A universalidade e unidade dos direitos fundamentais sociais: ponderações do direito luso-brasileiro

07/12/2018

Coluna Substractum / Coordenadores Natã Ferraz, Juliana Jacob e Luciano Franco

A universalidade dos direitos fundamentais

A universalidade e a unidade dos direitos fundamentais se assentam como princípios homólogos, comum a todos os direitos e a todos os seus titulares; como bem definido por Jorge Miranda, “os direitos fundamentais têm ou podem ter por sujeitos todas as pessoas integradas na comunidade política, o povo”[1].

J. Gomes Canotilho assevera que o processo de fundamentalização, constitucionalização e positivação dos direitos fundamentais “colocou o indivíduo, a pessoa, o homem, como centro da titularidade de direitos”. Neste ponto, o nobre autor levanta a dúvida: são todos titulares de direitos fundamentais? Evidente que esse questionamento pese sobre os direitos fundamentais sociais, em especial aqueles que exijam uma prestação, como é o caso da saúde e educação, que em Portugal assume os contornos da União Europeia e dos acordos comunitários. Coloca-se na mesa o acesso a esses direitos e sua proteção por parte de indivíduos que não estariam dentro das normas nacionais, abrangidos pela proteção social.

Continua o autor que a universalidade dos direitos fundamentais é observada dentro de quatro “círculos subjetivos”[2], num plano nacional, para todos os cidadãos portugueses (CRP, art.15, §2/3, 121, §1, 275, §2), que constituem carácter meramente técnico, como para os cidadãos brasileiros (CF/88, art.5º, LXXIII, 12, 14, §3º), nos limites das funções reservadas à exclusividade da cidadania. O segundo, dentro do círculo da União Europeia (cidadania europeia), conforme o Tratado da União Europeia, art. 8º e seguintes. Um terceiro círculo para o cidadãos da Comunidade de Países de Língua Portuguesa, alargados a esses países através da consagração constitucional de dispositivos que preservam a reciprocidade, como entre Portugal (art.15, §3 da CRP) e o Brasil (art.5º, e 12, §2º da CF). Por último, aqueles direitos que são constituídos a todos, numa concepção de “cidadania de todos”[3], ligada intimamente aos direitos humanos[4].

Todavia, a visão em que nos colocamos é da concepção da universalidade dos direitos fundamentais abraçada à ideia de direitos fundamentais unitários, uma vez que especificados, como no caso brasileiro, onde dispõe de direitos fundamentais à criança e adolescente em estatuto especial, não perca seu princípio geral universal[5]. Ora, não obstante sejam as crianças detentoras de especial proteção, a mesma só ocorre quando concretizada a ideia da universalidade dos direitos fundamentais, notadamente a força do princípio universal de acesso aos recursos de saúde, materiais ou procedimentais, básicos ou complexos, que estão intimamente ligados ao próprio exercício do direito subjetivo e exigível da saúde, por exemplo. O que vale salientar é que a saúde como direito fundamental universal a todas as pessoas humanas sofre de uma carência especial quando observados os direitos das crianças, seu grau de desenvolvimento e a ponderação do princípio da igualdade, por isso a sua especificação em um microssistema de proteção, o Estatuto da Criança e Adolescente (ECA).

Assim, a construção da universalidade, por sua vez, esbarra no princípio da igualdade[6], que Jorge Miranda distingue do princípio da universalidade por ele dizer respeito “aos destinatários das normas, o princípio da igualdade ao seu conteúdo. O princípio da universalidade se apresenta essencialmente quantitativo, o da igualdade essencialmente qualitativo”. Porém, admite o autor que “há direitos que não são de todas as pessoas, mas apenas de algumas categorias, demarcadas em razão de fatores diversos”, como é o caso dos direitos das crianças em relação ao fator idade[7].

Observa o professor José Afonso da Silva[8], ao conceituar os direitos sociais, que os mesmos “tendem a realizar a igualização de situações sociais desiguais”; portanto, “se ligam ao direito de igualdade”, uma vez que se criam “condições materiais mais propícias ao aferimento da igualdade real, o que, por sua vez, proporciona condição mais compatível com o exercício efetivo da liberdade”.

 

A unidade dos direitos fundamentais

No que tange à construção da unidade dos direitos fundamentais, está a elaboração da ideia de que os direitos sociais possuem os mesmos valores que os direitos de liberdades e garantias, uma vez que a realização da dignidade humana[9] – princípio fundamental das constituições portuguesa e brasileira -  passa pela valorização de um contexto complexo[10], não somente das liberdades, ou do direito à saúde e educação, mas por um conjunto que é capaz de fomentar a realização pessoal e coletiva.

A importância dos direitos sociais, os “filhos bastardos da Constituição”, como bem lembra Jorge Silva Sampaio, não pode ser diminuída e nem ser considerado com status jurídico diferente. O autor defende que “quando consagrados constitucionalmente, constituem uma verdadeira obrigação jurídica e não uma mera manifestação de boa vontade política, com prerrogativas para os particulares e obrigações para o Estado”[11].

