Ao longo da história da humanidade, as mulheres constituem o grupo humano mais sujeito a doutrinas e regras de desigualdade e de discriminação. A construção social do papel da mulher subordinada, ou melhor, como diz Saffioti (1998), dominada-explorada, terá a marca da naturalização, do inquestionável, de algo dado pela natureza. Todos os espaços de aprendizado, os processos de socialização vão reforçar os preconceitos e estereótipos dos gêneros como próprios de uma suposta natureza (feminina e masculina), apoiando-se, sobretudo, na determinação biológica. A diferença biológica tende a se transformar em desigualdade social e a tomar uma aparência de naturalidade.
Esses papéis socioculturais predefinidos e essa visão limitadora e sexista do espaço da mulher encontram conforto e legitimidade nas leis. Conforme postula Faccio (2006), o discurso do direito é uma forma de falar, pensar e atuar sobre as mulheres, os homens e as relações entre ambos. Entretanto, o discurso jurídico configura-se como um discurso patriarcal, no qual as mulheres serão discutidas, descritas e tratadas de forma subordinada aos interesses dos homens.
A professora e crítica americana Frances Olsen (2000) assegura que a tradição do pensamento moderno está estruturada em torno de séries complexas de dualismos: racional/irracional, ativo/passivo, cultura/natureza, poder/sensibilidade, objetivo/subjetivo, abstrato/concreto, universal/particular.
Ainda em consonância com Olsen, estes pares estão sexualizados, ou seja, um lado representa o masculino e o outro o feminino. Além disso, entre eles, não existe uma relação de paridade, mas sim uma relação hierarquizada, na qual os valores caracterizados como masculinos são tidos como superiores aos valores caracterizados como femininos. Seguindo o raciocínio desta teórica, o direito se identifica com o lado masculino do dualismo, porquanto é definido pela tradição do pensamento jurídico como um sistema de normas racionais, abstratas, universais, oriundas da cultura humana.
Na sociedade brasileira, há muito tempo, a “coisificação” e a “domesticação” da mulher são alimentadas e apregoadas por um sistema político-legal sexista, patriarcal e conservador, herança de um passado colonial. Conforme Margarita Danielle Ramos (2012), essa discriminação legal entre homem a mulher encontra-se ancorada nas Ordenações Filipinas. Essas “ordens jurídicas” chegaram ao Brasil via Corte portuguesa em 1603 e foram revalidadas pela lei de janeiro de 1643, de D. João IV.
O artigo tem por objetivo apresentar uma exposição do percurso histórico-jurídico das leis sexistas no Brasil, nas codificações civis e penais, desvelar a tradição jurídica sexista brasileira e, ainda, revelar algumas mudanças no nosso sistema jurídico ao longo das últimas décadas .
Metodologia
A metodologia utilizada na pesquisa é predominantemente bibliográfica, valendo-se de uma abordagem descritiva, uma vez que há uma análise e correlação dos fatos, bem como dos métodos histórico e estruturalista, revelando assim o que as leis dispõem e o que a doutrina discorre sobre o tema, trazendo, dessa forma, uma visão parcial e prática sobre um assunto ainda pouco discutido academicamente nas ciências jurídicas brasileiras.
Resultados e Discussão
No Brasil, em matéria de Direito Privado, as Ordenações Filipinas, também conhecidas como Código Filipino, tinham em seu conteúdo resquícios dos textos da época da Santa Inquisição e traziam em seu âmago o conservadorismo do poder patriarcal vivido na Idade Média. Esse ordenamento jurídico, embora parcialmente, vigorou por mais de três séculos, de 1603 até 1916, quando se deu a promulgação do primeiro Código Civil Brasileiro (CCB/1916).
Pelo exposto nas Ordens Filipinas, ao marido não era imputada pena por aplicação de castigos corporais à mulher e aos filhos; à mulher era vedado ser testemunha em testamento público; o pátrio poder era de exclusividade do marido, não podendo a mulher ser tutora ou curadora; sempre que contraíssem novas núpcias, as viúvas poderiam sê-lo desde que “vivessem honestamente”. Não podia a mulher praticar quase nenhum ato sem a autorização do marido. Todavia, podia promover ação para os casos de doações por ele feitas à concubina.
Mergulhando na seara de Direito Penal, constata-se que o tratamento destinado às mulheres na sociedade brasileira também foi desigual e discriminatório. As leis penais filipinas foram revogadas em 1830, com a promulgação do primeiro Código Penal Brasileiro, denominado de Código Criminal do Império do Brasil (CCIB).
Em matéria penal, as Ordenações Filipinas traziam o dispositivo denominado “Do que matou sua mulher, pô-la achar em adultério”, ou seja, a permissão concedida por lei ao marido de matar sua esposa caso ela fosse flagrada em adultério. “[a] chando o homem casado sua mulher em adultério, licitamente poderá matar assi a ella[1] [...]” (ORDENAÇÕES FILPINAS, s.d., Título XXXVIII).
Segundo Leila Barsted e Jaqueline Hermann (1995), para que a mulher fosse considerada adúltera, bastava apenas que testemunhas comprovassem o casamento do assassino com a vítima, fazendo desta união o salvo conduto para que o homem exercesse seu direito de propriedade sobre a vida e a morte de sua esposa, tal como exercia sobre seus escravos e dispunha de suas propriedades imobiliárias, móveis e semoventes.
Remonta dessas Ordens a expressão “mulher honesta,” reiterada em todas as outras codificações penais brasileiras. O Livro V descrevia os delitos e cominava as penas e nele podemos encontrar expressões como mulher honesta e viúva honesta: “Que pena deve haver aquele que “jouuer” com mulher virgem ou viúva que vive honestamente.” (ORDENAÇÕES FILPINAS, s.d., Título VII, §§ 1º e 2º).
O Código Filipino não utilizava a expressão “estupro”. Contudo, já havia previsão legal para a conduta delitiva de praticar conjunção carnal “per força”. Luiz Regis Prado (2010) assegura que essa legislação previa duas modalidades para o crime de estupro: o voluntário e o violento. No caso do voluntário, sendo a mulher virgem, o autor do delito era obrigado a se casar com a donzela. Caso fosse impossível o casamento, o estuprador deveria constituir um dote para a vítima; porém, se o autor não tivesse bens, era flagelado e humilhado; se fosse fidalgo ou pessoa de posição social, recebia somente a pena de degredo. Por sua vez, no caso de estupro violento, o autor do delito era punido com a pena de morte, ainda que se casasse com a vítima.
Quanto ao aborto, Heleno Claudio Fragoso (1995) assevera que as Ordenações Filipinas não traziam nenhuma disposição relacionada a esta prática. No entanto, no artigo 43, demonstrou interesse em proteger o produto da concepção ao afirmar: “Na mulher prenhe não se executará a pena de morte, nem mesmo ela será julgada, em caso de a merecer, senão quarenta dias depois do parto” (FRAGOSO, 1995, p. 78).
A Reiteração dos Preceitos Sexistas nas Leis Penais Imperiais e Republicanas
Pelo disposto nas leis penais imperiais, o homem não teria mais o direito de matar sua esposa. Porém, o “instituto” do adultério foi debatido tanto na esfera penal quanto na cível e passou a ser visto como um crime contra a segurança do Estado civil e doméstico. Nesse diploma legal, assim ele é descrito:
Art. 250. A mulher casada, que commetter adulterio, será punida com a pena de prisão com trabalho por um a tres annos.
A mesma pena se imporá neste caso ao adultero.
Art. 251. O homem casado, que tiver concubina, teúda, e manteúda, será punido com as penas do artigo antecedente (BRASIL, 1830, art. 250-251).
À luz da boa hermenêutica, constata-se que somente a mulher cometia adultério. O homem não cometia adultério, praticava algo inominável (se tiver “concubina, teúda e manteúda”). Isso significa que era necessário que fosse comprovado que ele mantinha uma
relação estável e duradoura com outra mulher; caso contrário, se esse relacionamento fosse comprovadamente confirmado apenas como algo efêmero, não era considerado um crime.
O crime de estupro, no Código Criminal de 1830, estava inserto entre “Os crimes descritos contra a segurança da honra”. O estupro nesse diploma era tipificado como cópula carnal com mulher honesta, por meio de violência ou ameaças. A pena era de três a 12 anos e ainda um dote para a ofendida. No entanto, de acordo com o mesmo dispositivo, se a violentada fosse prostituta, a pena era apenas de um mês a dois anos (BRASIL, s.d., art. 222). Infere-se, neste dispositivo, a primeira falha em nosso sistema advindo da maliciosa criação legislativa que distinguia as mulheres da socialmente privilegiadas das demais mulheres.
