segmentada, classificada e escolhida a dedo que nós é transmitida sobre o que acontece no exterior, quando cotejada com o Brasil de nossos dias, a impressão que fica é a de que o atual Ministério se dirige a quebrar as ações de um país que caminhava, até  recentemente, disposto a abandonar seu papel de “grande Estado periférico”, a partir de uma valorização dos vizinhos, balizado pelo mandato constitucional inserido no parágrafo único do artigo 4º de buscar “a integração económica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando a formação de uma comunidade latino-americana de nações”. Pior ainda, como alerta o editorial de The Economist deste 19 de setembro, paira a sensação de um país muito próximo ao neomonroeismo do Trump, em alusão à agressiva e intervencionista doutrina surgida no Congresso Americano em 1823.  [4]

Não há que esquecer, como nos lembra Pinheiro Guimarães, que fazer relações internacionais a partir do Brasil implica compreender que se trata de uma sociedade de origens plurais, miscigenada, na qual a origem étnica ou religiosa por si só “não a classifica” e que se caracteriza pela presença de um idioma único e pela ausência de conflitos territoriais, tanto internos quanto externos. Ensina o Mestre que não há espaços para descuidos ou improvisos: o Brasil atua numa dinâmica internacional na qual a imparcialidade é inexistente e as potencias se organizam em estruturas hegemônicas de poder político e económico, resultado de um processo histórico que tem como eixos complexos mecanismos de dominação iniciados e alimentados por ciclos de expansão económica e acumulação capitalista, bem como de relações entre Estado e capital privado, entre uso de tecnologia e das forças armadas, de imposições ideológicas e sanções comerciais. [5] 

E essa noção de país com uma dimensão exuberante, recursos e potencialidades humanas e tecnológicas, sempre orientou a política externa, ainda que existissem diferenças normais governo a governo. Assim, por exemplo, FHC expressava que “Brasil não pode ser mais pensado fora do ambiente da América do Sul e sua relação não pode ser exclusivamente hemisférica ou com os Estados Unidos, senão também em perspectiva de relações com Europa, Ásia e África”. [6] Mas, também Celso Amorim, sua equipe diplomática e sua diplomacia ativa e altiva, partindo da independência brasileira, venceram, em clara demonstração de habilidade na interpretação e condução da política externa, a proposta de colocar ao Brasil subordinado a uma área de livre comércio, sob tutela dos Estados Unidos, a começos deste século.      

Logo de escutar o discurso presidencial na ONU, parafraseando ao apóstolo da América no seu escrito mais célebre de 1891,[7] não resta senão pensar que acreditam certos senhores vaidosos que o mundo inteiro é sua aldeia e que, conquanto continuem  a serem presidentes, há de se dar por descontada a (des) ordem universal. Para os brasileiros e para a sociedade internacional, a mensagem enviada pelos que hoje conduzem as RI parece ser que ainda percebendo os gigantes que levam sete léguas nas botas e, desde logo, a briga dos cometas do céu que engolem mundos, haveria o país de se atrelar a essa infame e unilateral opção dócil e de acatamento a interesses que não são propriamente os nacionais. Isso não é somente, como bem diz o Presidente da Câmara, uma afronta as tradições de autonomia e altivez, senão que se afigura, como se desprende também da nota dos ex-chanceleres, por supuesto, à margem da Constituição.   

 

Notas e Referências

[1] https://www.elespectador.com/noticias/el-mundo/colombia-y-ee-uu-realizaran-un-ejercicio-de-entrenamiento-militar-en-el-caribe/

[2] https://www.em.com.br/app/noticia/internacional/2020/07/13/interna_internacional,1166289/democrata-quer-reduzir-status-de-aliado-extra-otan-do-brasil.shtml

[3] D. Magnoli, P. Yang, e L. Panelli César.Em busca do Interesse nacional. São Paulo: Folha da Manhã. 3 de abril de 2000.

[4] https://www.economist.com/the-americas/2020/09/17/the-return-of-the-monroe-doctrine

[5] Samuel Pinheiro Guimarães. Quinhentos Anos de Periferia. 2ª ed. Editora da UFRGS. Contraponto. 2000. Pp. 17-29.

[6] Fernando Henrique Cardozo. La Sociedad cerco al Estado In Gobernabilidad: Un reportaje de América Latina. Aschard& Florez. México: FCE. Pp. 80-90.

[7] José Martí.  Nuestra América. http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/osal/osal27/14Marti.pdf

 

Imagem Ilustrativa do Post: Statue of Justice - The Old Bailey // Foto de: Ronnie Macdonald // Sem alterações

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