A violação da dignidade do Ser Humano e o meio ambiente.

24/06/2018

Introdução.

O mundo acordou, recentemente, com a nova notícia estarrecedora vinda dos “Ventos do Norte[1]. Chamada pelas organizações de direito humanos de os novos campos de concentração do capitalismo global, filhos de imigrantes, sem documentos, são colocadas em jaulas nos EUA.

As fotos publicadas em diversos meios de comunicação mostram essas estruturas, que chocam nosso olhar e arrepiam nossa memória, não apenas pela desumanidade e crueldade direcionada àqueles que sofrem essa ação – as crianças –, bem como por nos remeterem ao fim da Segunda Guerra Mundial, quando milhares de pessoas foram encontradas em campos de concentração. Ainda que haja o abrandamento dessa política pelo governo dos EUA é paradoxal pensar que, em pleno século 21, e em um dos países precursores da Carta da ONU de 1945, esse cenário é manchete no noticiário internacional.[2]

O processo de imigração e suas consequências pertencem ao modelo capitalista de globalização das relações sociais, econômicas e ambientais a que estão submetidos os Seres Humanos. Bauman[3] (1999, p. 08), explica que a globalização está na ordem do dia; uma palavra da moda que se transforma rapidamente em um lema, uma encantação mágica, uma sanha capaz de abrir as portas de todos os mistérios presentes e futuros. A globalização, aduz, não importa o ângulo da análise, é o destino irreversível e um processo que afeta a todos de forma indistinta, pois, todos estamos sendo globalizados.

Embora a globalização seja um fato, um destino irreversível e um processo que afeta a todos de forma indistinta; o Ser Humano ainda possui dificuldade em compreender as causas, os efeitos e a razão entre o tempo e o espaço; já que subitamente todos os Seres acabam envolvidos nas consequências oriundas das políticas internacionais, sofrendo com a interferência de atores ou modelos globais que atingem as respectivas regiões e sítios de convivência.

As questões que envolvem a imigração pelo mundo, desde os Judeus, Cubanos, Mexicanos até os Sírios; demonstram, sem necessidade de vitrines, que o modelo de desenvolvimento econômico global guarda simetria com a violência da desigualdade social, econômica e ambiental; violando todo e qualquer tratado de direitos humanos e, sobretudo, desrespeitando os princípios basilares de dignidade e respeito pela vida em todas as dimensões e culturas.

A materialização da aplicação do capitalismo globalizado tem resultado na criminalização do “outro”, do “externo”. As políticas nacionalistas, em especial dos países desenvolvidos, estruturam o ordenamento jurídico com normas que criminalizam o imigrante, geralmente visto como um Ser oportunista e usurpador de garantias sociais. Bauman (1999, p. 10), explora a questão da globalização e do capitalismo, destacando que existe uma tendência atual de criminalizar casos que não se adequam à norma idealizada. O imigrante, dentro deste dilema, é tratado como um Ser estranho à cultura, responsável por provocar insegurança, medo e incerteza na população local, cuja cultura de autoproteção demanda a coexistência da elaboração de normas jurídicas para criminalizar o Ser externo a fim de que seja expulso, evitando a divisão de bens/serviços sociais – trabalho e assistência social.

A missão do presente artigo é discutir o tema da dignidade humana a partir do ordenamento jurídico brasileiro à luz da necessidade de a sociedade mundial perpassar do estágio de autofagia para o estágio da solidariedade.

A virulência do sistema capitalista: a superpopulação e o descarte do Ser Humano.

A crise imigratória, ainda que vista e revista por diversos ângulo, tem sua origem na concepção primaria do estado capitalista, cujo postulado pressupunha a ideia de que um país forte requeria uma superpopulação e de que as mazelas do excesso populacional seriam tratadas e resolvidas pela ciência e pela tecnologia.

O problema é que o Estado Moderno, por melhor que seja a tecnologia desenvolvida pelos grandes centros de pesquisa, não alcançou sucesso na contraposição da teoria de Thomas Robert Malthus, na obra Ensaio sobre o princípio da população tal como esta afeta o futuro progresso da humanidade[4].   

É fato, incontroverso, sob os aspectos da dignidade humana, que o modelo de Estado vigente sucumbiu, havendo mazelas sociais por todo o planeta. A propaganda capitalista de que a teoria de Malthus representava um retrocesso e de que a miséria humana seria resolvida ou curada através da ciência e da tecnologia, mostrou-se incapaz de solucionar os dilemas que a fome, a miséria e a falta de oportunidades geraram em diversos países.

Assim, na lógica perversa do sistema capitalista, a superpopulação deixou de representar a grandeza de um país e a solução econômica dos grandes empresários; passando a ser compreendida como um problema que atrapalha a obtenção dos lucros.

Superpopulação é uma ficção atuarial; um codinome para a aparição de um número de pessoas que, em vez de ajudarem a economia a funcionar com tranquilidade, tonam muito mais difícil a obtenção, por não falar na elevação, dos índices pelos quais se mede e avalia o funcionamento adequado. A quantidade de indivíduos parece crescer de maneira incontrolável, aumentando continuamente as despesas, mas não os ganhos. Numa sociedade de produtores, essas são as pessoas cuja mão de obra não pode ser empregada com utilidade, já que todos os bens que a demanda atual e futura é capaz de absorver podem ser produzidos – e produzidos com maior rapidez, maior lucratividade e de mais ‘econômico” – sem que elas sejam mantidas em seus empregos. Numa sociedade de consumidores, elas são os “consumidores falhos” – pessoas carentes do dinheiro que lhes permitiria ampliar a capacidade do mercado consumidor, e que criam um novo tipo de demanda a que a indústria de consumo, orientada para o lucro, não pode responder nem ‘colonizar’ de maneira lucrativa.[5]      

O excesso humano é um subproduto do capitalismo, uma variedade de refugo. São contingentes populacionais nascidos do erro de planejamento e deixados à própria sorte, sem direitos e sem dignidade. São Seres Humanos não contabilizados economicamente e cuja existência é desprezada e descartada após o uso.

A garantia dos direitos humanos a partir da solidariedade ambiental.

Sem pretender falsear a realidade e com a missão de apresentar uma via de reflexão consentânea com os valores naturais do Ser Humano, é possível incluir no debate a solidariedade ambiental.

A palavra solidariedade, de origem francesa[6]solidarité, significa responsabilidade reciproca.

Solidariedade é o substantivo feminino que indica a qualidade de solidário e um sentimento de identificação em relação ao sofrimento dos outros. Em muitos casos, a solidariedade não significa apenas reconhecer a situação delicada de uma pessoa ou grupo social, mas também consiste no ato de ajudar essas pessoas desamparadas.

A concepção política da palavra solidariedade remonta a Revolução Francesa de 1789, presente através da tríade liberdade, igualdade e fraternidade. A fraternidade é reconhecida por Norberto Bobbio como sendo um direito de terceira geração.[7] Os direitos de terceira geração são direitos de solidariedade, responsável por regular direitos transindividuais, relacionados com o destino da humanidade. Nesse sentido, do direito de solidariedade está relacionado com a proteção ambiental, com a paz, com o patrimônio comum, com o progresso da humanidade, com a autodeterminação dos povos. 

Segundo Abreu (2014, p. 70)[8] a solidariedade reflete a corresponsabilização de todos os indivíduos pelos problemas sociais e pela solução desses problemas. Os cidadãos são mutuamente detentores de direitos e de deveres perante a comunidade e aos demais cidadãos. O binômio direito-dever expressa a relação solidária no Estado Democrático de Direito.  Abreu conclui que a solidariedade, compreendida pela corresponsabilidade, é o fundamento dos deveres fundamentais. A responsabilidade mútua entre os cidadãos e o Estado para com o bem-estar, a qualidade de vida e a dignidade dos outros cidadãos, acentua a fraternidade e a alteridade nos tempos hodierno.

No Brasil, a solidariedade esta prevista expressamente no texto constitucional, art. 3º, como objetivo fundamental da República Federativa[9].

                Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

                I – construir uma sociedade livre, justa e solidária.

A constituição de uma sociedade solidária requer a aplicação da solidariedade ás relação entre todos os seres viventes; compreendidos como sendo todos os seres vivos presentes na natureza. A Constituição Brasileira impõe ao Chefe de Estado uma ação internacional de defesa da dignidade humana, apregoando junto aos organismos internacionais a necessária aplicação do princípio da solidariedade ambiental e social como meio de superação das desigualdades e das injustiças provocadas pelo sistema que despreza e vilipendia vidas humanas e o ambiente natural.

Conclusão.

A violação da dignidade do Ser Humano e do meio ambiente é uma realidade inexorável e incontestável, até mesmo pelo próprio sistema capitalista. O flagelo humano e as condições de insustentabilidade ambiental estão presentes nas catástrofes sociais e naturais de forma irrefutável. A globalização econômica, a exploração a qualquer custo dos países subdesenvolvidos e a colaboração para implantação de regimes políticos autoritários acionou o pêndulo migratório internacional, fazendo com que o lixo humano fosse movimentado de um aterro sanitário para outro.

À luz da realidade internacional, os países responsáveis pela implantação do horror econômico estão atônitos e, ao contrario do que deveriam fazer, estão constituindo políticas nacionalistas, xenofóbicas e legalistas em desfavor dos imigrantes.

Os desafios da sociedade moderna são imensos e inúmeros, porém, sem resolver os problemas oriundos da falta de bom senso e de cuidado com os Seres Humanos e com a Natureza, pouca coisa da realidade hodierna pode mudar. É preciso que a solidariedade ambiental – um princípio que exige a responsabilidade dos seres humanos de forma mútua e reciproca; seja objeto de discussão e propagação. BOFF (2000, p. 31)[10] ensino que para tal diligência, faz-se necessário superar o paradigma moderno, que fraciona, atomiza e reduz. Há de se chegar ao paradigma holístico contemporâneo, que articula, relaciona tudo com tudo e vê a coexistência do todo e das partes (...). Enfim, todas as coisas devem ser contempladas na e através de sua relação eco organizadora com o meio ambiente cósmico, natural, cultural, econômico, simbólico, religioso e espiritual.

Notas e Referências

[1] Musica Sangue Latino, Secos e Molhados. 1973.

[2] Disponível em https://gauchazh.clicrbs.com.br/opiniao/noticia/2018/06/o-desespero-de-criancas-em-verdadeiras-gaiolas-humanas-cjinipxui0evg01pa41t884fm.html. Acesso em 21 de jun. 2018.

[3] BAUMAN, Zigmunt. Globalização: as consequências humanas. Rio de Janeiro : Jorge Zahar Editor. 1999

[4] BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiçadas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004, pg. 47.

[5] BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiçadas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004, pg. 53

[6] Disponível em https://www.significados.com.br/solidariedade/. Acesso em 21 de jun. 2018.

[7] Disponível em https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/297730/mod_resource/content/0/norberto-bobbio-a-era-dos-direitos.pdf. Acesso em 21 de jun. 2018.

[8] ABREU, Ivy de Souza. Direitos Humanos e Meio Ambiente: obra dedicada ao Instituto Terra. Coordenadores: ULHOA, Paulo Roberto, FARO, Júlio Pinheiro, FABRIZ, Daury Cesar, GOMES, MARCELO Sant’Anna Vieira Gomes e SILVA, Heleno Florindo da. Vitória; Cognojus, 2014.

[9] Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm. Acesso em 22 de jun. 2018.

[10] BOFF, Leonardo. Ethos mundial: um consenso mínimo entre os humanos. Rio de Janeiro: Letra Viva, 2000.

 

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