A virologia política que atinge trabalhadores invisíveis: fronteiras entre as vidas que importam e as vidas que repousam sobre o trabalho mal pago

23/04/2021

Coluna O Direito e a Sociedade de Consumo / Coordenador Marcos Catalan

Conforme uma das apurações mais importantes feitas no início do mês de abril, o Estúdio de Inteligência de Dados Lagom Data confirmou que 60% das mortes registradas pelo coronavírus e suas novas variantes, estão relacionadas a trabalhadores e trabalhadoras que sustentam o segundo setor econômico do país. A pesquisa tratou de mapear o curso de exposição diária enfrentado por muitos, que cumprem jornadas diversificadas no varejo, na condução de veículos públicos e privados, desempenhando serviços domésticos, nos setores da educação, limpeza, terceirizados e outros. Entre os vigilantes - que também são profissionais terceirizados - esse percentual representou um aumento de 59% no número de mais mortes. Conforme os últimos dados disponibilizados pelo Conselho Nacional de Secretários de Saúde - (Conass)há 275.500 mortes avaliadas como causas naturais a mais que ultrapassaram a média de 2020. O impacto representa um número de óbitos 22% maior ao ano anterior, e considerou outras complicações/ comorbidades decorrentes de sua existência do coronavírus, como a falta de leitos hospitalares disponíveis em casos de urgência.

Embora esses dados tratem de explicar uma perspectiva econômica nada surpreendente, eles entregam a certeza de que há uma previsibilidade determinista sobre o contágio, que é posto em suspensão. Enquanto o confinamento se mostra uma política de classe, o contágio é indiferente a carga (física e mental) que recai dolorosamente sobre os trabalhos considerados invisíveis. No dia a dia das grandes cidades, não cabe a estes trabalhadores e trabalhadoras o direito de escolha sobre ir ou não trabalhar fora. Já não há garantias a esperar por eles no final do mês. Além disso, problemas trabalhistas costumam sofrer de famílias com grandes necessidades. Como contragolpe da pandemia, tivemos que aprender a lidar com nossas limitações epidemiológicas enquanto sociedade, antes de desempenharmos nossas limitações epistêmicas em compreender o que estamos vivenciando: a força destrutiva de uma pandemia e o aumento das antigas mazelas infra estruturais.

Ao que tudo indica, a evolução da variante do coronavírus aparenta frustrar as expectativas neoliberais sobre o futuro do mercado de trabalho. Já para o trabalhador, a necessidade de se colaborar como empreendedor de ocasião se adapta de maneira compulsória, ao priorizar os sentidos da sua própria sobrevivência. Durante as crises, os trabalhadores passam a ser mercadoria amplamente explorável, à medida que é preferível existir, entre a subordinação do mercado e a ingerência do Estado, do que deixar de existir. Além do abandono no controle das vacinações, a desinformação sobre a biossegurança (municiada pelas propagandas das Fake News), e a dificuldade de impor o isolamento social às atividades da classe setorial, há o incontornável agravante da precarização das infraestruturas públicas.

A falta de iniciativa política, de custeio e de conservação do SUS, durante anos, sintetizou um histórico de perdas causadas pela interferência das políticas neoliberais. É importante lembrar que, mesmo a vacina permanecendo como uma forte estratégia prioritária para assegurar o controle do vírus, sozinha, ela não irá fazer desaparecer o contexto socio-disfuncional que a antecedeu [e o que ainda está por vir], no caso de surgirem próximas variantes. Existe um claro paradoxo entre o avanço das respostas técnicas que temos e os avanços científicos conquistados, em relação à guerra patogênica travada contra espécies de vírus desconhecidas. Por outro lado, há uma grande limitação em distinguir matrizes agro econômicas prejudiciais (à saúde e a fatores socioambientais), e que produzem o vírus, a crise, [e os lobbys políticos]. O agronegócio é a incubadora política da pandemia. Não podemos aceitar os frutos da aliança entre o neoliberalismo desenvolvimentista com o agronegócio, nem enquanto criatura, nem enquanto criadores de novas quimeras sociais, baseadas em indecentes propostas de extrativismo.

