A tipicidade do delito de infração de medida sanitária e o COVID-19: de proteção da saúde pública à criminalização do direito de ir e vir.  

15/05/2020

Coluna Não nos Renderemos / Coordenadores: Daniela Villani Bonaccorsi Rodrigues e Leonardo Monteiro Rodrigues

A rápida proliferação da doença covid-19 e a crise provocada pelo constante conflito entre os poderes da república traz um momento que exige que nós, enquanto sujeitos de direitos, uma postura fiscalizatória para garantirmos a primazia das normas constitucionais.

As conjecturas sócio-politicas conturbadas são úteis à testificação da solidez institucional de determinado Estado, vez que nesses momentos de escassez material e emocional emerge-se a oportunidade a que agentes públicos usurpem o regime de direitos fundamentais constitucionais sob o pretexto equivocado de apaziguar e amenizar o sofrimento da população pela insuficiência material, usurpação essa que conta, não raras as vezes, com a ascendência direta e ingênua de significativos estratos da população, e que atinge de morte a nossa organização social.

Neste contexto, não podemos perder de vista a necessidade de resgatarmos o conceito clássico de Direito Penal na qualidade de arcabouço normativo limitador do poder estatal. Tal concepção, que vem sendo fertilizada com rigor científico desde a trajetória de Cesare Beccaria, na França do final do século XVIII, consubstanciando a essência da luta da liberdade não apenas contra o arbítrio e a discricionariedade absoluta de agentes públicos, mas, principalmente, em oposição àqueles que tem aversão à dignidade da pessoa humana e aos regimes de liberdades que eleitos como fundamentos da Democracia constitucional brasileira.

Nos últimos meses, a maioria, senão a totalidade dos estados e municípios brasileiros editaram atos normativos concernentes à pandemia instaurada pelo COVID-19 e, nada obstante, declarações inflamadas de membros do executivo acerca da necessidade (ou não) de adoção de medidas de isolamento social se tornaram cada vez mais frequentes.

Não desconhecemos a legitimidade dos esforços que vem sendo realizados pelas autoridades públicas com o fim de evitar a propagação desenfreada do patógeno em questão, todavia, momentos como o presente demandam especial atenção, eis que o temor e a comoção social podem, facilmente, se tornar terreno fértil para abusos do poder público.

Imperioso registrar que, embora o cuidado com a saúde pública seja competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, conforme preceitua o art. 23, II, da Constituição Federal e chancelado pelo STF no bojo da ADI 6.341[1], é necessário questionar a ação de agentes públicos que buscam intimidar a população através da velada ameaça de instrumentalizar o direito penal no sentido de determinar a prisão e a persecução daqueles que desobedecerem suas orientações no combate ao COVID-19, como recentemente visto nos estados de São Paulo[2] e Rio de Janeiro[3].

É preciso alertá-los: o Direito Penal, querendo ou não, tem limites, e a preexistência de leis penais federais incriminadoras é o principal deles.

A nossa legislação penal é naturalmente pouco preparada para lidar com uma pandemia, já que esta é uma situação dotada de especial imprevisibilidade, sendo quase impossível a sua prevenção, sem contar que a necessidade de criação de tipos penais aparece justamente no momento em que a sociedade tem contato com os efeitos prejudiciais de determinadas condutas. Nos alertam Zaffaroni e Pierangeli que o direito penal “não é um sistema contínuo - como o direito civil, por exemplo -, e sim um sistema descontínuo, alimentado somente por aquelas condutas antijurídicas em que a segurança  jurídica não parece satisfazer-se com a prevenção e reparação ordinária”, acrescentando que o “processo seletivo de condutas antijurídicas merecedoras de coerção penal é matéria de permanente revisão”.[4]

É nesse momento, gostemos ou não, que surge a necessidade legitimadora para criarmos novos tipos penais. Em outras palavras, o direito penal é estático por vocação.

Destarte, ainda que as ferramentas ordinárias de efetivação do combate à pandemia se mostrem insuficientes, a utilização legítima do direito penal como instrumento em tal fim requer estrita observância ao princípio da legalidade, conforme impõe o art. 5º, XXXIX, da Constituição Federal, sob pena de se ferir de morte o estado democrático de direito. Como bem pontua Paulo Queiroz, “no âmbito jurídico-penal, em que se materializam as mais sensíveis restrições à liberdade, com maior força de razões se impõe o respeito ao princípio da legalidade”[5].

A necessidade de tipificação das condutas potencialmente danosas à saúde pública, que compõem o terceiro capítulo do TÍTULO VIII do nosso Código Penal aflorou-se das epidemias do início do século XX, dentre elas a devastadora gripe espanhola, que fizeram com que Miguel Pereira anunciasse, em 1916, que “O Brasil era um grande hospital”[6].

O Direito Penal não poderia quedar-se inerte em relação a potencialidade lesiva de condutas humanas voluntárias que pudessem catalizar uma pandemia, motivo pelo qual criou-se, em 1940, o delito de infração de medida sanitária preventiva, previsto pelo artigo 268 do Código Penal. Tal tipo penal, cuja persecução se deu de maneira ínfima nas últimas décadas, surge agora como fundamento para coibir o descumprimento das recomendações e determinações impostas pelo poder público, sendo, inclusive, mencionado em muitos dos decretos estaduais editados em função da pandemia do COVID-19[7].

É preciso, nesse jaez, reiterar que o braço armado do Estado, consubstanciado no Direito Penal, possui limites, e que tais limites devem nortear não apenas a atividade judicante, mas também a dos legisladores e, sobretudo, dos administradores públicos.

A delimitação desses limites demanda uma análise digressiva acerca dos elementos estruturais do tipo penal do artigo 268 do diploma repressivo, para que superemos os entraves ideológicos e culturais que fazem com que as autoridades sintam-se legitimadas a instrumentalizar o Direito Penal de acordo com suas pendências pessoais.

Nota-se que o tipo em comento se trata de uma lei penal em branco, isto é, embora comine sanção penal, constitui-se de conceituação incompleta, que necessita outro de ato normativo a integrar o seu sentido, no caso, a “determinação do poder público destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa”. Tal técnica legislativa, destinada a dar mais dinamismo à norma, embora tida como constitucional por boa parte da doutrina[8] inevitavelmente colide, ao nosso ver, com o princípio da legalidade, que, como já afirmado neste artigo, deve ser estritamente observado no âmbito jurídico-penal.

Como se não bastasse, a complementação do sentido do art. 268, do Código Penal, não vem de um, mas de diversos atos normativos, que a cada dia são criados e revogados por representantes de múltiplos níveis hierárquicos do poder público. Instaurado, pois, um verdadeiro caos regulatório, termo adotado por Greco e Leite em recente artigo sobre o tema, em que destacam que  “parece ser incontroversa a existência de um caos regulatório que deságua no art. 268 CP. É natural que seja assim: um tipo penal nascido precisamente para reforçar as genéricas “determinações do poder público” dificilmente assumiria uma postura crítica em relação a elas”

Consignamos, também, que o fato de tratar-se o tipo penal previsto no artigo 268 do CP de crime de perigo abstrato, já tem sua consumação com a conduta do agente de infringir determinação do poder público destinada a impedir a introdução ou propagação de doença contagiosa, torna desnecessário, na opinião de diversos autores do direito penal corriqueiro, a demonstração da efetiva potencialidade lesiva da conduta do imputado, sendo suficiente que o titular da ação penal comprove a infração de uma norma administrativa tendente a evitar proliferação de doenças pandêmicas

Alertamos, entretanto, em relação à adversidade dessa concepção, que reside no fato de que a institucionalidade vigente não admite a intervenção do direito penal quando não houver real ofensa, ou perigo de ofensa ao bem jurídico tutelado, no caso, a Saúde Pública.

Sobre princípio da ofensividade, leciona o celebrado Professor Cézar Roberto Bittencourt, exerce dupla função no Direito Penal em um Estado Democrático de Direito: a) função político-criminal — esta função tem caráter preventivo-informativo, na medida em que se manifesta nos momentos que antecedem a elaboração dos diplomas legislativo-criminais; b) função interpretativa ou dogmática — esta finalidade manifesta-se a posteriori, isto é, quando surge a oportunidade de operacionalizar-se o Direito Penal, no momento em que se deve aplicar, in concreto, a norma penal elaborada. [9]

Da lição do Ilustre Professor gaúcho depreende-se que o princípio da ofensividade exerce função limitadora do jus puniendi estatal, e deve nortear não apenas a atividade legiferante, mas também, como já dito, e principalmente, a atividade do aplicador da lei penal constitucionalizada, para que a violência institucional não seja banalizada pelo arbítrio, pela discricionariedade e pelo capricho dos governantes.

A Professora Daniela Villani Bonaccorsi nos ensina que “há ofensa ao princípio da ofensividade na incriminação de condutas que não trazem a possibilidade concreta de dano, porque não basta uma constatação meramente formalista do delito, mas uma relevância quando o bem jurídico passa a ser concretamente afetado”.[10]

O legislador fez por positivar o princípio da ofensividade não apenas na Constituição Federal, quando elevou ao patamar de inviolável o direito à liberdade  e o princípio da dignidade humana (art. 5º, IV, VI e IX e art. 1º, da CF, respectivamente), mas também no artigo no artigo 13 do Código Penal, quando estabeleceu que não há crimes sem resultados, seja o resultado material ou jurídico, ainda que o resultado seja o perigo, como é o caso do tipo penal em análise, e é consectário desse raciocínio que nos crimes de perigo abstrato, ainda que não integre a estrutura típica, foi a periculosidade da conduta que motivou o legislador a incriminar a conduta em questão.

É inviável, dessa forma, mantermos o conceito defasado de crime de perigo abstrato que vigorava no contexto social predominante na época em que formulada o tipo penal de Infração de medida sanitária preventiva, sob pena de incorrermos na inconstitucionalidade denunciada pelo já citado Professor Cézar Bitencourt, quando afirmou que “somente se admite a existência de infração penal quando há efetivo, real e concreto perigo de lesão a um bem jurídico determinado. (...) Sem afetar o bem jurídico, no mínimo colocando-o em risco efetivo, não há infração penal.

A tipificação de crimes de perigo abstrato traz em si o risco de criminalizarmos a mera violação a um determinado dever, sem que o conteúdo do injusto penal resida no desvalor da ação, mas sim no desvalor do resultado, culminando, nas palavras da Professora Tatiana Badaró, no retrocesso a um “Direito Penal policialesco e subjetivista, incompatível com a visão de bem jurídico como objeto ofendido pelo crime e não objeto tutelado pela norma penal[11].

Note-se, assim, que o fato de se tratar o crime previsto no artigo 268 de perigo abstrato não torna desnecessária a demonstração da potencialidade lesiva da conduta perante a saúde pública, da criação de um risco não permitido, ainda que mínimo, nos termos do artigo 13 do Código Penal e do axioma ferrojoliano "nullum crimen sine iniuria"; "Nulla lex (poenalis) sine necessitate".

Em outros termos, poder-se-ia afirmar, sob o amparo da constituição, que a sobrevivência dos crimes de perigo abstrato demanda uma revisitação conceitual abrupta por parte de todos os operadores do direito penal, no sentido de recuperarmos jurisprudencialmente o conteúdo da ofensividade dessa modalidade de tipos penais

Segundo o Professor Pierpaolo Cruz Bottini, que redigiu elogiáveis tratados sobre essa temática, a periculosidade ou risco é o “substrato mínimo sobre o qual se constroem”[12] todas as espécies típicas, sejam de dano, perigo concreto ou perigo abstrato, e que o risco é elemento implícito dos tipos penais, “mesmo nos casos em que o texto legal não a mencione expressamente, como ocorre nos tipos penais de perigo abstrato[13].

Para solucionar esse entrave teórico-conceitual, os mais modernos pensadores do direito penal conceberam a utilização, no momento de aferição da materialidade dos crimes de perigo, dos critérios dos Juízos ex post, em se tratando de crimes de perigo concreto, ou pelo critério do Juízo ex ante, em se tratando de crimes de perigo abstrato.

Segundo a Professora Tatiana Badaró, na apuração do perigo sob o Juízo ex post, “o julgador se coloca na posição de um observador situado depois da prática da conduta e da não verificação do evento lesivo. Nesse juízo, são consideradas todas as circunstâncias concretas existentes no momento do fato, tanto as conhecidas ou cognoscíveis pelo agente, quanto as extraordinárias, que só aparecem posteriormente[14].

Quanto ao critério do Juízo ex ante, assevera a Professora mineira que “o julgador retroage ao instante em que a conduta é praticada para, colocando-se na mesma posição espaço-temporal do agente, avaliar a ocorrência ou não do perigo[15], de tal maneira que é realizado “por meio de um observador externo, que incorpore os conhecimentos especiais do autor sobre o contexto do risco[16] e “agrega a experiência e o conhecimento geral da época sobre cursos causais e projeções futuras do risco criado[17]

Neste panorama, para que seja configurado o delito previsto pelo art. 268, do Código Penal, imprescindível a comprovação do efetivo perigo de dano. Não basta, portanto, que a justa causa de uma ação penal pelo crime do artigo 268 do CP seja aferida unicamente através de indícios de mera violação a uma norma do poder público, sendo absolutamente imprescindível que existam fortes indícios de que o acusado, sob o Juízo Ex Ante, tenha oferecido perigo ao bem jurídico através da conduta essa que tenha, efetivamente, ameaçado a integridade do bem jurídico tutelado quando da infração à determinação do poder público a que faz alusão o tipo em comento.

Em outras palavras, certos de que não haverá a infração penal pelo só ajuste semântico-gramatical da conduta do agente ao texto da norma proibitiva ou deontológica, senão quando os aspectos teleológicos da tipificação se verificarem  efetivamente.

Além disso, o fato de tratar-se de crime doloso impõe a necessidade da efetiva demonstração de existência de indícios de tipicidade subjetiva (dolo), no ato de recebimento da denúncia, e da comprovação do dolo do agente, no momento da condenação, sendo imprescindível a demonstração de que o agente tinha o dolo efetivo de infringir determinação do poder público, e não apenas de fazer uma caminhada, de abrir seu comércio, de trabalhar, ou mesmo de visitar algum parente.

Uma pessoa não infectada, por exemplo, que denunciada pela prática dos crimes previstos no artigo 268 do Código Penal por ter saído de casa durante o período de isolamento social para caminhar, trabalhar, estudar, etc., somente poderá ser condenada pelo tipo penal em alusão caso reste devidamente demonstrado a existência do dolo de infringir a determinação do poder público em sua conduta, de tal maneira que sua conduta obste, dificulte ou impeça os objetivos da administração pública que culminaram na publicação norma proibitiva de circulação, e também, não apenas, quando restar demonstrado que a conduta dessa pessoa, pelo Juízo Ex ante, efetivamente ofereceu perigo à integridade da Saúde Pública.

Essa pessoa, não infectada, que sai de casa para caminhar, ou trabalhar, caso superada a aferição da tipicidade, poderia suscitar a incidência de causa excludente de culpabilidade, na modalidade de inexigibilidade de conduta diversa, na medida em que exercícios físicos e laborativos são indispensáveis à vida saudável e digna, por óbvio.

Não bastassem essas nuances, também poderia ser alegada a inidoneidade do meio por ela eleito para infringir a determinação do poder público, e, com isso, a efetiva eficácia instrumental da conduta do agente em atingir o bem jurídico tutelado, nos termos do artigo 17 do Código Penal, sobretudo em se tratando de pessoas que, preconizando pela sua saúde, saem de casa para caminhar em ruas desertas, se utilizando de medidas de precaução como máscaras e luvas, ou mesmo para trabalhar de modo a atenuar eventual insuficiência de recursos que é natural em situações de recessão econômica e isolamento social institucional.

