A tutela jurídica à identidade do transexual e o seu reconhecimento como um sujeito de direito das famílias

22/02/2016

Por Guilherme Wunsch – 22/02/2016

O Direito, enquanto tutela dos fatos sociais, busca responder aos anseios da sociedade. Assim, se a sociedade dá as costas aos assuntos da sexualidade, o Direito assim o faz, pois haveria legitimidade para tanto. Entretanto, sexualidade e Direito estão umbilicalmente ligados, haja vista que as questões de Direito de Família perpassam pela sexualidade, não como um elemento formador de família, mas como um elemento presente em determinadas relações familiares.

Elimar Szaniawski alude que o sexo biológico consiste “no aspecto físico do indivíduo que lhe determina o fenótipo”[1]. Ou seja, é o sexo biológico aquele que decorre das características corporais da pessoa. O sexo endócrino divide-se em sexo gonadal e extragonadal. O gonadal é identificado pelas glândulas sexuais do homem e da mulher destinados à produção de hormônios. Já o sexo extragonadal é constituído de outras glândulas que atribuem aos indivíduos outras características de masculinidade ou feminilidade.

Ainda, o sexo morfológico corresponde à forma ou aparência de um indivíduo no que diz respeito ao sei aspecto genital, ou seja, a designação de homem ou de mulher. O sexo psíquico é aquele cujas características são descritas a partir das reações psicológicas do indivíduo a partir de determinados estímulos. Essa tipologia corresponde ao papel do gênero que expressa a identidade da pessoa, de modo que a sua conduta está ligada diretamente ao seu psiquismo.[2]

O sexo civil, também denominado de jurídico, é a determinação do sexo de uma pessoa a partir de sua vida civil, ou seja, de acordo com as suas relações sociais, as quais, então, identificam esse sexo civil. O sexo jurídico tem início a partir da realização do registro de nascimento da criança, quando ocorre a designação do seu sexo, a partir de seu sexo morfológico externo.

Ana Paula Ariston Barion Peres apresenta uma tipologia que não havia sido trabalhada por Elimar Szaniawski. Para esta autora, o sexo de criação, o qual se vincula ao meio em que a criança se desenvolve. A formação do sexo de criação é então responsabilidade das pessoas que estão ligadas direta ou indiretamente ao desenvolvimento da criança, como, por exemplo, os pais, os familiares, educadores, entre outros.

O sexo psicossocial é o resultante das interações genéticas, fisiológicas e psicológicas que se formam dentro da atmosfera social e cultural. Na verdade, corresponde ao sexo psicológico, pois é a partir da ação integrada dos elementos descritos que irá se forma a identidade de gênero da pessoa.[3]

Ocorre que a sexualidade humana pode apresentar por vezes determinadas perturbações ou disfunções, conhecidas como anomalias sexuais, como o bissexualismo, o travestismo, o intersexualismo, o hermafroditismo e o transexualismo. Assim como nos diversos tipos de acepções da palavra sexo, a doutrina possui diferentes definições para as sexopatias.

A disforia de gênero ou o distúrbio de identidade de gênero significa o constante sentimento de infelicidade pelo indivíduo com relação ao seu sexo biológico e pode culminar com o desenvolvimento de quadros depressivos, bem como tentativas de mutilação ou suicídio.[4] Assim para se diagnosticar o transexualismo deve haver a presença constante de tal disforia, sendo que a presença única de tal distúrbio não é capaz de diagnosticar o transexualismo, pelos critérios clínicos. Neste sentido, são as palavras de Silvério Oliveira: "entendemos por disforia de gênero ao indivíduo que não se sente adaptado ou à vontade dentro do papel sexual destinado ao seu gênero (masculino ou feminino). No entanto, em várias épocas da vida de um indivíduo este pode passar por momentos de inadaptação e momentâneo desejo de ser do outro sexo, tal é o caso do indivíduo que gostaria de ser do outro sexo em virtude de supostas vantagens que obteria com tal. No diagnóstico do transexualismo cabe atentar que o indivíduo não deseja pertencer ao sexo oposto ao seu em virtude de supostas vantagens sociais. Se os motivos estão vinculados a vantagens sociais, familiares, financeiras ou outras semelhantes não cabe o diagnóstico de transexualismo e sim de momentânea disforia de gênero."[5]

