A VENDA DE ASCENDENTE PARA DESCENDENTE E A COERÊNCIA DO REGIME SUCESSÓRIO NO BRASIL

16/11/2019

Não há dúvidas que as questões contratuais representam grande parte dos nossos atos diários. Estamos cotidianamente envolvidos em relações negociais, seja iniciando, executando ou extinguindo contratos, sempre com o fim de atender nossas necessidades e/ou interesses.

O Direito Contratual integra o Direito das Obrigações e estabelece regras gerais e específicas sobre a matéria que precisam estar em sintonia com as demais áreas do Direito Civil. Por vezes, o ordenamento pátrio apresenta antinomias jurídicas que precisam ser resolvidas. A serviço da coerência, o jurista lança mão da teoria geral do direito para o alcance deste propósito.

O dinamismo social vai sempre exigir ajustamentos do Direito. Este, por sua vez, tende alcançar maturidade com a prática jurídica e as contribuições da doutrina e da jurisprudência como mecanismos de interpretação das normas jurídicas.

O propósito da presente reflexão está inserido neste contexto, concentrando-se no contrato de compra e venda de ascendente para descendente, tratado no art. 496 do Código Civil. Ao dispor sobre as regras gerais, o legislador entendeu por fixar normas protetivas de direitos de terceiros não envolvidas na relação negocial, mas que possuem interesse legítimo no contrato celebrado, haja vista a eficácia externa do contrato de compra e venda.  

Não se pode esquecer que, como negócio jurídico, o contrato precisa atender certas exigências para a sua validade, e sem dúvidas a qualidade das partes é fundamental neste panorama, ou seja, quem é o comprador e quem é o vendedor. Por vezes, este questionamento não nos leva a grande complexidade ou exigências legais. Não é o caso da hipótese ora ventilada.

Segundo nosso diploma civilista, é permitida a venda de ascendente para descendente. No entanto, os demais descendentes e o cônjuge do alienante devem expressamente anuir, salvo se este for casado sob o regime patrimonial da separação obrigatória. O foco da nossa atenção vai se voltar a esta última informação, ou seja, a dispensa do consentimento no regime de bens informado.

Contudo, antes de adentrarmos neste debate, importante algumas observações, já que esta matéria tem recebido principal atenção do Poder Judiciário ao longo dos anos, tendo em vista a importância deste contrato em nossa sociedade e sua repercussão social, especialmente no núcleo familiar.

Bom, primeiro, entendo que tal exigência aplica-se à união estável, embora o Código Civil use a expressão “cônjuge”. Ao longo dos últimos 15 anos, os Tribunais em todo o país julgaram pela crescente igualdade de tratamento em diversas matérias, culminando com a equivalência sucessória entre casamento e união estável em 2017 no julgamento dos Recursos Extraordinários 646.721/RS[1] e 878.694/MG[2]. Não vejo, portanto, razão para conferir tratamento diverso em matéria contratual, em especial a necessidade do consentimento do companheiro (a) do alienante na hipótese de venda de ascendente para descendente.

Não podemos nos limitar ao texto legal escrito na década de 70 no Brasil, fruto de uma época ainda marcada pela diferença de tratamento nas mais diversas searas. Não seria diferente na esfera familiar, sempre marcada pela influência moral e religiosa.   

Segundo, qual a razão de ser da exigência do consentimento? Claro está que o legislador preocupou-se com os impactos sucessório deste contrato sobre a legítima e o direito dos demais descendentes do alienante e do cônjuge sobrevivente, como acentua Marco Aurélio Bezerra de Melo[3], vez que realizarão controle sobre o ato negocial, a fim de evitar uma compra e venda simulada entre os pactuantes, de modo a ocultar o real propósito de doar e não, efetivamente, de vender o bem objeto da prestação, quer móvel ou imóvel.       

Deste modo, justifica-se a anulabilidade da compra e venda sem os respectivos consentimentos, aplicando-se o prazo geral de 02 anos do art. 179, CC/02 para a anulação do ato negocial. Neste ponto, informe-se, sinteticamente, que o Código Civil de 1916 apontava como causa de nulidade absoluta do contrato, não se falando, portanto, em prazo decadencial (art. 1.132, CC/16).

Importante pontuar que em 1963, o Supremo Tribunal Federal entendeu que a hipótese era de nulidade relativa ao editar a Súmula 152, que fixava prazo prescricional de 04 anos, a contar da abertura da sucessão. Em 1969, esta súmula foi revogada pela de número 494, que estabeleceu prazo geral da prescrição para a hipótese, que era de 20 anos, a contar da data da celebração do contrato.

Ora, a questão não desafia prazo prescricional, pois não há o surgimento de pretensão na medida em que nenhum direito foi violado. Verifica-se o surgimento de direito a anulação pelo não atendimento de requisito para a sua validade, segundo os ensinamentos de Agnelo Amorim Filho[4]. Neste sentido, a IV Jornada de Direito Civil fixou o Enunciado 368 que conduz ao prazo de 02 anos do art. 179, CC/02, entendendo, por consequência, que a Súmula 494 do STF caducou.[5] 

O terceiro ponto a ser enfrentado nesta breve reflexão é o início da contagem do prazo de 02 anos, vez que o art. 179, CC/02 estabelece expressamente que é da data da conclusão do ato negocial. No entanto, o Enunciado 545 da VI Jornada de Direito Civil definiu que a contagem inicia-se da ciência do ato, presumindo-se a data do registro imobiliário, por exemplo, na hipótese de compra e venda de imóvel, face o seu caráter de publicidade[6]. Este entendimento ajusta-se aos princípios vetores do Direito Contratual, especialmente os princípios da boa-fé objetiva e da função social dos contratos.

Como quarto e último ponto, a Segunda Seção do STJ no EREsp 661.858/PR[7] acrescentou mais um requisito para o acolhimento do direito à anulatória. Ao lado do consentimento, que decorre do texto legal, passou a exigir prova do prejuízo decorrente da celebração do contrato de compra e venda de ascendente para descendente. Este é o panorama atual, que concordamos (REsp 752.149/AL[8]).

Feitas estas considerações, vamos ao tema central deste artigo.

Entendo que a exigência do consentimento dos descendentes deve ser mantida e tem o legítimo propósito de defesa dos interesses dos sucessores que o eram ao tempo da celebração do contrato de compra e venda. Quanto ao cônjuge do alienante, a regra do art. 496, CC/02 visa proteger sua condição de meeiro e/ou herdeiro, devendo ser mantida a exigência de consentimento qualquer que seja o regime de bens.

Ao fixar regime de concorrência sucessória entre descendentes e cônjuge no art. 1.829, I, CC/02, o legislador levou em consideração o regime de bens do casamento para conferir ou não status de herdeiro ao sobrevivente. Nesta lógica, o cônjuge será meeiro ou herdeiro, ou ambos como ocorre no regime da participação final nos aqüestos.

O único regime patrimonial do casamento que ficava de fora era o regime da separação obrigatória (art. 1.641, CC/02), vez que não se falava em meação e nem em herança para o cônjuge sobrevivente. No entanto, ainda vem sendo acolhida pelos Tribunais a Súmula 377 do STF que fixou em benefício dos consortes direito de meação quanto aos bens adquiridos a título oneroso na constância da relação amorosa (EREsp 1.623.858/MG[9]).

Neste diapasão, a imposição do regime de separação de bens ao casamento exclui o cônjuge da concorrência sucessória com os descendentes, nos exatos termos do art. 1.829, I, CC/02, mas está garantida a meação sobre certos bens por força da referida súmula. Em virtude desta ordem de ideias, a anuência à venda deve ser exigida, a fim de evitar prejuízo ao cônjuge do alienante que pode ser afetado com a venda de bem de meação sem o seu consentimento.

Por seu turno, há quem defenda a dispensa do consentimento no regime de separação convencional de bens, o que respeitosamente discordo, sendo inclusive objeto do Projeto de Lei 4.639/2019[10]. Neste, o Direito Sucessório garante a condição de herdeiro ao cônjuge em concorrência com os descendentes. Embora neste regime não haja meação, o cônjuge será afetado em sua legítima pela venda simulada do bem, do mesmo modo que os demais descendentes. Assim, a exigência do consentimento deve ser mantida neste regime patrimonial em respeito à proteção da legítima do sobrevivente.

O Direito de Família passou por profundas mudanças ao longo da nossa história e o Direito Sucessório não acompanhou estas alterações, o que é lamentável. Na verdade, quanto à ordem de vocação hereditária, vivemos o ideal construído pela nossa sociedade na década de 70, quando do Projeto de Lei do atual Diploma.  É urgente a construção de um novo sistema sucessório no Brasil, pois é inegável que suas regras repercutem em todo o Direito Civil.

No entanto, até lá conviveremos com o sistema posto, fruto de uma realidade cultural que não nos representa mais. Porém, precisa ser observado para garantir a coerência do sistema privado até que tenhamos um novo regime sucessório. Assim, a interpretação lógico-sistemática leva-nos a concluir pela não aplicabilidade do parágrafo único do art. 496, CC/02, devendo sua regra ser afastada pelos Tribunais do país, bem como revogado pelo legislador.

 

Notas e Referências

[1] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário 646.721/RS. Rel. Min. Marco Aurélio, Plenário, julgado em 10-05-2017

[2] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário 878.694/MG. Rel. Min. Roberto Barroso, Plenário, julgado em 10-05-2017

[3] MELO, Marco Aurélio Bezerra de. Código Civil Comentado: doutrina e jurisprudência. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2019, p. 295

[4] AMORIM FILHO, Agnelo. Critério científico para distinguir a prescrição da decadência e para identificar as ações imprescritíveis. Revista de Direito Processual Civil. São Paulo, v. 3º, p. 95-132, jan./jun. 1961.

[5] BRASIL. Conselho da Justiça Federal. Jornada de Direito Civil IV. Enunciado 368. Disponível em: <https://www.cjf.jus.br/cjf/corregedoria-da-justica-federal/centro-de-estudos-judiciarios-1/publicacoes-1/jornadas-cej/compilacaoenunciadosaprovados-jornadas-1-3-4.pdf>. Acesso em: 10 de out.2019

[6] BRASIL. Conselho da Justiça Federal. Jornada de Direito Civil VI. Enunciado 545. Disponível em: <https://www.cjf.jus.br/cjf/corregedoria-da-justica-federal/centro-de-estudos-judiciarios-1/publicacoes-1/jornadas-cej/vijornadadireitocivil2013-web.pdf>. Acesso em: 10 de out.2019

[7] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 661.858/PR. Rel. Min. Fernando Gonçalves, Segunda Seção, julgado em 26-11-2008

[8] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 752.149/AL. Rel. Min. Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 14-09-2010

[9] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Embargos de Divergência em Recurso Especial 1.623.858/MG. Rel. Min. Lázaro Guimarães, Segunda Seção, julgado em 23-05-2018

[10] BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei 4.639/2019. Dep. Carlos Bezerra. Disponível em: <https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2216695>. Acesso em: 10 de out.2019

 

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