É notório, neste sistema, o preconceito e a discriminação por meio do instrumento legal contra a prostituta, vista como a “mulher da vida”, não “honesta”, muitas vezes desprovida de família e, consequentemente, sem a proteção de uma figura masculina.
Constata-se que, além de ter abrandado a pena de forma considerada em relação às Ordenações Filipinas, o Código Criminal do Império previu ainda a possibilidade de extinção da pena do estupro, caso o ofensor se casasse com a ofendida, conforme dispõe o artigo 225: “Não haverão as penas dos tres artigos antecedentes os réos que casarem com as offendidas” (BRASIL, 1890, art. 225). Vale ressaltar que, nesse código, somente seria entendido o crime de estupro mediante o uso da força.
No que se refere ao aborto, o Código Criminal Imperial incluía-o no capítulo dos crimes contra a segurança das pessoas e das vidas. Esse diploma legal não punia o aborto praticado pela própria gestante, ou seja, não criminalizava o autoaborto, somente o aborto consentido e o aborto sofrido. Fragoso (1995) afirma que o citado código previa a pena de prisão com trabalho, por um a cinco anos, quando o aborto era praticado com o consentimento da gestante, e essa pena era dobrada quando não havia o consentimento dela.
O Código Criminal de 1830 foi substituído pelo então Codigo Penal dos Estados Unidos do Brazil, em 1890, (CPEUB/1890), o primeiro do já então regime republicano. Na esteira do seu antecessor, este diploma legal também tipifica o adultério como crime e não traz alteração substancial na redação. Preceituava o artigo 279: “A mulher casada que commetter adulterio será punida com a pena de prisão cellular por um a tres annos”. O parágrafo primeiro deste diploma continuava ressaltando a figura da amante, teúda e manteúda, como forma de corroborar o adultério masculino (BRASIL, 1890, art. 279, § 1º).
Nas palavras de Barsted e Hermann, o Código de 1890 conceitua a legítima defesa de tal forma que acaba, na prática, por legitimar a continuidade dos assassinatos de mulheres consideradas infiéis. Isso se justifica porque este diploma legal trouxe a exclusão de ilicitude do crime de assassinato. Sendo assim, deixaria de ser considerada culpada pelo crime de assassinato uma pessoa que matasse outra mediante três condições: o estado de necessidade, a legítima defesa e, por fim, o estrito cumprimento do dever legal. Dispunha o artigo 32:
Não serão também criminosos:
§1º Os que praticarem o crime para evitar mal maior;
§2º Os que o praticarem em defesa legitima, propria ou de outrem.
A legitima defesa não é limitada unicamente á protecção da vida; ella comprehende todos os direitos que podem ser lesados (BRASIL, 1890, art. 32).
Essa foi mais uma façanha do legislador que, munido de suas estratégias de poder, utilizou-se dessa prerrogativa para abrir espaço para a impunidade dos assassinatos das mulheres consideradas adúlteras. Barsted e Hermann (1995) argumentam que essa legítima defesa de qualquer bem lesado inclui a honra como um bem juridicamente tutelado, sem estabelecer, contudo, uma relação de proporcionalidade entre o bem lesado e a intensidade dos meios para defendê-lo. Nesse sentido, a honra do homem “traído” poderia ser considerada um bem mais precioso que a vida da mulher adúltera.
Ainda no Código Penal de 1890, no artigo 268, a denominação “estupro” foi consagrada e restrita à prática da conjunção carnal mediante violência ou grave ameaça. O referido diploma dispunha sobre o crime de estupro da seguinte forma: “Estuprar mulher virgem ou não, mas honesta: Pena – de prisão cellular por um a seis annos”. O mesmo artigo dispunha, no parágrafo primeiro, que se a estuprada fosse mulher pública ou prostituta, a pena era de seis meses a dois anos (BRASIL, 1890, art. 268, § 1.º).
