A verdade, o poder e o meio ambiente

14/10/2018

Introdução.

Vivemos uma crise social cuja causa de base é a forma de organização das sociedades modernas em relação ao acesso dos Seres Humanos à produção, à distribuição dos bens da natureza e da cultura. A verdade é que as sociedades modernas são caracterizadas pelas desigualdades que privilegia uma pequena casta que possuem plena admissão ao mundo do domínio dos bens, dos produtos (naturais e culturais) e do poder em detrimento dos párias; marginalizados, excluídos e vitimizados.

A verdade e o poder sobre o meio ambiente nas sociedades moderna revela um projeto ideológico de sobreposição do homem sobre a natureza; um projeto que desconsidera as múltiplas relações da natureza com a vida do Ser Humano no planeta Terra, encontrando espaço apenas para a compreensão utilitarista da natureza, sem compreender que as comodidades auferidas com a exploração, mesmo que científica dos recursos naturais, resultara indubitavelmente em uma catástrofe desde a ordem local até a ordem mundial. Exige-se, portanto, a revisão do paradigma de sociedade e de civilização, alterando a verdade e o poder sobre o meio ambiente a partir de uma base ética universal de sustentabilidade, revisando e modificando a relação do homem com a natureza.

O presente artigo abordará, em linhas gerais, reflexões do discurso sobre a verdade e o poder na sociedade como justificativa para a manutenção de um desenvolvimento econômico e social fundado na exploração e na marginalização do Ser Humano por meio da detenção desigual dos recursos naturais.

As interfaces entre a verdade e o poder nas sociedades.

A verdade, em regra, é local e não universal. Cada sociedade explica (ou justifica) suas relações sociais, políticas, econômicas e ambientais a partir da força cogente do poder que acaba por determinar (ou impor) o que é certo e o que é errado em dado local e em certas e determinadas circunstâncias históricas. Enfim, cada sociedade produz a sua verdade, distinguindo-a dos demais códigos de convivência social como fundamento de uma política de sociabilidade que exprime a ideologia de poder subjacente a qualquer outra forma de organização social. FOUCAULT (2018, p. 51)[1] explica a verdade e suas interfaces sociais a partir de cinco características históricas:

(...) a ‘verdade’ é centrada na forma de discurso científico e nas instituições que o produzem; esta submetida a uma constante incitação econômica e política (necessidade de verdade tanto para a produção econômica, quanto para o poder político; é objeto de várias formas, de uma imensa difusão e de um imenso consumo (circula nos aparelhos de educação ou de informação, cuja extensão no corpo social é relativamente grande, não obstante algumas limitações rigorosas); é produzida e transmitida sob o controle, não exclusivo, mas dominante, de alguns grandes aparelhos políticos ou econômicos (universidades, Exércitos, escrituras, meios de comunicação); enfim, é objeto de debate político e de confronto social (as lutas ‘ideológicas’).    

As especificidades sobre a verdade nas sociedades são lançadas a partir dos aparelhos indutores de poder constituídos ao longo da história da humanidade. Assim, a verdade é antes de tudo um discurso metodologicamente preparado e organizado pelos intelectuais de plantão do sistema político e ideológico. A verdade não se encontra aprisionada em um compartimento moral estanque, ao contrário, é fluída e volátil segundo a marcha dos que detém os instrumentos do capital econômico – o que é verdade hoje, pode, facilmente, ser justificado e alterado por outra verdade -, na dependência unicamente dos fatores reais de poder que estejam presentes em determinada circunstância histórica. A verdade é introduzida por meio das engrenagens do Estado; um Estado pensado, gerido e justificado ao longo da história pela visão restrita da moral, da ética e do sistema educacional da burguesia, que desconsiderou (e desconsidera), ao longo do mundo, as múltiplas culturas de organização social. A verdade, embora não pareça, é imposta e não refletida ou dialogada.

De regra, os Seres Humanos vivem em uma sociedade que converge para admitir (como se fosse imanente à sua estrutura de formação) que as estruturas do Estado são sempre verdadeiras e que, sobretudo, as ações do Estado se revelam sempre em verdades intransponíveis (dogmas), cuja direção não se admite suspeitar, discutir ou alterar. A questão final e inevitável, diante de uma profusão de significados sobre a verdade e sua relação com o nível de sociabilidade, resulta na seguinte pergunta: a quem pertence o Estado de fato e de direito? O que é a verdade, a final?

