A TRIVIALIZAÇÃO DA ILEGALIDADE

22/06/2019

Transparece no Brasil que há atores na esfera pública que ainda não distinguem - ou não querem distinguir - as consequências jurídicas e políticas das ações que realizam e o problema concreto das justificações necessárias que em um Estado de Direito precisam ter suas decisões. O resultado disso: a tentativa de trivializar tanto ações, quanto as decisões e as consequências.   

Entretanto, para quem assume a necessidade de estabelecer um pano de fundo a todo aquilo que a realidade quotidiana nos apresenta - uma procura sempre angustiante de contextualizar detalhes da dinâmica da vida – a modesta sugestão é partir da premissa de que estamos na etapa em que se pretende, e com força incomum, consagrar na pós-modernidade da periferia – ou melhor: pós-verdade irresponsável para países dependentes -  incluindo o Brasil, é claro, a visão de um suposto Direito “neutral”, que na verdade perpetua as relações econômicas sob a aparência de uma igualdade formal que coexiste com a desigualdade substancial dos que nada possuem. [1]   

Do econômico-social, que implica uma forma de compreensão do Direito na qual não avançaremos, [2] nos deteremos em algo curioso e a nosso juízo dramático e que consiste que nesse marco tem surgido uma espécie de neofuncionalismo penal – que não pelo de neo é necessariamente “novo” – que incide diretamente sobre as categorias da culpabilidade e da pena, que não suporta os enquadramentos das constituições da pós-guerra, fundadas na supremacia da vontade do constituinte, na força vinculante e normativa de um texto supremo, da rigidez constitucional, do controle de constitucionalidade, da aplicação direta das normas constitucionais, e sobretudo e ante tudo, que formalizou e não mais deixou entrever, senão que escancarou, da pior forma e pela via judicial, que a Justiça como experiencia vital pode ser reduzida a uma manifestação de poder distante das valorações jurídicas.  

Como alerta Zagrebelsky, a fórmula tautológica e vazia atribuída a Ulpiano unicuique suum, é precisamente assim – tautológica e vazia - porque deixa indeterminado o que é decisivo, a noção de suum - o que é seu -, que faz que qualquer um possa se apropriar dela. Mas que uma fórmula da justiça, é uma máxima de poder. [3]  Destarte, no Brasil, a visão de Direito para a desigualdade, com argumentos com os quais pretende permanecer a salvo de conteúdos historicamente determinados, reformatou o processo penal a partir do desconhecimento da presunção de inocência estampada no 5º, LVII da Carta de 1988.  A “maioria”, construída sob o argumento do respeito à colegialidade  na Corte Constitucional, deu a estocada final numa vertente de pensamento jurídico que em certo momento identificou, nos pressupostos daquilo que se convencionou em chamar de neoconstitucionalismo, uma forma positiva de encarar a realidade jurídica brasileira a partir de um método de análise do Direito fundado em princípios.

Paradoxalmente, o “neoconstitucionalismo à brasileira” que teve em Luís Roberto Barroso um de seus arautos, expondo a superação do Velho Brasil por novos marcos – histórico, filosófico e jurídico -, estampou não uma revolução profunda e silenciosa, mas uma aberta e escandalosa involução a partir do papel criativo dos juízes e tribunais. [4]  

Afirmamos isso porque uma vez sobreinterpretada a Constituição como documento de valores e fins, naquele caso, o HC 152.752/PR- a “maioria” invalidou os materiais normativos contrastantes com esses valores e fins. E logo depois vieram outras questões, como a instauração de inquérito de ofício pelo Supremo Tribunal. Contudo, o que mais chama a atenção é o ambiente que denuncia a intenção perigosa da busca, com palavras carregadas de significação como corrupção e impunidade, de dar legitimidade teórico-prática a um Direito penal autoritário.   

Nessa “nova onda”, o conceito de pessoa já não mais identifica um sujeito universal titular de direitos, senão uma construção comunicativa que separa valorações entre as pessoas – os amigos – e as não pessoas – os inimigos. [5] Em consequência, o juiz não pretende nem deseja resolver os conflitos a partir do reconhecimento do sujeito como pessoa ao qual lhe correspondem garantias diante da atividade persecutória do Estado. Claramente, a consequência é uma incongruência, posto que se o Direito construído  a partir da Constituição é o terreno no qual devem ser resolvidos os conflitos, a nova onda converte a seus arautos, sejam juízes, procuradores, advogados, em ignorantes ou omissos diante da essência do próprio Direito e da  Constituição da qual emanam suas atribuições.

Como diz Barcellona, para neutralizar os conflitos sociais e os verdadeiros fundamentos do Direito não lhes resta alternativa, nem há outro remédio, “que o abandono dos critérios de legitimação externos ao Direito e sua substituição pelo autoreconhecimento normativo que encontra em si próprio o fundamento para suas próprias regras” [6]

Para legitimar essa autoreferencia da prática inconstitucional e ilegal, na contramão dos moldes do Estado liberal-social contemporâneo e a muito custo conquistado, os atores devem arregimentar desculpas suficientemente convincentes para um sistema jurídico que funcione sem sujeitos e um sistema social que funcione sem democracia. No caso brasileiro os dois sistemas foram fraturados de maneira grotesca para instalar um sistema hobbesiano, de todos contra todos, que pretende ser arbitrado pela força das armas, a julgar pelas intenções e declarações governamentais.  

No contexto, a proteção da propriedade privada, do conceito tradicional de família moldada há séculos, a liberalização dos mercados, supõe uma necessária abstração do Direito e seus postulados garantistas para infundir outra expectativa de conduta institucionalizada. Na lógica colocada, tudo pode ser justificado pelo combate à corrupção, palavra repetida, usada arbitrária e indiscriminadamente, carregada de força suficiente para incutir no inconsciente coletivo a ideia de que defender as formas do Direito constituem o juridiqués, numa proposta implícita de que o fim justifica qualquer meio, anulando a crítica. A imposição da pena ao inimigo, ainda que com a redução das garantias, sem a prova cabal, cujo custo social é a redução do que resta do Direito, dos direitos das pessoas e da democracia, procura com ar de vitória fechar o círculo e, portanto, é decisão que não pode ser questionada, 

No terreno processual, e no caso da Operação Lava Jato, a união entre os atores se transformou na infidelidade ao Direito e na fidelidade a seus propósitos. As garantias processuais se perderam ao sabor de uma rede ou praça pública virtual de afirmações, sugestões, encaminhamentos e conexões disfuncionais, mas eloquentes e pragmáticas para atingir objetivos.

A ideia do membro do Ministério Público, que já partiu do esquecimento de ser função essencial à justiça nos termos do caput  do artigo 125 – defesa da ordem jurídica - e assumiu que está exclusivamente para o mister acusatório, e a ideia do Magistrado, que já partiu do esquecimento de ser membro de um corpo designado para receber a demanda de decisão justa, quando lesão ou ameaça ao direito – artigo 5º, XXXV da Carta de 1988 -, e assumiu que está para punir exemplarmente o inimigo,  foi calcular perigos, evitar riscos, imobilizar a defesa, conservar e reproduzir sua própria tese.

O diálogo, entre o membro do Ministério Público e o Juiz - aberto, clandestino, semiclandestino – sugere uma “técnica” penal que não permite restrição alguma do poder de atuação estatal e que, além disso, introduz no seio da consciência coletiva a necessidade de reproduzir a negação de uma ética para a verdade. Isto é, no mínimo, converter a dogmática jurídica em instrumento e cúmplice dos excessos do poder punitivo do Estado.

Não surpreende a banalização desse mal nem das perigosas relações para o Estado democrático por parte dos agenciadores desse modelo. Porém essa tentativa não pode fazer calar ou pretender incidir no comportamento de uma doutrina que não compactua com algo diferente à defesa irrestrita dos direitos das pessoas.

A atuação dos membros do Ministério Público e do Magistrado da época constitui o retrato em tempo real de algo preanunciado, a configuração de um Direito penal no qual estão ausentes os problemas jusfilosóficos e constitucionais da justiça e da ética, em cuja base se instaura um modelo de sociedade, que deveria, na imagem projetada dos mesmos agentes, acatar como natural o sórdido da prática que nega seus direitos.

A prática inconstitucional e ilegal repercute em todo o processo, impondo-se a nulidade dos atos nos quais houve quebra da paridade de armas - par condicio - ou equilíbrio de forças entre o Ministério Público atuante no caso e o acusado ou acusados.

Nada acontece por acaso, mas o pior dos problemas é tentar passar a ideia de que o Direito como fenómeno histórico não existe e que a sociedade é tão acrítica que pode suportar qualquer prática, por mais inconstitucional, ilegal ou desprovida de ética que esta possa ser.

  

Notas e Referências

[1] Portilla Contreras. Los excesos del formalismo jurídico neofuncionalista en el normativismo del derecho penal In Mutaciones de Leviatán. Madrid: Akal. 2005. P. 57-85.  

[2] Sugerimos o artigo de Alaor Caffé Alves As Raízes Sociais da Filosofia do Direito In O que é a filosofia do Direito. E. Bittar (org. ). São Paulo. Manole. 2004. Pp. 77-106.

[3] La exigencia de justicia. Trad: Miguel Carbonell. Madrid: Trotta. 2006. P. 21.   

[4] Luis Roberto Barroso. Curso de Direito Constitucional Contemporáneo. Saraiva. 2011. P. 267.

[5] Portilla Contreras. Pp. 66-67.

[6] P. Barcellona. Diritto senza societá. Dal disincanto all’indifferenza. Bari: Dedalo. 2003. P. 58

 

 

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

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