A triste realidade de um caso concreto

04/10/2015

Por Fernando Reis de Carvalho Peres - 04/10/2015

O eterno protagonismo de Ticio e Mévio, isto é, a angustiante manutenção do ideário liberal-individualista-burguês no senso comum teórico dos juristas, transforma boa parte dos direitos sociais e coletivos em entidades metafisicas. Diante deste quadro, a Constituição está condenada a ser uma folha de papel e suas promessas uma utopia. Neste cenário, a instrumentalização do direito visando a efetiva realização dos direitos fundamentais é um devaneio. Assim sendo, de nada adiantará a promulgação de um novo CPC, por exemplo, se a comunidade jurídica continuar dando as costas para a realidade. Dito de outro modo, a promulgação de um novo texto, por si só, não é capaz de promover o resgate das promessas da modernidade. O texto deve ser interpretado para produzir a norma, que, por sua vez, deve ser a adequada solução do caso concreto observando os compromissos do constitucionalismo vigente. Em suma, o novo CPC, sem dúvidas, traz um objetivo a ser cumprido: transformar o processo civil em um instrumento democrático compromissado com a efetividade dos direitos fundamentais. O texto já foi promulgado e agora resta, apenas, o equalizado trabalho hermenêutico dos interpretes/aplicadores para a produção da norma. O texto é novo e o interprete deve compreender esta novidade. Deve-se, pois, ver o novo como os olhos do novo. O grande problema é que grande parte dos juízes, aprisionados em um paradigma que deve ser ultrapassado, reluta em compreender a substância do novo CPC. O texto traz um caso concreto que tenta denunciar este fenômeno.

Juan, um idoso de 91 anos de idade, aposentado, morador da Tijuca, ajuizou ação em face de uma concessionária de serviço público em virtude de uma cobrança indevida. Melhor explico: O aposentado há anos recebe e paga contas de luz no valor médio de R$ 300,00. Ocorre que, em maio deste ano, o aposentado recebeu cobrança no importe de R$ 3.500,00 (três mil e quinhentos reais). Juan questionou a cobrança e a concessionária, por sua vez, insistiu tão somente em afirmar que a cobrança é devida.

O pagamento das contas sempre foi realizado através de débito automático. O aposentado recebeu o demonstrativo da cobrança na data do vencimento, logo, o banco não pode evitar o pagamento em comento. O valor da cobrança indevida é muito superior ao valor da aposentadoria percebida por Juan, sendo assim, o aposentado sequer consegue comprar seus medicamentos e fraldas geriátricas, pois, desde maio deste ano, em virtude da famigerada cobrança, o saldo bancário de Juan é negativo. O ajuizamento de ação tornou-se a única alternativa do pobre idoso.

A ação de Juan foi ajuizada e distribuída em uma das varas cíveis da Comarca da Capital do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Os pedidos da demanda eram: (i) gratuidade de justiça, (ii) prioridade na tramitação garantida pelo estatuto do idoso, (ii) tutela antecipada visando o imediato estorno da cobrança indevida, (iv) repetição de indébito, (v) indenização motivada pelos danos morais e (vi) condenação a pagamento de custas e honorários sucumbenciais.

Juan precisava de uma resposta urgente do Judiciário, que, lamentavelmente, em sua primeira decisão, sem qualquer fundamento, apenas se dignou a questionar os documentos que amparassem o pedido de gratuidade de justiça. O juiz pouco se importou com a urgência da tutela antecipada e apenas  exigiu que Juan apresentasse DIRPF e contracheque.

Juan explicou que, por ser idoso e aposentado, há muito não declara imposto de renda e sequer recebe contracheque. Assim sendo, seu único comprovante de renda era deveras seu extrato bancário, que por sinal, já estava juntado aos autos. Ademais, ressalta-se que não há melhor documento para comprovar a atual renda que o extrato bancário. Outrossim, alegou que o CNJ[1] já havia decidido pela inaplicabilidade da sumula 39[2] do TJRJ nos pedidos de gratuidade de justiça. Em poucas palavras, conforme art. 4º da lei 1060/50, não cabe ao judiciário questionar, impugnar e/ou impedir qualquer pedido de concessão de gratuidade, pois, tal carga processual pertence apenas a parte contrária. Afinal, para que serve a impugnação de gratuidade de justiça?

Insatisfeito com os argumentos do aposentado, o juiz, por mais 2 vezes, tornou a exigir documentos que comprovassem a situação de hipossuficiência.  Juan tão somente pode reiterar seus argumentos e demonstrar sua clara e evidente situação de miserabilidade, pois, como já dito,  trata-se de um idoso de 91 anos de idade, que por conta da cobrança indevida, sequer pode comprar seus medicamentos e fraldas geriátricas. Os argumentos de Juan não sensibilizaram o magistrado: o pedido de gratuidade de justiça foi indeferido. Cabe ressaltar que durante todo esse impasse concernente ao pedido de gratuidade de justiça, o magistrado em momento algum se dignou a apreciar o pedido de tutela antecipada e o mérito da demanda. Durante todo este período o pobre idoso tornou-se refém do decisionismo e da jurisprudência defensiva.

A decisão em apreço demonstra fenômenos presentes na dramática realidade do Judiciário do Rio de Janeiro, quais sejam: (i) grande parte dos juízes decidem sem sequer ler as petições e argumentos instados nos autos. Há, portanto, a resposta antes da pergunta. É dizer: se o juiz tivesse lido a peça exordial saberia que sua decisão era no mínimo impertinente, afinal, Juan é um idoso e aposentado, logo, há de muito não declara imposto de renda e tampouco recebe contracheque.  Ademais, não se deve olvidar que, no cenário democrático, o contraditório assume um sentido material, isto é, o jurisdicionado tem o direito fundamental  de participar nas construções das decisões judiciais  através da oitiva de seus argumentos. Os  juízes que decidem sem ler e apreciar  os argumentos das partes ajudam a transformar o projeto democrático em um mero simulacro ferindo de morte o direito fundamental ao contraditório e o direito fundamental a tutela jurisdicional efetiva; (ii) A inobservância ao dever de fundamentar consignado no inc. IX do art. 93 da CF. Tal ônus deve ser observado em todas as decisões judiciais. Tal dever, para alguns, transforma o novo CPC em um pesadelo. Veja-se que o magistrado em comento se dignou a apenas exigir a apresentação de documentos sem fazer alusão a qualquer fundamento. Na decisão que determinou o indeferimento do pedido de gratuidade não fez menção a qualquer argumento. Trata-se, pois, de uma imposição decorrente da subjetividade do julgador. Ele quer que seja assim e ponto final!!!; (iii) O descompromisso com a natureza instrumental do processo civil. A substância da Constituição Federal de 1988 promoveu o nascimento do Estado Democrático de Direito no Brasil, que, em suma, é sustentado por dois dogmas centrais: o respeito ao ideário democrático e a busca pela efetividade dos direitos fundamentais. Este núcleo substancial da Constituição torna-se um vinculante vetor hermenêutico na compreensão e aplicação de todo o ordenamento jurídico. O CPC/73 e o novo CPC devem ser interpretados de acordo com a Constituição. A tradição do Constitucionalismo Contemporâneo determina a penetração do instrumentalismo na dogmática do Direito processual Civil. Dito de outro modo: o processo civil tornou-se condição de possibilidade para a efetividade dos direitos fundamentais. O grande problema é que parte da comunidade jurídica, incluindo o magistrado do caso em comento, parece estar ainda imersa nas ultrapassadas lições de Chiovenda e Oscar Bullow, isto é, parecem compreender que o reconhecimento da autonomia do Direito processual Civil importa uma indiferença com o direito material. Veja-se que, no caso em comento, o magistrado não se importou em apreciar o pedido de tutela antecipada e o mérito. Havia uma única preocupação: o recolhimento de custas justificada por um formalismo injustificável.

Deuses e dizimo. Juízes e gratuidade de justiça.


Notas e Referências:

[1] julgamento  da PP 0002872-61.2013.2.00.0000 e os PCAs 0002680-31.2013.2.00.0000 e 0003018-05.2013.2.00.0000

[2] Nº. 39 "É facultado ao Juiz exigir que a parte comprove a insuficiência de recursos, para obter concessão do benefício da gratuidade de Justiça (art. 5º, inciso LXXIV, da CF), visto que a afirmação de pobreza goza apenas de presunção relativa de veracidade".


Fernando Reis de Carvalho Peres

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Fernando Reis de Carvalho Peres é Advogado. Mestrando em Direito. Pós-graduado em Direito Público. Pós-graduado em Direito Securitário.

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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