Os direitos sociais, bem como os direitos de liberdade, possuem um amplo conteúdo e abrangem diferentes “dimensões, deveres, faculdades, garantias e direitos”[12], o que os caracteriza como indivisíveis e interdependentes, pois o exercício de um obrigará a realização do outro. Não há liberdade ao enfermo, ceifado de sua saúde e qualidade vida, por estar de alguma forma perdendo parte de sua liberdade, da garantia de exercer seu labor, prover rendimentos, ir e vir.

Assim, a vertente da dimensão objetiva dos direitos fundamentais, constitui verdadeiros mandatos constitucionais, que criam deveres aos poderes legislativo e executivo, mas que implica na leitura da dimensão subjetiva, que tutela a individualidade e a subjetividade de direitos, colocando o Estado no papel de inter-relacionar à luz da “coletividade” e do “politicamente possível”[13].

Por outro lado, os direitos positivos, que provocam o Estado a realizar algo, ou promover o acesso a tal bem, ou bens, também incluem um direito negativo[14] de não romper a promoção de tal direito já garantido, mesmo que não incorporem o núcleo subjetivo do indivíduo, garantindo o “acesso a um bem material social, um direito social, portanto, independentemente de a garantia do acesso ser estruturalmente assegurada através de um direito positivo ou de um direito negativo”[15].

Ser um direito fundamental significa que, como defende Jorge Reis Novais, “os bens, posições ou situações tutelados” como direitos fundamentais, fogem da esfera da “disponibilidade decisória do poder político democrático”[16], assumindo a sua proteção e garantia, em última análise, o poder judicial. O autor conclui que um modelo constitucionalmente adequado de relevância jurídico-constitucional dos direitos sociais deve corresponder a duas premissas: a) “ser um modelo de garantia de direitos fundamentais, numa dogmática una, porque decorre da natureza de garantias jurídicas que apresentam essa característica única, identificadora, de serem garantias jusfundamentais”; b) apresentar “diferenciações exigidas pela especificidade das reservas que, atendendo à natureza da dimensão particular do direito fundamental invocável no caso concreto, devam aí ser ativadas”[17].

Em coerência, não podemos conceber uma dimensão axiológica diferente aos direitos sociais, como direitos de segundo grau, defendendo Rui Medeiros que a consagração da liberdade, “não apenas perante o Estado, mas também através do Estado, tem sentido afirmar a indivisibilidade dos direitos fundamentais”[18].

Embora se defenda a conformação do legislador na efetivação do direito social, não em uma compreensão desmensurada da liberdade de conformação, o reconhecimento dos direitos sociais como direitos fundamentais, precisamente pelos modelos democráticos das constituições em estudo, não saneia a discussão da dogmática de tal reconhecimento constitucional, necessitando saber suas consequências e diversos entendimentos. Porque, embora consagrados, a ideia de unidade de compromisso[19] passa pelas diferenças de proteção ofertadas às liberdades e garantias, que se mostram mais robustas que a proteção aos direitos sociais, em especial na doutrina portuguesa que não garante efetividade imediata a direitos fundamentais sociais.

 

 

Notas e Referências

[1]  MEDEIROS, Rui; MIRANDA, Jorge. Constituição Portuguesa. 2. Ed. Coimbra: Editora Coimbra, 2014, Tomo I, p. 208.

[2] CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional: Teoria da Constituição, 7 ed. Coimbra: Almedina, 2003, p. 417. Sobre os “sentidos da universalidade”: João Carlos Loureiro, em: Adeus ao Estado Social?... define universalidade num sentido restrito, que limita aos portugueses o seu exercício (art.12,º/1), e sentido amplo, acolhido pela Constituição no art.15.º/1 (LOUREIRO, 2010, p. 202-203).

[3] No Brasil, no âmbito da Justiça Federal, a mesma já se confrontou com o acesso à saúde de indivíduos estrangeiros, residentes em situação irregular, que à luz do art.5º da Constituição Federal, o estrangeiro, mesmo irregular, a ele não pode ser colocado regime diferenciado, bastando estar sob a ordem jurídico-constitucional brasileira, possuindo assim as mesmas garantias de acesso ao serviço público de saúde (TRF 4ª Região, AG 2005040132106/PR, j. 29/8/2006). No âmbito da União Europeia e do Tribunal Europeu de Direitos do Homem, o mesmo já decidiu pelo acesso a serviços de saúde emergenciais, como se observa dos julgados Caso de N. v. The United Kingdom (Reclamação n°26565/05 – Julgamento 27 maio 2008) e Caso de Milian Furdík v Eslováquia (Pedido nº 42994/05 – Julgamento 02 de dezembro de 2008).

[4] Canotilho leciona que “a ideia dos ‘direitos do homem’ não proíbe que o legislador constituinte conforme os ‘seus direitos fundamentais’ através da sua ‘constituição’, mas a base antropológica dos direitos do homem ‘proíbe’ a aniquilação dos direitos dos outros homens – os estrangeiros ou apátridas -, designadamente quando essa ‘aniquilação’ equivale à violação dos ‘limites últimos da justiça’. Acresce que a diferenciação entre ‘direitos dos portugueses’ e ‘direito de todos’ pressupõe sempre uma justificação ou fundamento material, não devendo esquecer-se o relevo dos standards mínimos fixados pelo direito internacional relativamente à determinação deste fundamento material” (CANOTILHO,2003, p. 418-419).

[5] BOTELHO, Catarina Santos. Os Direitos Sociais em tempos de crise: o repensar das normas programáticas. Coimbra: Almedina, 2015, p. 129.

[6] No mesmo sentido, SARLET, Ingo Wolfang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 12 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015, p. 216-217. Assim, sob pena de alargarmos o tema, que por si só permite uma profunda análise sobre diversos vetores, a construção da igualdade na teoria dos direitos fundamentais é vigorosamente detalhada por Suzana Tavares da Silva (Direitos Fundamentais na Arena Global, 2 ed. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2014, p. 75-79), onde a doutrina do princípio da igualdade trabalha a partir da resposta a três questões: i) igualdade entre o quê?; ii) igualdade entre quem?; iii) por que a igualdade? Assim, desenvolve dentro das diversas ideias de igualdade (liberais, utilitaristas) as sociais, que “acreditam que a igualdade envolve proporcionar a todos um nível de bem-estar, o que suscita dificuldade se esse bem-estar for interpretado como preferências individuais, mas também quando estamos a trabalhar com a igualdade de oportunidades pois se a igualdade for para assegurar as oportunidades, o favorecimento a quem está em situação desigual (ex. deficiente) não deverá depender de uma condição de recursos, o que dificulta a gestão eficiente da escassez.” Avança a autora quando do conceito de igualdade proporcional sustentável, quando do núcleo da distribuição de recursos e da perspectiva geracional.

[7]  MEDEIROS; MIRANDA, 2014, p. 208-209.

[8]  SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais, São Paulo: Malheiros Editores, 2005, p. 286-287.

[9] A unidade de sentido do sistema dos direitos fundamentais está baseada na ideia da dignidade da pessoa humana; todavia, não é o suficiente para resolver completamente a ideia de unidade de sentido, uma vez que a ideia é suscetível de entendimentos diversos (ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. 2. Ed. Coimbra: Almedina, 2012, p. 93).

[10] Os direitos fundamentais são direitos complexos, com uma dimensão positiva e outra negativa; todos os direitos acarretam custos, e não apenas os direitos sociais, especialmente na sua dimensão positiva; uns são direitos individuais, outros são coletivos, por deles terem um cariz universal, outros são específicos (SAMPAIO, Jorge Silva. O controlo jurisdicional das políticas públicas de direitos sociais. Coimbra: Coimbra Editora, 2014, p. 230).

[11]  Ibidem, p. 222-223.

[12]  Ibidem.

[13] O princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, que dá base à unidade dos direitos fundamentais, há de ser interpretado como referido a cada pessoa (individual), a todas as pessoas sem discriminação (universal) e a cada homem como ser autônomo (livre) (ANDRADE, op. cit., p. 97).

[14] Novais (NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Sociais: teoria jurídica dos direitos sociais enquanto direitos fundamentais. Coimbra: Editora Coimbra, 2010, p. 282-301) trata com primazia, sob a ótica unitária dos direitos fundamentais, a construção do direito negativo e direito positivo. Assevera o autor que ocorre “uma identificação dos deveres de proteção e dos deveres de promoção com direitos positivos, no sentido de que tais deveres se consumariam através de actuações ou prestações positivas do Estado, normativas ou fácticas. No entanto, não sendo errada, tal identificação não é rigorosa, já que tanto um quanto outro dever estatal – de proteção e de promoção do acesso individual a bens jusfundamentalmente protegidos – se realizam também através de ações negativas, de omissões, logo, como contrapartida estruturalmente associada a direitos negativos” (NOVAIS, 2010, p. 283).

[15] Ibidem, p. 63.

[16] Rui Medeiros defende que existam direitos dependentes da vontade política do Estado e direitos dependentes de fatores em que o Estado em grande parte não domina, o que estaria sob a regra da reserva do possível (MEDEIROS, Rui. Direitos, Liberdades e Garantias e Direitos Sociais: Entre a unidade e a diversidade. In: _______. Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Sérvulo Correia, Coimbra: Editora Coimbra, 2010, p. 662. Tomo I).

[17] NOVAIS, p. 254.

[18] MEDEIROS, 2010, p. 661.

[19] ANDRADE, 2012, p. 94.

 

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