Sustenta-se, no brevíssimo entrecho, que a verdade é um discurso intelectualizado, fluído, organizado pelo Estado e difundido por meio dos sistemas de organização social (escola, igreja, leis, etc.), com vista a justificar as ações em dados e certos momentos da história de um local, de uma Nação e até mesmo para eventos de nível mundial. Pois bem, seja qual for o modelo de Estado, a prática se revela sempre diferente dos estatutos legais e principiológicos. Dessa forma, o Estado pode pertencer ao povo, por direito, contudo, é organizado, estabelecido e imposto ideologicamente pelos que detém o poder econômico e a capacidade de interferir nas estruturas de indução da verdade por todo o tecido social. Nesse sentido, FOUCAULT (2018, p. 54), sustenta que a consciência do Ser Humano pode até ser objeto de mudança (perspectiva da imanência da verdade), entretanto, que o problema da produção da verdade é outro:

Esse regime não é simplesmente ideológico ou superestrutural, foi uma condição de formação e desenvolvimento do capitalismo. (...)

O problema político essencial para o intelectual não é criticar os conteúdos ideológicos que estariam ligados à ciência ou fazer com que sua prática científica seja acompanhada por uma ideologia justa: mas saber se é possível constituir uma nova política da verdade. O problema não é mudar a ‘consciência’ das pessoas, ou o que elas têm na cabeça, mas o regime político, econômico, institucional de produção da verdade. (g.n.) 

E a verdade introduzida pelo Estado no corpo social, o que seria? Para FOUCAULT (2018, p. 53), é possível responder à questão por meio de definições oferecidas para experiências ou provas futuras. Por ‘verdade’, entender um conjunto de procedimentos regulados para a produção, a lei, a repartição, a circulação e o funcionamento dos enunciados. A ‘verdade’ está circularmente ligada a sistemas de poder, que a produzem e apoiam, e a efeitos de poder que ela induz e que se reproduzem. ‘Regime’ da verdade. (g.n.)

A verdade e o poder aplicado ao meio ambiente.

Em diversas resenhas, o meio ambiente é discutido e explicado como detentor de certa e determinada autonomia cientifica e, sobretudo, estudado e aplicado pela transversalidade de saberes. As questões ambientais e ecológicas ultrapassam os estudos da dimensão do ambiente natural (fauna e flora), alcançando a dimensão ética de organização da sociedade e da vida no planeta terra.

A verdade sobre o desenvolvimento socioeconômico é justificada por meio de falsos cognatos, quase sempre relacionados com a necessidade de manter o modo de produção econômica, a circulação de bens de consumo e a dignidade do homem por meio do trabalho. O problema, entretanto, é outro. A verdade sobre a sustentabilidade do meio ambiente para as presentes e futuras gerações é um dogma disseminado e reproduzido em forma de mantra, que não permite a desintegração de sua base intelectual e científica. O modelo político, econômico e institucional de Estado produz uma verdade intangível a olho nu, retirando da sociedade a capacidade de compreender, adequadamente, as relações de poder que se estabelecem ao redor do meio ambiente e da ecologia. As questões envolvendo a verdade e o poder em matéria de meio ambiente serão retratadas sob duas ordens reflexivas, sem fechar ou limitar o debate; sendo a globalização e a ética.

No discurso politicamente correto das Nações, fala-se em desenvolvimento sustentável, em proteção dos recursos naturais e em políticas de redução ou de contenção do aumento da temperatura no globo terrestre; entretanto, a verdade é que na prática, o que impera é o nacionalismo expressado pela proteção do mercado nacional (crescimento econômico local), sem a atenção necessária às condições éticas do crescimento e da geração de emprego. A globalização econômica, responsável por conectar os mercados econômicos, interferir nas moedas nacionais e determinar o custo de vida, não se traduz em uma globalização ecológica e regenerativa da sociedade e do ambiente (natural, físicos, cultural e do trabalho). Para tanto, a tentativa de compreender o alcance da globalização exige responder às seguintes indagações: quem determina a verdade? A globalização pretende sustentar que estrutura de poder em matéria ambiental?

A resposta à provocação é aberta, contudo, sem risco de errar, pode-se afirmar que a verdade é determinada pelo mercado, um ser imanente, porém, com atuação direta na qualidade do ambiente de todo o planeta. O dito sistema de mercado é incontrolável, não respeita a soberania e as fronteiras físicas – é uma corrente que vem pelo ar, capaz de alterar e desequilibrar as bases sociais e ecológicas de um País em nome do capital privado, sendo o Estado, nesse caso, um mero passageiro, com pouca ou quase nenhuma chance de impedir as ações de otimização da produção, de introdução da ciência e da tecnologia, de transferência de capital, de exploração ou degradação dos recursos naturais e de geração de miséria, desemprego e desigualdade social. Em consequência, o mercado sustenta e retroalimenta a estrutura do poder econômico dos grandes capitalistas, envoltos na lógica da produção e do consumo em massa, sem horizonte ético e ecológico; empenhados apenas em fazer funcionar a roda do sistema capitalista – produção – consumo – desejo – lucro – degradação humana e ambiental - produção – consumo – desejo – lucro – degradação humana e ambiental ... em direção ao finito.

A revisão do paradigma de verdade e de poder.

A revisão da estrutura de verdade e de poder presente na sociedade moderna exige, dentre outras ações, a construção de uma sociedade ética desde o nível local até o nível mundial, cuja perspectiva, na forma refletida por FOUCAULT (2018, p. 53), prescinde de mudança no regime político, econômico e institucional de produção da verdade. Dito de outra forma, não basta o discurso ético ou sustentável (um verdadeiro jogo de aparência), é necessário que o Estado e as Nações alterem o paradigma de produção sobre a verdade em relação aos danos ambientais e as respectivas consequências para a humanidade. O poder deve ser posto efetivamente em favor dos Seres Humanos.  

Segundo BOFF (2000, p.19)[2], a saída que muitos analistas propõem e que nós assumimos – é a razão de nosso texto – é encontrar uma nova base de mudança necessária. Essa base deveria apoiar-se em algo que fosse realmente comum e global, de fácil compreensão e realmente viável. Partimos da hipótese de que essa base deve ser ética, de uma ética mínima, a partir da qual se abririam possibilidades de solução e de salvação da terra, da humanidade e dos desempregados estruturais.

Nesse sentido BOFF propõe como arquétipo de modelo de crescimento econômicos e social, que a humanidade assuma as premissas e os valores éticos declarados na Carta da Terra[3]:

  1. respeito e cuidado com a Comunidade Viva, exigindo: (i) a proteção e a restauração da integridade dos sistemas ecológicos da Terra, (ii) prevenção de danos ao meio ambiente, (iii) adoção de padrões de produção e de consumo compatíveis com a capacidade de regeneração dos recursos naturais e, (iv) aprofundamento dos estudos sobre sustentabilidade.
  2. justiça social e econômica, requerendo: (i) erradicação da pobreza, (ii) promoção de um sistema econômico com vista ao desenvolvimento humano; (iii) afirmação da igualdade e da equidade de gênero, por meio do acesso universal à educação.
  3. Democracia, não violência e Paz, solicitando: (i) afirmação das instituições democráticas, do acesso à justiça e da participação popular na tomada de decisões, (ii) consideração e respeito com todos os seres vivos do Planeta Terra.

Conclusão.

A verdade e o poder estão unidos na produção de um regime, em regra comandado por fatores reais de poder – identificado como sendo o mercado, que sustenta as estruturas sociais a partir do consumo de massa e da justificação do que é certo e do que é errado, inclusive em matéria ambiental, a partir da necessidade de manter o modelo de desenvolvimento social e humano que não altere a pirâmide social e a forma antropocêntrica de relacionamento do mercado com a natureza. Trata-se de uma aliança com alto poder destrutivo, sendo urgente a revisão da forma de produção da verdade e da forma de aplicação do poder na sociedade moderna, abandonando a lógica do lucro, da exploração humana e da degradação socioambiental e assumindo como base a ética (da solidariedade, do diálogo, da democracia, do respeito, da paz, da compaixão).      

    

 

 

[1] FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2018.

[2] BOFF, Leonardo. Ethos mundial: um consenso mínimo entre os humanos. Brasília: Letra viva, 2000.

[3] A Carta da Terra é uma declaração de princípios éticos fundamentais para a construção, no século XXI, de uma sociedade global justa, sustentável e pacífica. Busca inspirar todos os povos a um novo sentido de interdependência global e responsabilidade compartilhada, voltado para o bem-estar de toda a família humana, da grande comunidade da vida e das futuras gerações. É uma visão de esperança e um chamado à ação.

Oferece um novo marco, inclusivo e integralmente ético para guiar a transição para um futuro sustentável.

Ela reconhece que os objetivos de proteção ecológica, erradicação da pobreza, desenvolvimento econômico equitativo, respeito aos direitos humanos, democracia e paz são interdependentes e indivisíveis.

O documento é resultado de uma década de diálogo intercultural, em torno de objetivos comuns e valores compartilhados. O projeto começou como uma iniciativa das Nações Unidas, mas se desenvolveu e finalizou como uma iniciativa global da sociedade civil. Em 2000 a Comissão da Carta da Terra, uma entidade internacional independente, concluiu e divulgou o documento como a carta dos povos.

A redação da Carta da Terra envolveu o mais inclusivo e participativo processo associado à criação de uma declaração internacional. Esse processo é a fonte básica de sua legitimidade como um marco de guia ético. A legitimidade do documento foi fortalecida pela adesão de mais de 4.500 organizações, incluindo vários organismos governamentais e organizações internacionais.

 

Notas e Referências

Disponível em https://pt.wikipedia.org/wiki/A_Carta_da_Terra. Acesso em 13 de out. 2018.

 

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