Por fim, precisamos nos atentar ao já aqui denunciado caos regulatório que vigora em nosso país, sobretudo se compararmos a postura dissonante do Governo Federal em relação a inúmeros governos estaduais, que alternam-se entre a edição de atos flexibilizadores do isolamento social, por parte do ente federal, ao passo que os estados e municípios vem tornando o isolamento social cada vez mais rigoroso.

Esse caos regulatório, por certo, vem causando indesejada confusão nos jurisdicionados, que não sabem como agir, e quais normas seguir, confusão essa que deve ser concebida pelo estado-juiz em favor do acusado, eventualmente como causa excludente da própria tipicidade, já que é pressuposto do tipo subjetivo o dolo de infringir, dolo esse que pressupõe a comprovação da consciência/conhecimento (acerca da norma do poder público) e da vontade (de infringi-la), nos termos do artigo 20, caput, do CP., quando não do artigo 21 do CP, operando-se, nesse caso, a exclusão da culpabilidade por absoluto desconhecimento da ilicitude.

Cumpre ainda ressaltar que o tipo previsto pelo art. 268, do Código Penal, por impor pena não superior a 02 (dois) anos de reclusão, se configura como infração de menor potencial ofensivo, nos termos do art. 61, da Lei  nº 9.099/95. Isso faz com que a persecução penal em procedimentos de apuração da eventual prática do crime de infração de medida sanitária preventiva esteja sujeita aos ditames da referida lei.

Neste panorama, imperioso trazer à baila as disposições do art. 69, da Lei 9.099/95, a saber:

Art. 69. A autoridade policial que tomar conhecimento da ocorrência lavrará termo circunstanciado e o encaminhará imediatamente ao Juizado, com o autor do fato e a vítima, providenciando-se as requisições dos exames periciais necessários.

Parágrafo único. Ao autor do fato que, após a lavratura do termo, for imediatamente encaminhado ao juizado ou assumir o compromisso de a ele comparecer, não se imporá prisão em flagrante, nem se exigirá fiança. Em caso de violência doméstica, o juiz poderá determinar, como medida de cautela, seu afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a vítima.

Nota-se que a lei limita expressamente os procedimentos a serem adotados caso o agente seja surpreendido enquanto pratica o delito de infração de medida sanitária preventiva, não havendo se falar em prisão em flagrante ao menos que haja a recusa em se dirigir ao juizado ou assumir o compromisso de fazê-lo.

Sobre o tema trazemos a doutrina de Maurício Antônio Ribeiro Lopes, que é categórico ao afirmar que “Em tema de Juizado Especial Criminal, deve-se ao máximo evitar a possibilidade de vir o arguído a responder a processo ou a participar mesmo dos atos da fase preliminar estando custodiado. Vale dizer, as hipóteses de prisão em flagrante, prisão provisória, preventiva ou de qualquer natureza devem ser praticamente desconsideradas, embora possam excepcionalmente ocorrer”[18].

No mesmo sentido já se manifestou o Superior Tribunal de Justiça no bojo do REsp 556814/RS[19] e do REsp 442035/RS[20].

Assim, não há que se falar, via de regra, em prisão em flagrante pela prática do delito previsto no art. 268, do Código Penal, sendo certo que, em se tratando de crime de menor potencial ofensivo, punido com pena de detenção, as autoridades públicas devem se abster de utilizar a ameaça de constrição da liberdade como ferramenta de coação para  garantir a aplicação das determinações e recomendações emitidas com o objetivo de evitar a propagação do COVID-19.

Diante destas considerações, pontuamos que, embora o poder público tenha não só a legitimidade, mas o dever de implementar medidas de enfrentamento à pandemia do COVID-19, a crise instaurada não exime os agentes públicos de seu compromisso com o estado democrático de direito e com os princípios a ele inerentes.

Embora socialmente reprovável, entendemos que a conduta daquele que, a despeito de eventuais determinações do poder público, descumpre medidas de enfrentamento ao COVID-19, não está, necessariamente, sujeito à esfera sancionadora do direito penal. A uma porque, como visto, é necessário demonstrar que a conduta efetivamente causou perigo de dano ao bem jurídico tutelado, qual seja, a saúde pública. A duas porque a própria construção do tipo penal, empregando a técnica legislativa da lei penal em branco heterogênea, carece de observância ao princípio constitucional da reserva legal, contribuindo para o caos regulatório instaurado em nosso país.

Não nos surpreende, mas merece nossa atenção que alguns setores da esquerda, tradicional defensora do estado democrático de direito, supliquem, neste momento, por uma atuação ostensiva das forças policiais estatais, aplaudindo quando a polícia prende e o estado processa aquele que, por suas razões, optou por não seguir o determinado pelo estado, que dele solicitou que sacrificasse até mesmo o mais fundamental de seus direitos: o de ir e vir.

É legítimo todo questionamento àqueles que se recusam a contribuir no enfrentamento de um patógeno tão devastador quanto o COVID-19, o que, contudo, não legitima a sua perseguição. Devemos nos lembrar que a legitimação da repressão estatal em casos como o presente inevitavelmente leva ao acobertamento das verdadeiras razões pelas quais aqueles que não cumprem as determinações estatais assim o fazem, o que, em última instância, é contraproducente na busca de resolução da crise.

Conforme reflete a ilustre magistrada Maria Lúcia Karam, em seu atemporal texto “A esquerda Punitiva”,“a monopolizadora reação punitiva contra um ou outro autor de condutas socialmente negativas, gerando a satisfação e o alívio experimentados com a punição e conseqüente identificação do inimigo, do mau, do perigoso, não só desvia as atenções como afasta a busca de outras soluções mais eficazes, dispensando a investigação das razões ensejadoras daquelas situações negativas, ao provocar a superficial sensação de que, com a punição, o problema já estaria satisfatoriamente resolvido”[21].

O enfrentamento ao COVID-19 é a prioridade do Brasil e do mundo neste momento, e, de fato, diversos meios devem ser empregados para que a pandemia chegue ao fim, mas não nos renderemos ao uso antidemocrático do direito penal para alcançar este ou qualquer outro objetivo.

 

Notas e Referências

[1]https://migalhas.com.br/quentes/322570/mp-926-20-nao-afasta-competencia-de-estados-df-e-municipios-para-saude-publica-assenta-marco-aurelio

[2] https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/04/adesao-a-quarentena-cai-e-doria-ameaca-prender-quem-desrespeitar-regras.shtml

[3] https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2020/03/30/rio-vai-prender-quem-desrespeitar-isolamento-diz-witzel.htm 

[4] ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro,  Volume 1: parte geral. Eugenio Raúl Zaffaroni, José Henrique Pierangeli.–11. Ed. rev. e atual.–São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015. P. 98.

[5] QUEIROZ, Paulo. Direito penal: parte geral. Editora Lumen Juris, 2005. P. 51.

[6] https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/penal-em-foco/direito-penal-saude-publica-e-epidemia-parte-i-15042020

[7] art. 3º, Decreto 64.881/20 - Governo de São Paulo

  art. 11, Decreto nº 47027/20 - Governo do Rio

[8] QUEIROZ, Paulo. Direito penal: parte geral. Editora Lumen Juris, 2005. p. 53.

[9] Bitencourt, Cezar Roberto Tratado de direito penal : parte geral, 1 / Cezar Roberto Bitencourt. – 17. ed. rev., ampl. e atual. de acordo com a Lei n. 12.550, de 2011. – São Paulo : Saraiva, 2012.

[10] http://en.homerocosta.adv.br/file_depot/0-10000000/390000-400000/398566/folder/1126369/Os%20crimes%20econ%C3%B4micos%20e%20o%20princ%C3%ADpio%20da%20ofensividade%20penal%20-%20%C3%9Altima%20Inst%C3%A2ncia.pdf

[11] BEM JURÍDICO-PENAL SUPRAINDIVIDUAL: novos e velhos desafios da teoria do bem jurídico

[12] BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Princípio da precaução, Direito Penal e sociedade de risco. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 14, n. 61, p. 44-121, jul.-ago. 2006. p. 82-84

[13] BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Princípio da precaução, Direito Penal e sociedade de risco. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 14, n. 61, p. 44-121, jul.-ago. 2006. p. 82-84

[14]

[15] BADARÓ, Tatiana. Bem jurídico-penal supraindividual: novos e velhos desafios da teoria do bem jurídico. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, 2006. p 183-197

[16] BADARÓ, Tatiana. Bem jurídico-penal supraindividual: novos e velhos desafios da teoria do bem jurídico. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, 2006. p 183-197

[17] BADARÓ, Tatiana. Bem jurídico-penal supraindividual: novos e velhos desafios da teoria do bem jurídico. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, 2006. p 183-197

[18] LOPES, Maurício Antônio Ribeiro e Joel Dias Siqueira Junior. Comentários à Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais, 3ª edição, Ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, 2000.

[19] ADMINISTRATIVO. PROCESSUAL CIVIL. SERVIDOR PÚBLICO. PENSÃO POR MORTE. PARCELAS DEVIDAS APÓS O TRÂNSITO EM JULGADO DO ACÓRDÃO QUE RECONHECE O DIREITO À INTEGRALIDADE. PRECATÓRIO. DESNECESSIDADE.

DECISÃO DE CARÁTER MANDAMENTAL. CRIME DE DESOBEDIÊNCIA. SUJEITO ATIVO. FUNCIONÁRIO PÚBLICO. ADMISSIBILIDADE. CRIME DE MENOR POTENCIAL OFENSIVO. PRISÃO EM FLAGRANTE. IMPOSSIBILIDADE. LEI 9.099/95. RECURSO ESPECIAL CONHECIDO E PARCIALMENTE PROVIDO.

  1. A decisão que determina o pagamento da integralidade da pensão por morte possui caráter mandamental, motivo pelo qual a execução das parcelas vencidas após seu trânsito em julgado independe de precatório. Precedentes.
  2. O Superior Tribunal de Justiça possui entendimento firmado no sentido da possibilidade de funcionário público ser sujeito ativo do crime de desobediência, quando destinatário de ordem judicial, sob pena de a determinação restar desprovida de eficácia.
  3. Nos crimes de menor potencial ofensivo, tal como o delito de desobediência, desde que o autor do fato, após a lavratura do termo circunstanciado, compareça ou assuma o compromisso de comparecer ao Juizado, não será possível a prisão em flagrante nem a exigência de fiança. Inteligência do art. 69, parágrafo único, da Lei 9.099/95.
  4. Recurso especial conhecido e parcialmente provido.

(REsp 556.814/RS, Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, QUINTA TURMA, julgado em 07/11/2006, DJ 27/11/2006, p. 307)

[20] CRIMINAL. RECURSO ESPECIAL. DESCUMPRIMENTO DE ORDEM JUDICIAL, PELO PRESIDENTE DO IPERGS. CRIME DE DESOBEDIÊNCIA. POSSIBILIDADE DE CONFIGURAÇÃO. DELITO DE MENOR POTENCIAL OFENSIVO. APLICABILIDADE DA LEI N.º 9.099/95. RECURSO CONHECIDO E PARCIALMENTE PROVIDO.

O funcionário público pode cometer crime de desobediência, se destinatário da ordem judicial, e considerando a inexistência de hierarquia, tem o dever de cumpri-la, sob pena da determinação judicial perder sua eficácia. Precedente da Turma.

Cuidando-se de delito de menor potencial ofensivo, aplicam-se os ditames da Lei dos Juizados Especiais, inclusive o parágrafo único do art. 69 da Lei n.º 9.099/95, que veda a prisão em flagrante nos casos em que o agente, após a lavratura do termo, for imediatamente encaminhado ao Juizado ou assumir o compromisso de a ele comparecer.

Recurso especial conhecido e parcialmente provido.

(REsp 442.035/RS, Rel. Ministro GILSON DIPP, QUINTA TURMA, julgado em 02/09/2003, DJ 29/09/2003, p. 309)

[21] https://blogdaboitempo.com.br/2015/07/28/a-esquerda-punitiva/

 

 

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