Constata-se que a legislação penal de 1890 cominou pena mais branda para o crime de estupro que os diplomas anteriores, isto é, previu uma punição com prisão celular, de um a seis anos. Além disso, segundo a visão da época, a prostituta estuprada, além da violência que sofreu, não sofreria outro dano. Uma vez que não tinha nem reputação nem honra, não teria nada a temer; o crime de estupro não teria consequência.
Este mesmo Código tratou do crime de aborto nos artigos 300, 301 e 302. O art. 301 estabelecia pena de um a cinco anos para quem provocasse aborto com anuência ou acordo da gestante. A única possibilidade de benefício legal prevista encontrava-se no parágrafo único deste mesmo artigo, que estabelecia redução da 3ª parte da pena prevista se o crime fosse cometido para ocultar a desonra própria (BRASIL, 1890, art. 301).
Pelo exposto no dispositivo, conclui-se que a atenuação da pena para crime de aborto, com o propósito de ocultar a desonra própria, alicerça-se em preceitos sociais discriminantes. O critério subjetivo em questão leva a concluir que apenas as mulheres são passíveis de desonra, decorrente de sua conduta sexual. Portanto, a lei reforçava a ideia de que a honra da mulher estava vinculada à sua conduta sexual e à reprodução.
Seguindo o percurso da legislação penal, o Código Penal Brasileiro de 1940 (CPB/1940), apesar de algumas modificações, é a codificação vigente. O CPB/1940 mantém coerência com os seus antecessores e continua a trazer dispositivos extremamente discriminatórios e sexistas. A redação original do art. 240 reitera a prática do adultério como crime[2]. A inovação está no que diz respeito ao adultério masculino, finalmente caracterizado de forma clara. Pelo disposto no referido artigo, para configurar adultério não seria mais necessário manter ou sustentar a concubina/amante, como nos diplomas legais anteriores. Bastava a simples infidelidade conjugal. Vejamos, in verbis: “Cometer adultério: Pena – detenção, de quinze dias a seis meses. § 1.º Incorre na mesma pena o co-réu” (BRASIL, 1940, art. 240).
Conforme Ester Kosovski (1997), apesar das divergências de opinião, à época, prevaleceu o entendimento de que o adultério deveria continuar a ser crime. A exposição dos motivos para justificar a manutenção do adultério como crime contra a família encontrava-se no próprio código. Ainda segundo Kosovski (1997, p. 57), o legislador assim argumentou: “Não há razão convincente para que se deixe tal fato à margem da lei penal. É incontestável que o adultério ofende um indeclinável interesse de ordem social, qual seja o que diz com a organização ético-jurídica da vida familiar”.
Na esteira de Ramos (2012), a intenção do legislador na exposição dessa justificativa é a reatualização da forma de se pensar a mulher como propriedade de um homem, visto que as leis civis em vigor na época - Código Civil de 1916 - davam ao homem plenos direitos sobre sua esposa. Por conseguinte, se o chefe da casa legalmente era o homem, o exclusivismo da posse sexual só poderia ser entendido como a apropriação do corpo feminino ao homem. Para que fosse possível, então, que se provasse em juízo que algum dos cônjuges havia cometido o adultério, passou a ser necessário delimitar quais os atos que deveriam ser compreendidos como tal.
Na redação do CPB/1940, o estupro aparecia no Título VI - Dos Crimes Contra os Costumes, assim vigorou até 2009[3]. Os artigos 213 e 214 previam delitos de estupro e atentado violento ao pudor, em forma de tipos legais autônomos. Para o crime de estupro, a pena de reclusão prevista era de três a oito anos; para atentado violento ao pudor, de dois a sete anos. O artigo 215 trazia posse sexual mediante fraude e manteve a categoria de “mulher honesta”, legado sexista e discriminatório das legislações anteriores. Vejamos: “Ter conjunção carnal com mulher honesta, mediante fraude: Pena - reclusão, de um a três anos” (BRASIL, 1940, art. 213-214-215).
Conforme Marilia M. Pessoa de Mello (2010), enquanto a preocupação do Direito Civil brasileiro era limitar a mulher na sua capacidade cível (de forma geral, no seu poder de decisão no seio social e familiar), o Direito Penal preocupou-se apenas em categorizá-la, na condição de sujeito passivo dos crimes sexuais, como “virgem”, “honesta”, “prostituta” ou “pública”, e ainda a “simplesmente mulher”.