Parte do modelo neoliberal funciona a partir da produção de novas formas de vida operária, e isso influencia na forma como a mão de obra trabalhista vêm sendo, rapidamente pauperizada e bem empregada, por outros conceitos contemporâneos neoliberais. O excesso de responsabilidades ligadas à cultura de acumulação capitalista, implica em reconhecer novos modelos e subjetivação política, atuando nas relações entre o capital-trabalho. Entende-se, por isso, como um projeto político-econômico que autoriza as economias a privatizarem o acesso aos serviços do Estado pelo desmantelamento das garantias e direitos aos trabalhadores. O aparato tecnológico neoliberal, por exemplo, é percebido aqui como aquele que cria e é criado pela demanda da desigualdade e da exclusão. Juntos, esses processos movidos por necessidade de acumulação e pela demanda barata de trabalhadores, passaram a se adaptar muito bem ao interesse das novas exigências de mercado e de consumo. Para uma sociedade do desempenho (HAN, 2017) este capital de “investimento neoliberal” se deposita na captura de “diferenças” e “facilidades”, a fim de torná-las um nicho de mercado vantajoso para aquecer as economias durante a crise. Do outro lado, há trabalhadores e trabalhadoras desalentados que procuram preencher essas lacunas pouco vantajosas, e ainda sim, tão disputadíssimas. O trabalho informal, o tele trabalho, o trabalho em escalas alternadas, o eventual e tantos outros formatos diferentes, foram sendo manobrados por obrigação às novas rotinas de isolamento, com exceção de um setor: o trabalho doméstico. 

O trabalho doméstico e o eventual permanecem sendo insubstituíveis por inúmeras razões, e não apenas àquelas ligadas à uma ordem funcional de dependência econômica das elites. O trabalho doméstico, os chamados “bicos” e o terceirizado, são ocupados na maioria das vezes por mulheres pretas. Tradicionalmente, são elas quem mais assumem a fatigável tarefa de limpar o mundo. Desde o início da pandemia, elas têm representado a população mais vulnerável à contaminação, avaliando condições de pobreza, de falta de acesso à saúde e a recursos médicos, e pelo fato de a precarização da vida ser maior, quando comparado a outros grupos.  

A narrativa da desigualdade, historicamente, é a radiografia oficial do ao trabalho doméstico e dos serviços eventuais, no Brasil. O distanciamento imposto pela pandemia, do dia para a noite, só tratou de aprofundar ainda mais as diferenças entre o dever responsivo do cuidado e o trabalho doméstico assalariado de cuidar: ambos, na maioria das vezes, realizados por mulheres de classe sociais opostas. Isto é, as atividades de reprodução social tais como: limpar, cozinhar, proteger, educar, criar, planejar, evitar falhas, garantir saúde e zelar pelo bem estar de todos, são partes de uma rotina inescapável de inúmeras mulheres nessa pandemia.

A diferença é a de que, em épocas de crise, o trabalho doméstico passa a ser ainda mais colonizado pela política de desempenho (HAN, 2017). Passa a ser vendido por trabalhadoras pobres a outras mulheres como um bem de consumo descartável aos mercados capitalistas neoliberais. Entre outras formas menos evidentes, o valor do trabalho das mulheres também está subalternizado aos domínios do interesse econômico, tal como um produto está para preencher um fim. As trabalhadoras domésticas, as diaristas e babás, são os exemplos mais evidentes da falta de garantias econômicas a essas categorias profissionais que promovem o cuidado. No Brasil, existem mais de 6 milhões de trabalhadores domésticos. Destes trabalhadores, 92% são mulheres pretas, em sua maioria2.

Defender uma “igualdade” superficial de gênero, excluindo raça e classe como diferenciais, não torna todas as mulheres iguais perante o mesmo tratamento jurídico ou pelas leis do mercado. A venda da força de trabalho não acontece de forma equivalente entre mulheres brancas e não-brancas porque a subjetividade do trabalho feminizado e o alcance das suas trocas sociais são limitadas. A cultura do cuidado, passa a produzir relações de “investimento” com a cultura de acumulação capitalista, no cenário neoliberal. Isto é, para progredir na carreira, mulheres brancas colonizam a força de trabalho de outras mulheres periféricas, pretas e racializadas, buscando ascender profissionalmente.

A concorrência e o desempenho de múltiplas funções como ideal neoliberal, é também masculinista, e por isso separa relações de independência e alteridade entre mulheres, colocando as suas necessidades como desejos de libertação verticalmente opostos. A prova disso, é o fato de que mulheres brancas tendem a reproduzir mais facilmente posições hierárquicas e sexistas, tanto quanto se beneficiam, e são vítimas destes processos. Dessa maneira, a meritocracia se sobrepõe à precariedade como categoria que invisibiliza realidades de gênero e raça como diferenciais, de quem promove o cuidado como seu único alicerce profissional.

