A VIOLÊNCIA DE GÊNERO CONTRA AS MULHERES EM ÉPOCAS DE ISOLAMENTO SOCIAL FORÇADO PELO (COVID-19)

15/05/2020

Coluna O Direito e a Sociedade de Consumo / Coordenador Marcos Catalan

Há alguns meses no Brasil, nos posicionamos frontalmente contra uma ameaça que, além de interromper o direito à vida de milhares de cidadãos, nos coloca frente a uma delicada tensão de gênero sobre o suporte de garantias e de direitos assistenciais oferecidos para as vítimas de violência doméstica. A apuração do aumento dos casos foi feita pela Organização Mundial da Saúde (OMS)[1] e detalhou índices alarmantes sobre os aumentos dos casos de violência física, sexual, reprodutiva e psicológica no mundo, diretamente relacionadas ao período da quarentena. Na França, os índices de violência aumentaram em 30%, quando o país decretou a quarentena. Apenas em Paris, essa contagem foi ampliada para 36%. Na China, o número de denúncias triplicou. Em Singapura, aumentaram em 30% em março.

A Argentina registrou um aumento em 25% das denúncias monitoradas por telefone, desde 20 de março, quando as primeiras medidas de isolamento começaram a vigorar. Países como Canadá, França, Alemanha, Espanha, Reino Unido e Estados Unidos, já comunicam preocupações em relatar uma emergente demanda por casas de abrigo e atendimentos especiais às vítimas.

No Brasil, a cidade de São Paulo chegou a decretar no mês de março 2.500 medidas protetivas em caráter de urgência. Em comparação, ao mês anterior, foram expedidas 1.934[2]. Embora esses índices sejam alarmantes, podem estar encobrindo um número ainda maior de casos não registrados. Isso pode explicar por que muitas mulheres preferem não denunciar ou são desincentivadas a procurar ajuda médica temendo exposição ao contágio, ou percebendo a superlotação dos atendimentos no SUS e dos hospitais privados. Outras, temem não ter a quem recorrer para escapar da violência durante o período da quarentena. Seja por dependência financeira do agressor, seja por medo ou para não agravar conflitos pela guarda dos filhos. Todos esses motivos que não deixam de fazer sentido. Nesses casos, uma rede de apoio, familiar ou por parte do Estado ou de ONGs, são recursos decisivos para romper com o ciclo de violência e abusos ou evitar que a morte dessas mulheres aconteça.

Quando o ambiente doméstico passa a ser ressignificado como um lugar hostil e traumático para muitas mulheres, crianças e adolescentes - que não conseguem mais se sentirem seguras em casa - é que a luta feminista deve se confirmar. O sistema de proteção do Estado e a sua garantia de direitos são valores fundamentais, e devem ser reforçados enquanto pauta política em épocas de crise. Para que essas violações parem de acontecer de forma indeterminada, é preciso que a condição de classe e de raça não deixe de ser percebida sob formas e soluções diferentes para vítimas. Nesse sentido, o fator econômico, a precariedade dos postos de trabalho e o desemprego impactam muito nessas relações.   

Diante dessa nova realidade imprevisível, o mundo inteiro está suscetível aos impactos de um grande inimigo invisível: o encadeamento de circunstâncias perigosas que levam a um contágio universal, estruturas de violências de gênero já conhecidas, e a forte imposição de uma ordem econômica neoliberal. Com isso, quero dizer que, os projetos de expansão logística do mercado são hegemônicos, e, há alguns meses, encontrou na pandemia do coronavírus o momento ideal para precipitar novos horizontes, ainda mais favoráveis à mercantilização da vida e a destituição de sentido desta em razão do lucro. Afetam também as formas de exploração do trabalho, os meios de produção, a gestão da saúde e da segurança pública, a ação governamental. Além de tudo, revelam novas dinâmicas sociais sobre a circulação entre espaços públicos e privados, em períodos que pedem pelo isolamento social.

Dessa maneira, a pandemia deixa seus vestígios na política e nas estruturas sociais observadas, revelando a sua amálgama como privilégio de gênero, de raça e de classe. Parte expressiva da população luta para sobreviver com suas famílias na informalidade, sem meios ou recursos adequados para se proteger. Conforme dados estatísticos do IBGE, somam-se a crise 12, 9 milhões de brasileiros desempregados. Muitos, estão perdendo os seus antigos empregos ou se colocando em constante risco de contaminação para mantê-los[3]. É o caso das profissionais de saúde em todo o país.

Em períodos emergenciais como este, o colapso do SUS é mais sentido em relação à população de mulheres, que enfrentam desafios na área da saúde pública, se expondo cada vez mais ao vírus pela falta de mecanismos de proteção individuais (EPIs). Elas são maioria nos centros de atendimento e somam 85% do quadro de auxiliares e técnicos de enfermagem no Brasil[4]. O problema se intensifica à medida que em muitos lares, o restante da família dessas profissionais também se coloca como frequente motivo de preocupação. Sentimentos de ansiedade entre as profissionais que se dividem para cumprir com o seu dever de cuidado técnico-profissional e o cuidado responsivo como os filhos, idosos, deficientes e demais familiares.

De maneira geral, o trabalho de “cuidar” e administrar é tarefa amplamente abraçada pelas mulheres. Não nos esqueçamos que a primeira vítima feita pelo Covid em nosso país foi o de uma trabalhadora doméstica. Trabalhos como esses, de quem promove o cuidado diariamente, emergem como contradição de uma realidade que coloca mulheres pobres em permanente condição de desvantagem, na informalidade[5] da economia e da política brasileira. A desigualdade de gênero, em épocas de crise epidemiológica do capitalismo, se acentua quando o desempenho dessas atividades, socialmente rebaixadas e subalternizadas aos modos de produção e reprodução, passam a representar uma sentença inesperada de morte pela exploração dos mais pobres. Discursos negacionistas do governo, nesse momento, não dão prioridade às questões de gênero e reconhecimento, e isso só corrobora com mais atos de violência.

Publicamente, o Governo Federal costuma demonstrar recorrente menosprezo pela vida e indiferença com a dor das famílias que ressentem o luto (de forma coletiva e individual) de inúmeras mães e filhas. A violência econômica é parte das semânticas sobre o valor e a divisão sexual do trabalho, do desempenho através dos corpos das mulheres. Por isso, questionar qual é o espaço que o trabalho ocupa na vida destas nos abre possibilidades de tencionar dependências de gênero maiores, observadas na pandemia, que também deságuam como violência de gênero. As trabalhadoras são as mais suscetíveis aos efeitos da desigualdade ligados ao gênero (devido ao baixo assalariamento, discriminações relacionadas à maternidade, à idade, ao racismo, preconceitos, concorrência) no trabalho. Com a crise, o acúmulo de obrigações pode estagnar ou adicionar vulnerabilidades às questões profissionais.

De outro modo, a gestão do sofrimento sob o prisma econômico ganha uma atenção especial ao encobrir, estrutural e culturalmente, a complexidade do “tempo” de trabalho das mulheres no capitalismo, posto que apenas as atividades que produzem valor ou geram lucro são socialmente consideradas. Isto é, ao ampliar a ideia do que é considerado “trabalho”, surgem problemas no campo do reconhecimento social de atividades não assalariadas, tais como: trabalho de cuidar, trabalho doméstico, de assistência familiar, trabalho de sobrecarga mental, como atividades que geram sim valor simbólico, essencial ao desenvolvimento da vida. São atividades das quais o capital se beneficia, mas não paga. Isso faz com que mulheres, durante períodos de incerteza financeira na quarentena, se sintam mais estimuladas a assumir cada vez mais responsabilidades de gestão. Elas aceitam sacrificarem-se mais em busca de melhores condições de saúde, segurança e bem estar às suas famílias. Isto é, criam-se condições para que jornadas de tele trabalho/autônomo coexistam com atividades paralelas de trabalho informal para manter uma renda mínima.

As relações amorosas, a maternidade, os afetos, todas as relações que envolvem o tema do “cuidado”, passam a produzir outras relações de interação ligadas à ideia de insuficiência de desempenho esperado das mulheres. Isso porque a qualidade de tempo insuficiente dedicado ao afeto, ao cuidado acaba acumulando culpa, autorresponsabilização pessoal e esgotamentos mentais “autossacrificiais”, somados às rotinas do home office.

 Do contrário, no âmbito privado, a falta de politização sobre a estrutura da família tradicional propicia falta de segurança às mulheres. A cultura do “cuidado” remete a um subaproveitamento da gestão das mulheres através de uma racionalidade produtiva de gênero, que, em muitos casos, acaba atrofiando e adoecendo ao exigir mais de quem cuida. Preocupações que raramente se apresentam da mesma maneira aos companheiros. Isso faz com que a tendência à hiperesponsabilização se acentue no isolamento.

A compreensão contemporânea sobre os papéis de gênero, pensados como efeito na subjetividade, também deposita maior autocontrole e competência emocional a elas. Seja pela crescente necessidade de enfrentar os efeitos econômicos provocados pela epidemia, tais como o desemprego, as dívidas, a saúde mental do parceiro e o sentimento de fracasso pessoal e profissional. Até mesmo a capacidade de se localizar, socialmente, durante e num futuro pós-pandemia. Esse excesso de obrigações impõe limites à libertação de violências machistas e propõe um reexame das violências estruturais, de fundo econômico, que se intensificam na crise.

Por fim, especialmente, à financeirização dos serviços básicos de saúde pública, a contar nos últimos anos, pede-se agora uma reanálise sobre os planos de contingenciamentos adotados para o combate à pandemia. Que estes incluam uma atenção especial às mulheres profissionais (que são as que mais morrem). Nestes e em outros casos, o Estado também deve produzir cuidado e assistência integral para beneficiar as trabalhadoras (as que são mães, as que não desejam ser e as companheiras vítimas de violência doméstica, sexual e de todas as formas). Mulheres de muitas idades que estão expostas diariamente à riscos, tanto em ambientes públicos como privados. Mesmo em condições adaptadas, a saúde pública das mulheres importa e deve continuar sendo denunciada[6], não apenas pela iniciativa vítimas, mas pelos vizinhos, amigos e familiares. É importante que a comunidade também se mobilize para registrar violências produzidas por vínculos desgastados, que se mantém atrelados à impossibilidade da conquista de uma maior autonomia financeira para muitas.  

 

Notas e Referências

[1]<https://iris.paho.org/bitstream/handle/10665.2/52016/OPASBRACOVID1920042_por.pdf?ua=1> 28.04.2020.

[2]<https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/04/13/casos-de-violencia-contra-mulher-aumentam-30percent-durante-a-quarentena-em-sp-diz-mp.ghtml> Acesso em: 28.04.2020.

[3]<https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/27535-desemprego-sobe-para-12-2-e-atinge-12-9-milhoes-de-pessoas-no-1-trimestre> Acesso em:05.05.2020.

[4] Relatório do Conselho Federal de Enfermagem (Cofen) e da Fundação Oswaldo Cruz.<https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/311314/WHO-HIS-HWF-Gender-WP1-2019.1-eng.pdf?sequence=1&isAllowed=y> 06.05.2020.

[5]<https://nacoesunidas.org/oit-participacao-das-mulheres-no-mercado-de-trabalho-ainda-e-menor-que-dos-homens/>06.05.2020.

[6]Canais de atendimento para denúncias: <https://www.ufrgs.br/jornal/novos-canais-digitais-sao-criados-para-atender-mulheres-vitimas-de-violencia-domestica/>02.05.2020.

CAVALLERO, Luci; GAGO, Verónica. Uma leitura feminista da dívida: nos queremos desenvididadas! Buenos Aires: Fundação Rosa Luxemburgo, 2019.

ARRUZZA, Cinzia; BHATTACHARYA, Titihi; FRASER, Nancy. Feminismo para os 99%: Um manifesto. São Paulo: Boitempo, 2019.

 

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

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