Mesmo categorizadas como vítimas, ao Direito Penal cabia diferenciar quais os grupos de mulheres poderiam protagonizar esse papel. Pela interpretação das disposições legais, somente a mulher “honesta”, que atendia aos requisitos de “honestidade” (reputação ilibada, vida ‘regrada,’ recatada), poderia ser considerada vítima de crimes e merecia a “proteção do Direito Penal” (p. 137-138). Dito de outra forma, a reputação da mulher era atestada pelo seu comportamento sexual, sendo, muitas vezes, a base para defini-la como boa ou má, honesta ou desonesta.
O CPB/1940, no artigo 124, criminaliza o autoaborto e o aborto consentido: “Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque: Pena - detenção, de um a três anos”. O Código também tipifica, nos artigos 125 e 126, a figura do aborto provocado por terceiro, sem e com o consentimento da gestante. Na prática, sem consentimento, a pena de reclusão é de três a dez anos; já com consentimento, reclusão de um a quatro anos. O artigo 127 traz as formas qualificadas em casos de superveniência de lesões graves ou morte da gestante (BRASIL, 1940, art. 124, 125, 126, 127). Embora com algumas modificações esta codificação continua em vigor. Atualmente está em fase de conclusão o projeto do Novo Código Penal (PLS nº236/2012), sintonizado com a nova realidade social, assim se espera.
Código Civil Brasileiro de 1916: Legitimação da Incapacidade Feminina
O primeiro Código Civil Brasileiro (CCB-1916) sofreu forte influência das Ordens Filipinas, que corroboravam determinações do Direito Romano e apresentava dispositivos de caráter eminentemente sexista e conservador. O CCB/1916, no capítulo que tratava do “Casamento Nulo e Anulável”, dentre os motivos passíveis para a dissolução do matrimônio, sobressaltava–se, nos artigos 218, 219, IV, “o defloramento da mulher, ignorado pelo marido” (BRASIL, 1916, art.218-219).
O silêncio da mulher quanto a não virgindade caracterizava-se, segundo o código, como erro essencial sobre a pessoa. A omissão desse fato pela mulher era interpretada pelo aplicador da lei como desonestidade, falta de recato e procedimento presumidamente leviano. Neste caso, a lei permitia que, em até dez dias, o marido ingressasse com uma ação judicial solicitando a dissolvência do casamento.
O art. 233 do referido Código determinava que “o marido é o chefe da sociedade conjugal, função que exerce com a colaboração da mulher no interesse comum do casal e dos filhos” (BRASIL, 1916, art. 233). A condição de colaboradora na administração da sociedade conjugal foi acrescida ao texto original com a promulgação da Lei 6.12/62, conhecida como Estatuto da Mulher Casada (EMC/1961), que restituía à mulher a capacidade civil. No entanto, na prática, ou seja, de fato, a posição da esposa ainda era de subalternidade, porquanto predominava o arbítrio do homem nas decisões de cunho familiar.
Esse mesmo diploma legal, no artigo 380 concede ao homem (“chefe da família”) o exercício do pátrio poder, permitindo tal exercício à mulher apenas na falta ou impedimento do marido. No artigo 385, esta lei civil outorga ao pai a administração dos bens do filho e à mãe, somente na falta do cônjuge varão. (BRASIL, 1916, art. 380, 385). O casamento era uma instituição que previamente determinava as atribuições e condutas dos cônjuges. Ao marido, a palavra final; à mulher, a submissão.
Ainda de acordo com o art. 315 do CCB/1916, o casamento era indissolúvel. Só era admitido o desquite, que não rompia o vínculo, mas apenas a sociedade conjugal. O vínculo, nesta época, seria rompido em caso de morte e pela nulidade ou anulação. O primeiro motivo para solicitar a ação do desquite era o adultério. A família se identificava pelo nome do varão; a mulher era obrigada a adotar os ‘apelidos do marido, na condição de companheira, consorte e auxiliar nos encargos da família (BRASIL, s.d.c, arts. 240, 315, 316, 319, I).
O artigo 229 do CCB/1916 determinava que apenas o casamento constituía a família legítima. Os vínculos extramatrimoniais, além de não reconhecidos, eram punidos. Os que viviam em regime de concubinato - era o estado em que coabitavam um homem e uma mulher sem serem casados - eram condenados à clandestinidade e à exclusão não só social, mas também jurídica, não gerando qualquer direito.