No transexualismo há uma constante disfunção do gênero, onde não se visa obter alguma espécie de lucro em troca de sexo, mas sim a integridade física e psicológica, ao passo que o indivíduo sente-se presente num corpo de mulher como se homem fosse ou um homem como se mulher fosse. Isso porque o sexo do indivíduo, enquanto gênero, abarca apenas duas possibilidades: masculino e feminino, todavia, a forma como a pessoa utiliza cognitivamente esse sexo, relacionando-se emocionalmente com as pessoas é que se apresenta com uma multiplicidade de formas.[6]

No contexto da sexualidade o debate não pode pautar-se apenas sob o aspecto do que é normatizado, pois o Estado não exerce mais um papel de controle sobre a constituição das formas de famílias. É, na verdade, uma ruptura do paradigma masculinizado em que a família assentava-se classicamente, como quebra da idéia do patriarcalismo. A família e o casamento sofrem transformações a partir de seus fundamentos: a divisão sexual do trabalho e a dicotomia do público e doméstico passam a constituir áreas de conflito na busca de uma igualdade de direitos.

Neste sentido, havendo essa ruptura da ideia da identidade da família estar centrada na figura masculina é que se embasa a justificação do reconhecimento da orientação do transexual, como sujeito de direito cuja identidade biológica é dissonante de sua identidade psíquica. Sobre a questão da identidade Fachin afirma que “o ponto de partida desta abordagem, contextualizada no Brasil, se funda na ideia da autodeterminação superando as portas cerradas de suposto assunto proibido e vencendo antigo e pretenso dogma que impunha um silêncio hipócrita”.[7]

Neste quadro, é que se propõe questionar qual é a nova realidade que o Direito Civil e o próprio Direito de Família perpassam ao se considerar a abertura do ordenamento jurídico, como um caminho de superação da lógica reducionista, fechada, cartesiana, a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988. Ainda, é preciso indagar se nesta família contemporânea, há espaço para novos sujeitos de direito das famílias, num aspecto pluralista de formas familiares, dentre os quais também enquadra-se o transexual.

Traz-se à luz a reflexão de Fachin acerca das transformações conceituais do Direito Civil, a partir de uma perspectiva crítica. Nas suas palavras: "a transformação de paradigmas supõe riscos e possibilidades. As dificuldades advêm da força de permanência dos significados e dos saberes pretensamente perenes dos significantes. Outros horizontes podem ser captados para compreender o novo Direito Civil, até mesmo a palavra muda. Uma alteração expressiva é rejeitar as definições sempre exatas e pretensamente verdadeiras."[8]

Neste sentido, há uma nova seara comportamental dos três pilares do direito civil, que passam a considerar o sujeito em família, que se insere em um sistema jurídico, que busca definir um sujeito para um conjunto de objetos, pelo que o Direito Privado assume um papel de classificação dos fatos que a ele interessam, albergando-os, no sistema como fatos jurídicos. No caso do Direito de Família percebe-se que anteriormente as características que definiam a família abrem espaço para novas configurações. Assim, o que antes se chamava de família matrimonializada, hierarquizada, patriarcal e de feição transpessoal acaba por ser substituída pela pluralidade familiar, a igualdade substancial a direção diárquica, onde os laços constituem-se pelo afeto, a fim da realização e felicidade da família, no modelo eudemonista, portanto.[9]

Nesta seara, ser família contemporaneamente é entender a pessoa como um sujeito de direito, com liberdade de construir, manter e dissolver a sua relação, pois a família é o espaço de realização pessoal e da dignidade humana de seus membros. Ou seja, a repersonalização das relações familiares é um processo que revaloriza a dignidade humana, onde o afeto desponta como elemento nuclear definidor da família, colocando a pessoa como figura central da tutela jurídica, ao contrário do individualismo da propriedade, baluarte da época da codificação.[10]

Portanto, a nova feição familiar caracteriza-se pela pluralidade e abertura multifacetária e democrática, onde, não apenas deve haver o espaço de reconhecimento, mas sim a efetiva proteção, consoante o caput do artigo 226 da Constituição Federal, o qual prevê ser a família a entidade protegida pelo Estado, predominando o modelo eudemonista[11] de família, como o local privilegiado para garantir a dignidade humana e realização plena do ser humano.[12] Neste sentido, em que a família passa a assumir novos contornos na sociedade plural, Pietro Perlingieri afirma que a família como formação social é garantida em função da realização das exigências humanas, como lugar onde se desenvolve a pessoa.[13] Para o autor, “o sangue e os afetos são razões autônomas de justificação para o momento constitutivo da família, mas o perfil consensual e a affectio constante e espontânea exercem cada vez mais o papel de denominador comum de qualquer núcleo familiar”. Desta forma, a função serviente da família deve ser realizada de forma integrada na sociedade, merecendo tutela em nome do princípio da dignidade, da igualdade e da democracia.

É possível inferir, então, que, hodiernamente, a noção de sexo compreende não apenas o aspecto biológico e morfológico, mas sim outros fatores como o social e o psíquico, e a questão de gênero, por exemplo, conforme abordado. Vedar o direito de redesignação do estado sexual significa uma quase chancela com os modos clandestinos utilizados, por meio de automutilações, por exemplo, ou, em casos mais graves, o próprio suicídio.

Em outras palavras, a impossibilidade de redesignação da identidade sexual contraria o próprio princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, erigido pela Constituição Federal de 1988. É em nome da dignidade da pessoa humana que deve, desta forma, ser autorizado o procedimento cirúrgico, como forma de garantir a defesa desta dignidade, e reconhecido os seus reflexos jurídicos.

O Direito, neste sentido, abre espaço para novos sujeitos, e, a partir da Constituição Federal de 1988 com a eleição da dignidade da pessoa humana como princípio norteador do ordenamento jurídico, todos estes acabam por merecer a tutela jurídica de seus interesses. Não à toa, a Constituição Federal de 1988 dedicou o seu artigo 226 à proteção da família enquanto base da sociedade, a qual possui proteção especial do Estado. Portanto, é papel não apenas do Direito, mas sim de toda a sociedade salvaguardar que o indivíduo possua a sua identificação com determinada forma familiar, uma vez que a sua integração nas relações sociais se dá também a partir da sua formação em família, inclusive na própria personalidade.


Notas e Referências:

[1] SZANIAWSKI, Elimar. Limites e possibilidades do direito de redesignação do estado sexual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1998.  p.36.

[2]  SZANIAWSKI, Elimar. Limites e possibilidades do direito de redesignação do estado sexual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1998.  p.38.

[3] PERES, Ana Paula Ariston Barion. Transexualismo – o direito a uma nova identidade sexual. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p.85.

[4] PERES, Ana Paula Ariston Barion. Transexualismo – o direito a uma nova identidade sexual. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 58 e seguintes.

[5] OLIVEIRA, Silvério da Costa. O psicólogo clínico e o problema da transexualidade. Revista SEFLU. Rio de Janeiro: Faculdade de Ciências Médicas e Paramédicas Fluminense, ano 1, nº 2, Dez. 200. p.9.

[6] OLIVEIRA, Silvério da Costa. O psicólogo clínico e o problema da transexualidade. Revista SEFLU. Rio de Janeiro: Faculdade de Ciências Médicas e Paramédicas Fluminense, ano 1, nº 2, Dez. 2001. p. 9-10.

[7] FACHIN, Luiz Edson. Direito de Família: elementos críticos à luz do novo Código Civil Brasileiro. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 120.

[8] FACHIN, Luiz Edson. Teoria Crítica do Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p.175.

[9] FACHIN, Luiz Edson. Direito de Família: elementos críticos à luz do novo Código Civil Brasileiro. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p.39.

[10] LÔBO, Paulo Luiz Netto. A repersonalização das relações de família. IN: ARAÚJO, Luís Ivani de Amorin e DEL’OMO Florisbal de Souza (org.). Direito de Família contemporâneo e os novos direitos. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p.99-114.

[11] CARDOSO, Simone Tassinari. Do contrato parental à socioafetividade. IN: ARONNE, Ricardo. Estudos de Direito Civil-Constitucional Volume 2. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. p.104.

[12] FARIAS, Cristiano Chaves de. Escritos de Direito de Família. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p.12.

[13] PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil. 3ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p.244.


Guilherme WunschGuilherme Wunsch é formado pelo Centro Universitário Metodista IPA, de Porto Alegre, Mestre em Direito pela Unisinos e Doutorando em Direito pela Unisinos. Durante 5 anos (2010-2015) fui assessor jurídico da Procuradoria-Geral do Município de Canoas. Atualmente, sou advogado do Programa de Práticas Sociojurídicas – PRASJUR, da Unisinos, em São Leopoldo/RS; professor da UNISINOS; professor da UNIRITTER e professor convidado dos cursos de especialização da FADERGS, FACOS, FACENSA E IDC.


Imagem Ilustrativa do Post: Parada Równości 2009 / Warsaw Pride 2009 // Foto de: Jakub Szestowicki // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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