A Tolerância dos Hipócritas!

21/09/2015

Por Renato Sigisfried Sigismund Schindler Filho - 21/09/2015

(...) o caminho para Auschwitz foi construído pelo ódio, mas pavimentada com a indiferença.[1]

Acordamos em um mundo cheio de grandes verdades: verdades que comovem, que encantam, que arrebatam.

Tamanhas verdades que, desprovidas de indagações, se convertem em convicções, cantadas em verso e prosa, lecionadas e regurgitadas pelos homens justos.

E, nesse ínterim, seguimos. Seguimos acreditando nas falácias dos cordeiros, que, sob o pálio da moralidade, dividem os homens em bons e maus, criminosos e não criminosos, que os tacham como “inimigos do povo” e, paradoxalmente, defendem um sistema democrático de Direito.

Ou será que o Estado democrático de Direito não passa de mais uma falácia?

Uma grande “verdade” que repetimos insistentemente com intuito de nos convencer de que NÃO, não somos fascistas.

Com um Código de Ritos plagiado daquele gerado por Vincenzo Manzini, jurista do regime de Benito Mussolini – o qual reflete significativamente os princípios basilares da Constituição Polaca de 1937 - que não é interpretado conforme a Carta Política de 1988 e, por isso, não faz viver no sistema as garantias estabelecidas por esta. Não, definitivamente não somos autoritários.

“Quando da última reforma do processo penal na Itália, o Ministro Rocco, referindo‑se a algumas dessas medidas e outras análogas, introduzidas no projeto preliminar, advertia que elas certamente iriam provocar o desagrado daqueles que estavam acostumados a aproveitar e mesmo abusar das inveteradas deficiências e fraquezas da processualística penal até então vigente. A mesma previsão é de ser feita em relação ao presente projeto, mas são também de repetir‑se as palavras de Rocco: “Já se foi o tempo em que a alvoroçada coligação de alguns poucos interessados podia frustrar as mais acertadas e urgentes reformas legislativas”.[2]

Decisões que recebem denúncias sem a devida fundamentação; decretos de prisão preventiva que levam em consideração todas as presunções possíveis, menos a de inocência e que são utilizados para “sugerir” delações; produção de prova de ofício pelo Magistrado “garantidor”; limitação jurisprudencial ao cabimento de Habeas Corpus; propostas legislativas de prisão como regra após condenação de 2ª grau ainda sujeita a recurso em nítida subversão do princípio do estado de inocência; condenações pautadas basicamente em elementos do inquérito policial. Os fins parecem justificar os meios.

“As nossas vigentes leis de processo penal asseguram aos réus, ainda que colhidos em flagrante ou confundidos pela evidência das provas, um tão extenso catálogo de garantias e favores, que a repressão se torna, necessariamente, defeituosa e retardatária, decorrendo daí um indireto estímulo à expansão da criminalidade. Urge que seja abolida a injustificável primazia do interesse do indivíduo sobre o da tutela social. Não se pode continuar a contemporizar com pseudodireitos individuais em prejuízo do bem comum. O indivíduo, principalmente quando vem de se mostrar rebelde à disciplina jurídico‑penal da vida em sociedade, não pode invocar, em face do Estado, outras franquias ou imunidades além daquelas que o assegurem contra o exercício do poder público fora da medida reclamada pelo interesse social.”[3]

Mas sim, estamos em um Estado Democrático de Direito.

“(...) eu lhes digo que é necessário considerar todos os homens como nossos irmãos. O quê? Meu irmão, o Turco? Meu irmão, o Chinês? O Judeu? O Siamês? Sim, sem a menor dúvida, pois não somos filhos do mesmo pai, do mesmo Deus?” [4]

Nesse mundo que existe independente de nossos desejos infantis, os homens não advêm do mesmo barro, mas sim de diferentes castas: castas que segregam, que oxigenam um sistema opressor de violência contra o outro, o criminoso, o feio, o deformado, em linhas gerais, o diferente, o “Ele”.

De qualquer sorte não temos que nos preocupar, já que esse sistema só atinge a “Eles”. Mas quem seriam esses? Evidentemente aqueles que não são o “Eu”. O “Eu” do falso moralismo, do preconceito, que grita para a multidão desgovernada que é necessário recrudescimento do sistema, que a impunidade assola a sociedade, dentre outras grandes “verdades”.

Falar em brandura do sistema é algo de assustar o mais sagaz dos ditadores. Ou realmente acreditamos que, em nosso país, o Judiciário respeita o estado de inocência? Que a paridade de armas é observada?

E a famigerada impunidade? Discurso normalmente associado ao de Defesa Social, que gera uma infalível receita de manipulação das massas com potencialidade de legitimar qualquer sistema opressor.

Mas a sociedade precisa ser defendida daqueles indivíduos! As garantias deles precisam ser conformadas com o interesse público petrificado na Defesa Social! Gritaria o Cordeiro. Ou melhor, com o ardil dos sábios, substituiria a expressão “Defesa Social” por outra qualquer que visasse maquiar com tons de legitimidade o discurso patentemente autoritário.

Como se esta mesma sociedade não fosse composta desses mesmos indivíduos, e que defender o direito destes não fosse defender o direito de todos. Contradição em termos, portanto.

Tudo isso para fugir da irremediável conclusão, que aprioristicamente assusta, mas que liberta, de que “nós” somos “eles”. Não adianta, portanto, brandir miríades de argumentos discriminatórios, nem tampouco fazer malabarismos hermenêuticos, pois não somos nem mais, nem menos, mas sim humanos, com todas as tristezas e felicidades, virtudes e infâmias, inerentes ao ser.

“Eu afirmo cheio de horror, mas com veracidade: somos nós, os cristãos, somos nós os perseguidores, os carrascos e os assassinos! E de quem? De nossos irmãos. Somos nós que destruímos cem cidades, com o crucifixo ou a Bíblia na mão, que não cessamos de derramar sangue e de acender fogueiras (...)”[5]

Meus caros, vivemos ainda em um Estado Democrático de Direito?

Antes os devaneios dos loucos do que a tolerância intragável dos hipócritas.


Notas Referências: 

[1] Ian Kershaw - (http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI3757079-EI6782,00-O+mito+Hitler+parte+III.html) (disponível em 14 de setembro de 2015)

[2] Exposição de Motivos do Código de Processo Penal Brasileiro - 08 de setembro de 1941 – Ministro Francisco Campos -  Disponível em 15/09/2015 - http://honoriscausa.weebly.com/uploads/1/7/4/2/17427811/exmcpp_processo_penal.pdf

[3] Exposição de Motivos do Código de Processo Penal Brasileiro - 08 de setembro de 1941 – Ministro Francisco Campos - Disponível em 15/09/2015 - Http://honoriscausa.weebly.com/uploads/1/7/4/2/17427811/exmcpp_processo_penal.pdf 

[4] Tratado sobre a Tolerância , Voltaire, p. 109

[5] Tratado sobre a Tolerância , Voltaire, p. 109


Renato Sigisfried Sigismund Schindler Filho

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Renato Sigisfried Sigismund Schindler Filho é Advogado Criminal. Pós-Graduado em Ciências Criminais (Faculdade Baiana de Direito). Pós-Graduado em Direito e Magistratura (Universidade Federal da Bahia em convênio com a Escola de Magistrados da Bahia). Membro do Instituto Baiano de Direito Processual Penal.

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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