Os filhos havidos fora do casamento eram nominados de “adulterinos”, “incestuosos”, todos eram rotulados, pela lei, como filhos ilegítimos, sem direito de buscar a própria identidade. Esses não podiam ser reconhecidos enquanto o pai fosse casado. A demanda investigatória de paternidade só era permitida em caso do desquite ou morte (BRASIL,1916, art. 358).
Dessa forma, os filhos eram castigados pela inconsequência do pai, que legalmente estava isento de qualquer dever perante os descendentes da sua aventura extramatrimonial. Sobre a mulher-mãe, recaía a responsabilidade de sustentar o filho, sozinha e, ainda, pagar a pena social e moral pela “desonra” de ter um filho “bastardo”.
Percebe-se que a preocupação do CCB/1916 era limitar a mulher na capacidade cível, no poder patrimonial, na educação, e, de forma geral, no poder de decisão, ou seja, aleijar a mulher da vida familiar e social. Essa codificação atravessou o século, vigorou até 2002. O atual Código Civil, em vigor desde 2003, não recepciona as excrescências jurídico-sexistas do Código de 1916, uma vez que acata os preceitos já então consagrados na Constituição de 1988.
Considerações Finais
O percurso histórico-jurídico apresentado revela marcas perversas do nosso sistema jurídico que segrega, discrimina e desiguala em razão do sexo, da suposta condição de vulnerável. Como consequência, durante séculos, a mulher foi privada de exercer o papel de cidadã e de receber proteção estatal para a prevenção de abusos e de violência de diversas natureza.
É importante ressaltar que, nas últimas décadas, as mulheres brasileiras conseguiram importantes conquistas legais, dentre elas, a igualdade entre homens e mulheres, em direitos e obrigações, enfatizada pela primeira vez com a promulgação da Constituição de 1988 (art. 5º, I) .
Dessa forma, os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal passaram a ser exercidos igualmente pelo homem e pela mulher (art. 226, § 5º), revogando assim alguns dispositivos do CCB/1916 e introduzindo relevantes mudanças, especialmente, no Direito de Família, no Código Civil de 2003.
A Carta Magna de 1988 estabelece ainda (art. 227 § 6º) que não há mais distinção entre filho, legítimo, legitimado, ilegítimo e adotivo. O conceito de família recebeu da Constituição tratamento igualitário. Foi reconhecida pela Constituição, como entidade familiar, não só a família constituída pelo casamento, mas a união estável (art. 226).
No âmbito do Direito Penal, além de algumas modificações feitas no CPB/1940, duas importantes leis foram criadas para proteger a mulher de violência de diversa natureza. A primeira foi a Lei 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha, criada com o propósito de coibir e punir a violência doméstica; a segunda a Lei 13.104/2015, que ampliou o artigo 121 do atual Código Penal para incluir mais uma modalidade de homicídio qualificado, o feminicídio: crime cometido “contra a mulher por razões da condição de sexo feminino” (inciso VI).
No entanto, apesar das modificações e inovações, ainda há um hiato entre o que estabelece grande parte dessas conquistas e a aplicação prática. Grande parte das mulheres brasileiras não tem consciência de que são sujeitos de direitos, não conhecem os próprios direitos. O Estado não promove campanhas sistemáticas para que elas conheçam seus direitos e possam exigi-los. Para que essas conquistas legais se concretizem, de forma efetiva, é necessário a adoção de medidas concretas, planejadas e bem definidas, demanda de prestações positivas por parte do poder estatal.
Notas e Referências
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[1] Será mantida a ortografia oficial em vigor do período nas transcrições das legislações brasileiras.
[2] A descriminalização do adultério no Brasil só aconteceria 65 anos depois, por meio da Lei n. 11.106, de 28 de março de 2005.
[3] A Lei 12.015/09 promoveu importantes alterações no CPB/40. A partir de então, as condutas tipificadas no Título VI do citado Código configuram-se como “Crimes Contra a Dignidade Sexual”. A lei alterou a redação de alguns artigos, entre eles, o 215 e 216 e retirou a expressão “mulher honesta” dos respectivos artigos.
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