Olhares demorados sobre a precariedade das trajetórias distintas de ser-mulher, podem sim nos sinalizar desconfianças importantes a respeito do véu hegemônico que simula as nossas realidades. E que, portanto, inviabiliza a construção de fortes alianças de transformação social entre mulheres. Do contrário, mulheres negras permanecerão sofrendo mais com a desvalorização e a discriminação racial associadas, independentemente, dos espaços que conseguirem avançar sozinhas. Quero dizer com isso que, a representatividade isolada confirma o racismo, e não alerta para o fato de que mulheres pretas permanecem recebendo, em sua maioria, menor prestígio e remunerações mais baixas. Não há dúvidas de que a invisibilidade é parte de um projeto de ocultamento que conduz à aniquilação social. De alguma maneira, experimentamos a força disso em relação ao número de trabalhadoras e trabalhadores mortos, adoecidos e desalentados, que são ocultados, diariamente dos dados oficiais do governo.

Como a cultura da negligência política acabou incluindo o trabalho doméstico pela exceção..

A divisão sexual do trabalho também se põe a fragilizar as demandas econômicas de gênero por equidade, em relação às conquistas alcançadas e as que ainda estão por vir. O trabalho doméstico invisível, deve permanecer assim para o restante da sociedade funcionar. Deve organizar papéis e concentrar atividades maiores às mulheres como principal tipo de identificação com o cuidado, com a reprodução deste às suas famílias e a outras, de forma assalariada. De formas complexas, isso influencia na forma como crianças pretas aprendem a se portar e a se perceberem através da imagem das suas próprias mães. São vistas no desempenho de funções como empregadas domésticas, enquanto um ser generificado num corpo racializado. Isso as fazem refletir acerca das possibilidades e nos espaços sociais que esses filhos e filhas poderão alcançar no futuro. 

Nesse momento de epidemia, muitas profissionais de saúde, diaristas, cuidadoras, domésticas terceirizadas, estão sendo coagidas a permanecerem em suas atividades de trabalho habituais, mesmo após ter contraído o Covide-19. Muitas não recebem cuidados e equipamentos especiais que garantam a sua proteção. De uma hora para a outra, o salário para de chegar e as atividades são suspensas sem que haja a compensação devida pelos patrões. Este fato ocorre justamente quando o país enfrenta o momento mais severo da pandemia. Não há direito ao isolamento para elas! Segundo os dados informados pelos conglomerados de mídia, o Brasil já soma a marca de 380 mil mortes e 14.167.973 de casos confirmados.

O não enquadramento social produzido pelo racismo é intencional, e requer explicações atrasadas sobre o fato de estar tão bem preservado no cotidiano da coisa pública e nas iniciativas privadas. O racismo e a discriminação está presente nos serviços gerais terceirizados e nas escalas de trabalho doméstico. O não-enquadramento surge como uma forma de obstar espaços sociais para as mulheres pretas, é também um projeto político que dá vazão à ‘cultura da negligência’ (TIBURI, 2014). Essa cultura é arquitetada pelo abandono e pela corrupção do Estado, personificados na gestão do presidente Jair Bolsonaro.

A partir do que se tem demonstrado, a ‘cultura da negligência’ se consolida no Brasil da seguinte forma: torna-se ainda mais mortífera quando passa a produzir a sua própria razão soberana de agir na necropolítica (MBEMBE, 2003). A cultura da negligência também é responsável por produzir um desligamento radical da alteridade, das moralidades e das demandas relacionadas à ética do cuidado e da não-reprodução das injustiças como devir político e social. Em primeira mão, a política deve ir ao encontro das calamidades mais imperativas antes de localizar a identidade social dos indivíduos.

 

Notas e Referências

[1] Estudo do Ipea traça um perfil do trabalho doméstico no Brasil. / Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. - Brasília: Rio de Janeiro: Ipea. 1990<https://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=35255&catid=10&Itemid=9>

[2] HAN, Byung-Chul. A agonia do Eros. Petrópolis: Vozes, 2017.

[3] VERGEIS, Françoise. Um feminismo decolonial. São Paulo: Ubu, 2020.

[4] MBEMBE, Achillle. Necropolítica. N-1 edições, 2018.

[5] TIBURI, Márcia. Filosofia prática, ética vida cotidiana e vida virtual. São Paulo: Record, 2014.

 

 

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura