A TUTELA INIBITÓRIA É SATISFATIVA? PRIMEIRÍSSIMAS CONSIDERAÇÕES

17/09/2019

Em nossos comentários aos arts. 294-299, CPC[1], eu e Marco Paulo Denucci di Spirito, muito por intuição, ousamos discordar da ideia, deveras consagrada, que sustenta ter a tutela inibitória natureza satisfativa. Mais, em contraposição às formas de tutela deste último tipo, pusemos a categoria tutela preventiva.

Trata-se de uma classificação baseada na função da tutela. Sabendo que esta última refere-se a direitos ou outras situações juridicamente tuteláveis[2], a tutela é de tipo satisfativo se, por ela, obtém-se a realização do direito; no entanto, se por ela se tem o impedimento de algum tipo de lesão a direito, a função preventiva ressalta.

Aventamos, ademais, que a tutela preventiva pode ser classificada a partir dos requisitos necessários à sua concessão, de modo que estabelecemos três tipos: a cautelar, a preventiva pura e a inibitória[3]. As duas primeiras são baseadas no dano[4]; a última, totalmente desvinculada dele, refere-se apenas ao problema da ilicitude.

Por óbvio, não constitui novidade alguma entender como preventiva a tutela inibitória. Isso, como se sabe, vem sendo ressaltando há mais de 20 anos por Luiz Guilherme Marinoni, muito a partir de determinada doutrina italiana (Adolfo di Majo e Cristina Rapisarda), tendo essa ideia ressoado sobremaneira na processualística brasileira.

O diferencial de nossa colocação é o fato de colocarmos a inibitória em contraposição à ideia de satisfação. Em geral, são contrapostas pela doutrina a tutela satisfativa e a cautelar. No nosso entender, como dito acima, não apenas a última, mas todas que sejam preventivas devem assim sê-lo.    

Agora, pretendemos trazer mais argumentos para tanto. Desse modo, apresentamos um aperfeiçoamento do que antes defendemos.

 

Premissa necessária: tutela inibitória como atividade contra o ilícito

Neste texto, como já dantes fizemos, partimos da ideia de que o signo linguístico tutela inibitória serve para designar a atividade (no caso, judicial) contra a possibilidade de ocorrência de um ilícito. Nela, portanto, deve ser afastada qualquer referência à questão do dano.

Sinteticamente, dano é consequência possível de eventos dos mais diversos, sejam humanos ou não humanos. Esses eventos são a causa eficiente do dano. Nem todo ele, porém, é relevante para o direito. O dano, em verdade, pode ser elemento de suportes fáticos dos mais variados. Exemplos: i) no art. 186, CC, o dano é elemento do suporte fático do ato jurídico ilícito do dever de indenizar; ii) na hipótese do inciso V do art. 23 c/c inciso II do art. 9º., Lei n. 8.245/91, o dano é causa do desfazimento do contrato de locação, algo que enseja ao locatário o dever de restituir a coisa locada.

O dano, além disso, pode ser juridicamente relevante mesmo quando advindo de um agir lícito. É o que se tem, por exemplo, na indenizabilidade oriunda de dano causado pelo agir em estado de necessidade (inciso II do art. 188, CC).

Não é do dano, tal como já externado, que nos ocuparemos neste texto.

O fato jurídico ilícito deve ser desvinculado do dano. Isso não só porque, como visto, este poder decorrer da atividade lícita, como também, e principalmente, pelo fato de nem todo ilícito ter por consequência o dano. O dano não compõe a estruturação básica (essência) do ilícito, sendo nele apenas um acidente.

Em todo ilícito há de se ter, ao menos, dois elementos: um objetivo, denominado contrariedade a direito; outro subjetivo, a imputabilidade. No primeiro caso, tem-se o descumprimento de um dever exigível[5]; no segundo, a vinculação disto a alguém. Os elementos da ilicitude variam conforme o tipo. Os de natureza criminal, por exemplo, exigem, além do básico, a culpa (e, em alguns tipos mais específicos, na modalidade dolo). Por óbvio, não é este texto o local adequado para esmiuçar os mais variados tipos de ilicitude. Fiquemos, pois, apenas com a estrutura básica.

O certo é que, por força constitucional (inciso XXXV do art. 5º.), a ilicitude pura e simples já é suficiente para ensejar a necessidade do agir estatal (tutela jurisdicional). Não seria, por óbvio, minimente coerente um sistema jurídico que, tendo o ilícito como algo ruim[6], não estabeleça mecanismos de atuação contra ele. Mais do que isso, a atuação deve também ocorrer para impedir a consumação do ilícito. Eis o locus da tutela inibitória. E isso é expressamente previsto no texto constitucional citado: “não se afastará do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.

Portanto, para se poder requerer a tutela inibitória basta a possibilidade de ocorrência de um agir ilícito.

Como se sabe, há três tipos dessa tutela, tendo eles a ver com o momento da ocorrência do ilícito: a) se ele ainda não ocorreu, fala-se em inibitória pura; b) se ele já ocorreu e pode voltar a ocorrer, em inibitória pela repetição; c) se ele está a ocorrer, inibitória pela continuação.   

 

Outra premissa necessária: por uma noção de satisfação

Por tutela satisfativa deve-se entender aquela que realiza o direito posto em discussão. Trata-se de uma definição simplíssima, porquanto seja a satisfatividade a essência do conceito de tutela jurisdicional. Ocorre que, estando a ideia de tutela estritamente atrelada à de direito (ou situação juridicamente tutelável que o valha), ao se verificar que há direitos que existem em função de outros, deve-se concluir que a tutela referente aos primeiros não pode ser a própria satisfação dos últimos; destes, ela é apenas um meio.

É o que acontece, por exemplo, com a tutela cautelar, na qual, já muito bem se sabe, há satisfação do direito à cautela para a asseguração do direito acautelado. Ora, como o primeiro se refere ao último, a tutela relativa àquele não tem como atuar diretamente neste.

Assim, quando se alude à ideia de tutela satisfativa, quer-se mencionar a tutela de um direito que exista independentemente de outro, que não tenha necessária referibilidade a nenhum outro; sendo não satisfativa uma tutela quando tal característica lhe for inerente.    

Dito isso, é indispensável entender o problema da satisfação no seu aspecto temporal.  

Neste sentido, os direitos podem ser realizados, basicamente, de duas formas: a) num determinado momento; b) em mais de um momento.

Neste último caso, tem-se a ideia de sucessividade na satisfação. Mas é preciso ir além. A sucessividade, por sua vez, pode ser em periodicidade ou em fluxo contínuo. No primeiro caso, embora ela não se dê de uma só vez, os momentos são determinados (e. g., dever de pagar parcelas de um financiamento). Há, aqui, o que se chama de solução de continuidade. Já no segundo caso, a satisfação se dá a todo momento, num verdadeiro fluxo contínuo. Em obrigações de não fazer este último caso é mais evidente[7], conquanto isso também possa ocorrer em obrigações positivas (v. g., dever da concessionária fornecer energia elétrica).

Para este texto, todavia, é relevante tão-somente saber se o direito tem um determinado momento para ser realizado (podendo ser em períodos) ou isso há de se dar em fluxo contínuo. 

Essa distinção impacta sobremaneira no problema da tutela inibitória.

 

A incompatibilidade da tutela inibitória com o sentido de satisfatividade acima colocado

Como já defendemos, o que torna a tutela inibitória não satisfativa é a ideia de referibilidade. Quando se presta a tutela inibitória, não se está a realizar o próprio direito em risco, mas sim outro, a quem chamamos de direito à inibição, modalidade de prevenção.

Ele é formado pelo seguinte composto: “o fato de um determinado direito ou de outra situação tutelável está por sofrer algum tipo de ameaça à sua integridade (lesão stricto sensu)”. Neste momento, o titular do direito (ou algum outro legitimado) passa a ter o direito a impedir a ocorrência da agressão ao seu direito. A estrutura é similar à da tutela cautelar, com a diferença de que nesta o que releva é a possibilidade de dano.

Quando se pleiteia a tutela inibitória não se quer a satisfação do direito a ser protegido; quer-se tão-só impedir a agressão. Isso fica muito evidente nos direitos de satisfação em fluxo contínuo.

Vejamos exemplos.

Num contrato de prestação de serviços que o contratado tem acesso a dados sigilosos do contratante, este, por óbvio, tem direito contra aquele à não divulgação de tais dados. Trata-se de um direito satisfazível em fluxo contínuo: enquanto não houver divulgação o direito vai sendo realizado. Se, por acaso, o contratado ameaça divulgar os dados, tem-se uma situação nova. O contratante passa a titularizar outro direito, o referente ao impedimento da quebra do fluxo contínuo. Observe-se, o direito a não divulgação dos dados está sendo, em continuidade, satisfeito; deixará de sê-lo caso venha a ocorrer a divulgação, de modo que a tutela inibitória é um mecanismo de garantia da satisfação, e não a própria.

Uma concessionária tem de fornecer energia elétrica aos seus contraentes em cumprimento a dever de fluxo contínuo. Logo, o direito deles é realizável a todo o momento em que não houver interrupção do fornecimento. Caso um deles esteja a sofrer ameaça, derivada de cobrança indevida, de corte no fornecimento, nasce para ele o direito à inibição, o que, no caso, consiste que, por alguma medida, se impeça o corte. Mais uma vez, fica claro que a inibitória não tem a ver diretamente com a satisfação do direito.

O problema ganha contornos mais complexos quando se está diante de direitos de realização em determinado marco temporal.

Partamos de um exemplo.

Suponha-se que, por força de uma compra e venda, Marco deva entregar o cavalo X a Roberto. Este, por meio de testemunhas, toma ciência de que a entrega não será realizada na data aprazada, pois, inadvertidamente, Marco vendeu, numa data posterior, o mesmo animal a Eduardo. Diante disso, o que resta a Roberto? Seu direito a receber o animal está na iminência de ser lesado. Caso houvesse algum risco ao animal ou à obtenção da posse dele, poderia o comprador pleitear o sequestro. Aqui, porém, o elemento risco de dano ao direito, referente às aludidas vicissitudes, teria de ser demonstrado. Não se trataria de uma tutela inibitória, portanto.

Caso, de outro modo, Roberto, por força da possibilidade do inadimplemento, viesse a pedir, de logo, a condenação do vendedor a entregar o animal, ter-se-ia, em verdade, uma condenação antecipada por força do inadimplemento possível, algo que só se legitima diante de regras que, como as previstas no art. 333, CC, estabeleçam o vencimento antecipado da dívida. Essa condenação nada teria a ver com uma tutela inibitória, sendo relativa à própria tutela referente à execução contratual.      

Se, porém, Roberto pleiteasse, de logo, não a condenação para a entrega da coisa, mas sim uma “simples” emissão de uma ordem para que, no dia aprazado, a coisa não seja entregue a Eduardo, estar-se-ia, dentro das possibilidades do caso, a fixar medida de natureza inibitória.    

Estão aí, portanto, tal como adiantado no título, as primeiríssimas considerações acerca do problema. Este texto – de perspectiva essencialmente analítica – pode se tornar um começo para maiores reflexões sobre. Assim o esperamos, mormente para críticas e ponderações que se fizerem necessárias.

 

Notas e Referências

[1] Novo Código de Processo Civil Comentado da Editora LUALRI.

[2] Caso da posse, que não é direito subjetivo mas tem amplíssima proteção jurídica.

[3] Essa classificação, posto que tenha relevância prática e alguma higidez analítica, precisa ser mais bem ordenada. Em rigor, pelo que entendo hoje, a chamada preventiva pura não é um tipo autônomo, mas sim uma possibilidade dentro dos dois outros. Deixo aqui a possibilidade de um texto que deverá se chamar: entre a inibição e a garantia, o problema da tutela preventiva dos direitos, no qual retornarei, com pretensão de maior analiticidade, à temática.

[4] Tendo por dano como aquilo que é diminutivo da esfera jurídica de alguém, seja o lado patrimonial ou não patrimonial dela.

[5] Somente podem ser descumpridos os deveres exigíveis; o inexigível não é dotado de obrigatoriedade, seja porque perdeu (caso das dívidas prescritas), seja porque sequer pode tê-lo (como nas dívidas de jogo). O dever inexigível contém mera faculdade, cuja observância, é claro, não pode ser imposta. Em rigor, descumprir dever inexigível é expressão pleonástica, já que a exigibilidade é verdadeira condição de possibilidade do descumprimento (ilicitude). No entanto, utilizamo-la acima dada sua força retórica.     

[6] Ilícito é aquilo que o sistema jurídico, por seu código binário, tem como indesejável. Daí se dizer (Pontes de Miranda) que o juízo de condenação é de reprovação pelo agir ilícito.

[7] Embora seja possível falar em obrigação de não fazer de punctualidade (posicionadas no tempo), como a do contribuinte de não criar óbices ao ato fiscalizatório.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Deusa da Justiça // Foto de: pixel2013 // Sem alterações

Disponível em: https://pixabay.com/pt/photos/justitia-deusa-deusa-da-justi%C3%A7a-2597016/

Licença de uso: https://creativecommons.org/publicdomain/mark/2.0/

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura