Fazendo uma breve retrospectiva histórica, é sabido por todos os processualistas e penalistas brasileiros o quanto foi difícil a luta ao longo dos anos para conseguirmos garantir proteção, ainda que mínima, ao sujeito acusado em uma ação penal.
Durante muito tempo imperou no Brasil o sistema Inquisitório, onde a confissão era vista como a rainha das provas, a qual era obtida por meio de instrumentos insidiosos como a tortura.
Levou anos para que o acusado deixasse de ser um mero instrumento/objeto ou ainda, um “pecador” para passar a ser sujeito de direitos e garantias.
Inicio meu artigo com esse apelo pois o autor Bernd Schunemann ao analisar o sistema norte americano e, a sua incorporação nos processos penais da Europa e da américa Latina, alega que esse sistema desagua no velho modelo do processo inquisitorial.
Segundo o autor[1], o Plea Bargain Norte Americano confere ao condenado a opção de declarar-se culpado no começo do processo, e assim, “causar sua própria condenação por parte do juízo, o qual não está obrigado a realizar nenhum exame adicional além da verificação de que a confissão da culpa sem os vícios do erro e da coerção.”
Em verdade, no sistema da common law, quando o acusado se declara culpado, não há a necessidade do processo, não precisa haver instrução, produção de provas, o sujeito é imediatamente sentenciado.
Essa forma de solução negociada possuí dois grandes atrativos: a rapidez e a celeridade.
Na doutrina comparada, a era da “barganha” foi bastante utilizada, se mostrando inclusive como meio eficaz no combate ao crime organizado.
A Itália foi um dos primeiros países a adotar o sistema de justiça negociada e graças a essa ascensão foi possível obter consideráveis resultados no combate a máfia italiana.
Na Inglaterra existem registro da aplicação da justiça negociada desde 1975. Hoje, é atribuição do promotor oferecer um amplo leque de benefícios ao acusado, inclusive a imunidade de acusação.
No Brasil, embora o plea bargain tenha sido inserido recentemente em nossa legislação, por meio da Lei n. 13.694/2019, Marcos Zilli alega que o tema da justiça negociada está longe de ser uma novidade no processo judicial brasileiro, segundo o autor[2]:
“A “revolução negociada” operou-se inicialmente, no campo dos crimes de menor gravidade. Parâmetros punitivos sensivelmente mais brando não justificavam persecuções penais pautadas por grande dispêndio de energia processual as quais se submetiam a excessivo rigor formal. Daí a adoção de caminhos alternativos a tradicional persecução o que se faz mediante a incorporação de institutos próprios da justiça negociada.
A transação penal, com sua índole despenalizadora, evidencia a adesão à uma política criminal alimentada pelo ideal de reinserção social e, portanto, contraria a estigmatizacao persecutória. Os requisitos, o conteúdo e a forma do acordo são preestabelecidos, cabendo ao juiz o papel fiscalizador. Afinal, a justa causa que se projeta para a ação penal abraça também a legitimidade do acordo. Se não há elementos mínimos que sustentem a admissibilidade de uma eventual acusação, não haverá, igualmente, base para a aplicação antecipada de penas alternativas. A homologação judicial não é, portanto, simples chancela.
O mesmo ocorre com a criminalidade de média gravidade. Para esta, previu-se o instituto da suspensão condicional do processo. Tal como a transação penal, a suspensão abre um flanco alternativo a persecução penal.”
Embora Zilli aponte que a era da justiça negociada não é tema novo na nossa legislação, o autor aponta que o Plea Bargain Norte Americano não pode ser transportado para o Brasil sem que sofra adaptações, vez que segundo o autor “a transposição da justiça negociada para o Brasil deve ser produto de reflexão profunda, racional e temperada, vez que em sociedades marcadas pela desigualdade os maiores destinatários da insuficiência postulatória serão os autores de sempre.”
Na mesma linha, Bernd Schunemann[3] alega que “o instituto do guilty plea arruína com o ideal de justiça no processo penal norte-americano não apenas a luz de uma análise teórica, mas também sob a perspectiva da prática processual. Afinal, ele resultou em uma radical revolução do processo penal: a audiência de instrução e julgamento perante o tribunal do júri fora amplamente abolida e substituída pelo guilty plea do acusado, que dele é praticamente comprado através de sua suposta diminuição da pena”.
Em verdade, a finalidade primordial do plea bargain é evitar todo o tramite processual, o qual gera um período extremamente longo, altos custos na esfera judicial, alto custo psicológico do acusado, dentre outras consequências.
O plea bargaining sempre envolve a declaração de culpa e, a imposição de deveres e obrigações tanto para a acusação quanto para a defesa.
As objeções a tal instituto, segundo Schunemann são de tamanha gravidade e amplitude, de modo que é crucial a injustiça perante aquele réu que luta por provar sua inocência. O autor aponta a questão da pressão que é exercida sobre o acusado e o notório dilema existente entre uma benevolência desproporcionalidade conferida ao acusado e uma drástica diminuição da pena.
Parte da doutrina, e principalmente os processualistas mais conservadores entendem que o plea bargain suprime direitos fundamentais do acusado, pois o réu, ao aceitar o acordo abre mão de garantias referente ao julgamento e ao direito de não auto se incriminar. Abre mão de uma das maiores garantias individuais que lhe é conferida: o direito ao processo, meio pelo qual se garante a proteção efetiva dos direitos fundamentais consagrados em nossa Constituição.
Esse modelo de justiça negociada, inverte a ordem processual e, a imposição da pena deixa de ser fruto de uma prévia verificação dos fatos passando a ser imposta a partir de uma negociação realizada entre o Ministério Público e o réu.
Ferrajoli[4] defende que com a justiça negociada o processo penal tem como resultado “a incerteza e a substancial extra-legalidade do direito penal.”
O acusado abre mão do seu direito de defesa e o estado, em contrapartida, assegura mecanismos rápido, barato e eficiente para a imposição da pena. Da era da supremacia da verdade passamos para a era da barganha.
A meu ver e, nesse ponto eu estou de acordo com a posição do Schunemann, não há como negar que o réu, ao se por diante de uma mesa para formar o acordo se encontra em posição desproporcional, pois, o que está em jogo é sua vida, sua liberdade, seus bens.
Ao ser feito uma proposta de acordo ao réu, oferecendo-o benefício para que a ele não seja imposto o cometimento de um crime grave, há, uma pressão/imposição, ainda que implícita para a formação do acordo.
Essa imposição, pressão é, e sempre foi, a característica principal do sistema Inquisitório, tão rechaçado no nosso direito processual penal.
No ponto, pertinente se faz citar Pietro Veri[5] quando o mesmo alega que:
“Qual o sentimento que nasce no homem ao sofrer uma dor? Este sentimento é o desejo que a dor pare. Quanto mais violento for o suplicio, tanto mais violento será o desejo e a impaciência de que chegue ao fim. Qual é o meio que um homem torturado pode acelerar o término da dor? Declarar-se culpado pelo crime o qual é investigado. Mas é verdade que o torturado cometeu o crime? Se a verdade é sabida é inútil tortura-lo, se a verdade é duvidosa, talvez o torturado seja inocente e igualmente levado a se acusar do crime. Portanto, os tormentos não constituem um meio para descobrir a verdade, e sim um meio que leva ao homem a se acusar de um crime, tenha-o ou não praticado”.
É evidente que, à época, Pietro Veri não estava se referindo a justiça negociada, mas, ao ler esse trecho, não posso deixar de lembrar que meios coercitivos como a prisão ou, o próprio medo de responder uma ação penal foram, ao longo da história e, continuam até os dias de hoje sendo usado para se alcançar o resultado pretendido.
Schunemann[6] critica a expansão da justiça negociada ao redor do mundo alegando que o processo penal norte americano “não pode, em um estado de direito, ser vendida por um prato de lentilha. Pelo contrário, a enorme proteção jurídica, distintiva e constitutiva de um estado de direito, garantida pela audiência de instrução e julgamento durante os dois últimos séculos, tem de continuar a ser garantida e prestada por outros mecanismos de proteção, que devem ser instaurados já em sede de investigação preliminar.”
Apesar da pertinência dos apontamentos do autor, me posiciono no sentido que o instituto da justiça negociada, manifesta-se como um novo modelo de justiça penal. Como tudo que é novo, no início gera desconforto, dúvidas, entretanto, é essencial que nós nos adaptemos a esse novo modelo, identificando seus problemas, buscando mecanismos eficientes para conter os abusos e limitações de poder com o fim de aprimorarmos a aplicação desse instituto no nosso sistema processual penal.
Uso as palavras de Schunemann , quando o mesmo alega que com a “mera incorporação do modelo processual norte americano não se pode esperar uma solução para os problemas que nos infringem”, assim, a meu ver a justiça negociada deve sim ser incorporada no nosso ordenamento jurídico, desde que sejam adotados mecanismos de parâmetros e prudência em sua utilização.
Uma vez que o processo penal não é estático, não constitui atividade neutra, a aplicação de suas regras e normas está diretamente ligada a fatores sociais, políticos e culturais variáveis no tempo e no espaço. Assim, cabe a nós, operadores do direito, adaptarmo-nos as necessidades atuais, desde que seja sempre respeitado os direitos e garantias consagrados em nossa Constituição.
Notas e Referências
[1] Schunemann, Bernd. Estudos de direito penal, direito processual penal e filosofia do direito; coordenação Luís Greco. São Paulo: Marcia Pons, 2013.p.251
[2] ZILLI, Marcos. Transplantes, tradução e Cavalos de Tróia. O papel do juiz no acordo de colaboração premiada. Leituras a Luz da Operação Lava Jato. In: AMBOS, Kai; ZILLI, Marcos; Mendes, Paulo de Sousa (orgs). Corrupção. Ensaios sobre a operação Lava Jato. São Paulo: Marcial Pons, 2019, p.102-103
[3] Schunemann, Bernd. Estudos de direito penal, direito processual penal e filosofia do direito; coordenação Luís Greco. São Paulo: Marcia Pons, 2013.p.251
[4] Ferrajoli, Luigi. Dirreto e Ragione: teoria del garantismo penale. 5. Ed. Bari: Laterza, 1998.p.8
[5] Pietro Verri (1728-1797). Observações sobre a tortura, Cap.9
[6] Schunemann, Bernd. Estudos de direito penal, direito processual penal e filosofia do direito; coordenação Luís Greco. São Paulo: Marcia Pons, 2013.p.260
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